Aqui, não
pretendo tomar partido sobre qual visão de liberdade é preferível, o
compatibilismo ou o libertarianismo, mas mostrar que, seja qual for a visão
adotada, a Confissão é consistente nessa questão. Não há duas visões, mas uma.
Por Paul Helm [1]
Em seu livro Deviant
Calvinism [O Calvinismo Deturpado] (Fortress Press, 2014), Oliver Crisp [2] considera a ideia de
que existem duas teorias filosóficas de agência
humana coexistindo lado a lado na Confissão de Westminster. Ele associa
isso ao fato de que houve calvinistas que eram libertários, como John L. Girardeau [3], o teólogo presbiteriano do sul dos Estados Unidos. Se essa
ideia é plausível, então sugere que, no auge do puritanismo, em meados do
século XVII, havia duas visões concorrentes que eram toleradas dentro das
fileiras do movimento: uma visão libertária e outra compatibilista.
Assim, os subscritores da Confissão teriam a liberdade de adotar uma ou outra,
alternando entre uma visão nas terças, quintas e sábados, e outra nos demais
dias da semana. Contudo, não há duas visões no sentido de que algumas
expressões são definitivamente e claramente libertárias, enquanto outras são
compatibilistas.
Não duas visões, mas apenas uma.
Aqui, não pretendo tomar partido sobre qual visão de
liberdade é preferível, o compatibilismo
[4] ou o libertarianismo [5], mas
mostrar que, seja qual for a visão adotada, a Confissão é consistente nessa
questão. Não há duas visões, mas uma.
William Cunningham [6] acreditava que os subscritores da
Confissão poderiam entender suas declarações sobre a agência humana de uma
maneira necessitarista ou não-necessitarista, com boa-fé. (Veja “O Calvinismo e a Doutrina da Necessidade
Filosófica” em The Reformers and the Theology of the Reformation). Ele quis
dizer, acredito, que as declarações da Confissão não eram explícitas sobre a
questão e, ao tratar desse tema, eram ambíguas ou obfuscadas, podendo ser
interpretadas de ambas as formas.
Mas isso é algo diferente de dizer que a Confissão
ensina duas visões incompatíveis. (Devemos também lembrar que a Confissão não
usa os termos “compatibilista”,
“libertário” ou mesmo “necessitarista”.
Embora faça referência ao que Deus “determina”, o faz com parcimônia, sem o
mesmo entusiasmo daqueles que, atualmente, falam com desinibição do “determinismo teológico”. Por isso, é
necessário cautela neste ponto). É verdade que a Confissão não desenvolve
explicitamente uma ou outra visão. Crisp aponta esse fato.
Crisp cita algumas observações de Jerry Walls, que, por sua vez, parece entender que as declarações
da Confissão em um ponto a comprometem com a ideia de que:
(1) Porque uma pessoa é determinada a
realizar uma ação por Deus, que leva a pessoa a querer fazer a ação, essa
pessoa [então] é capaz de realizar tal ação.
Isso é interpretado, imagino, por Jerry Walls (não li
seu livro), como uma inferência ao
libertarianismo, e não ao compatibilismo.
O capítulo sobre a Vocação
Eficaz (Capítulo 10) é citado como evidência. Talvez estas palavras desse
capítulo:
II. Esta vocação eficaz é só da
livre e especial graça de Deus e não provem de qualquer coisa prevista no
homem; na vocação o homem é inteiramente passivo, até que, vivificado e
renovado pelo Espírito Santo, fica habilitado a corresponder a ela e a receber
a graça nela oferecida e comunicada”.
E talvez por outras declarações encontradas na
Confissão. Walls também afirma que a Confissão está comprometida com:
(2) Uma pessoa é capacitada a fazer uma
determinada ação por Deus, mas cabe a ela decidir se realizará essa ação.
E isso é tomado por Walls como algo consistente com o libertarianismo. (Embora, em minha
opinião, seja um pouco forçado dizer que essas palavras indicam claramente o libertarianismo).
Talvez se pense que essa passagem do Capítulo 10
comprometa a Confissão com (2):
“… renovando suas vontades e, por
Seu poder onipotente, determinando-os ao que é bom, e atraindo-os eficazmente a
Jesus Cristo, de modo que eles venham de forma totalmente livre, sendo tornados
dispostos por Sua graça” (I).
Se for assim, os
teólogos de Westminster seriam vistos como comprometendo-se na seção (I) do
Capítulo 10, em poucas linhas, não apenas com duas teorias distintas de
liberdade humana, mas também tanto com o agostinianismo
quanto com o semi-pelagianismo.
(Talvez eles não tenham percebido esse fato ou talvez tenha sido uma questão de
política). Talvez. Mas você acha que isso é provável?
Além da falta de plausibilidade em uma das
interpretações de parte do Capítulo 10, há outra razão pela qual isso tudo não
é provável. Para entender isso, precisamos fazer uma indução mais completa da
linguagem da Confissão. Descobrimos que a escolha das palavras para descrever a
agência humana é bastante interessante. Aqui (creio) estão todas as referências
relevantes:
A Confissão Sobre a Liberdade e o Livre-Arbítrio Humanos.
Tentarei mostrar que não existem duas visões
metafísicas rivais da liberdade humana lado a lado na Confissão, mas que a
linguagem sobre liberdade e livre-arbítrio está, de fato, cumprindo dois papéis
distintos. Primeiro, vejamos “liberdade”,
depois “livre-arbítrio”.
Liberdade:
a) Eternos
Decretos, Cap. III.1: “nem é tirada a
liberdade ou contingência das causas secundárias, antes estabelecidas”
b) Criação, Cap.
IV.2: “sendo deixados à liberdade de
sua própria vontade…”
c) Do
Livre-Arbítrio, Cap. IX.1: “Deus
dotou a vontade do homem com essa liberdade natural…”
Livre-Arbítrio:
a) Do
Livre-Arbítrio, Cap. IX.2: “o homem,
em seu estado de inocência, tinha liberdade e poder para querer e fazer o que é
bom…”
b) Cap. IX.4:
“…livra-o de sua servidão natural sob o
pecado, pela graça, capacitando-o a querer e fazer livremente o que é
espiritualmente bom…”
c) Cap. IX.5:
“A vontade do homem é tornada perfeita e
imutavelmente livre para fazer o bem somente no estado de glória…”
d) Chamado
Eficaz, Cap. X.1: “… de modo que
venham totalmente livres, sendo tornados dispostos por Sua graça”.
Este levantamento exclui as formulações no Capítulo 20, Da Liberdade Cristã e Liberdade de
Consciência. Neste, o termo “liberdade”
está sendo usado em um sentido político ou social, como em “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, e não é relevante para nossa
discussão.
Comentários
Fora o Capítulo sobre Liberdade de Consciência, sugiro
que, na Confissão, “livremente” tem invariavelmente
a ver com habilidade espiritual, o desfrute dos efeitos da graça divina.
Assim, no céu, os santos possuem perfeita e imutável liberdade para fazer o
bem, e aqueles que são eficazmente chamados são levados a Cristo de forma
totalmente livre, sendo dispostos por Sua graça; não dispostos metafisicamente
em algum sentido, mas moralmente dispostos. E assim por diante. O oposto de tal
liberdade não é um estado metafísico, pois na Confissão “liberdade” não denota uma visão metafísica, mas um estado moral e
espiritual, frequentemente referido como liberdade (em algum grau) da “escravidão” da vontade.
Assim, embora à primeira vista possamos supor que
“livremente” na expressão “de modo que
venham totalmente livres, sendo tornados dispostos por Sua graça” refira-se
ao livre-arbítrio compatibilista ou libertário, sugiro que o uso de “livre” e “livremente” neste contexto tem origem não em debates metafísicos sobre
a vontade, mas nas operações da graça divina e no uso do Novo Testamento.
Por exemplo: “Se, pois, o Filho vos
libertar, verdadeiramente sereis livres” (João 8.36. Veja também o v. 21), e “onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade” (2Coríntios 3.17) e “a liberdade da glória dos filhos de Deus” (Romanos 8.21). A liberdade está ligada a certos estados
graciosamente dados ao povo de Deus.
E quanto à “liberdade”
na Confissão? Quando essa palavra é usada pelos teólogos de Westminster, seu
uso é muito mais geral. O contexto de seu uso diz respeito às capacidades
dos seres humanos em geral. “A
liberdade das causas secundárias” refere-se a indivíduos dotados de
inteligência e vontade, em comparação com o comportamento de animais, insetos e
vegetação, outros tipos de causas secundárias. Essa é a liberdade com que Deus
nos dotou, como homens e mulheres. Além disso, a Confissão afirma que, sem
assistência divina para mantê-los no caminho reto, o casal no Jardim foi “deixado à liberdade de sua própria vontade”,
seja qual for o caráter dessa vontade. Não é que o casal tivesse liberdade para
escolher entre o bem e o mal, mas foram criados bons e, portanto,
inclinados ao bem; porém, não de forma imutável, e sendo deixados à liberdade
de suas próprias vontades, ou seja, sem o auxílio divino, eles caíram,
sucumbindo à tentação demoníaca e “trouxeram
a morte ao mundo e toda nossa desgraça”. Mas, na glória por vir, a
Confissão afirma que “a vontade do homem
é tornada perfeita e imutavelmente livre para fazer o bem somente no estado de
glória”. Observe novamente a conexão entre liberdade e estado de graça.
Portanto…
A sugestão é que a escolha das palavras na Confissão
segue uma política deliberada, consistente e inteligível. Se esta sugestão é
plausível, não há necessidade de recorrer ao debate entre libertários e compatibilistas,
por mais importante que seja, ou de se envolver no que Oliver Crisp chama de “um
sutil truque” (80), para entender essa coerência.
Notas:
- Paul Helm,
     “Freedom, Liberty and the
     Westminster Confession”. Disponível em <https://paulhelmsdeep.blogspot.com/2014/10/freedom-liberty-and-westminster.html>.
     Tradução e edição: Rodrigo Gonçalez
     (rodgoncalez@gmail.com). Editora
     Credo Reformado. Paul Helm (n. 1940) é um filósofo e teólogo britânico
     conhecido por seu trabalho em filosofia da religião e teologia reformada.
     Especialista em temas como a natureza de Deus, a providência divina e a
     liberdade humana, Helm é amplamente reconhecido por suas contribuições ao
     estudo do calvinismo e da teologia de Jonathan
     Edwards. Suas obras têm explorado temas centrais do pensamento
     reformado e questões complexas sobre a relação entre liberdade e
     determinismo, bem como os desafios de interpretar doutrinas teológicas
     históricas no contexto contemporâneo. Ao longo de sua carreira, Helm
     lecionou em instituições como a Universidade
     de Londres e a Universidade de
     Oxford, onde ocupou a cadeira de Teologia Histórica e Filosófica. Entre suas principais obras
     estão The Providence of God e Eternal God: A Study of God without
     Time. [N.T.]
 - Oliver Crisp (n. 1972) é um teólogo e filósofo britânico,
     conhecido por seu trabalho em Teologia Sistemática e Filosofia da
     Religião, com foco na Tradição Reformada e no pensamento calvinista. Ele
     leciona atualmente na Universidade de St. Andrews, na Escócia, onde é
     professor de Teologia Analítica. Crisp é conhecido por explorar temas
     complexos, como a doutrina da expiação, a encarnação, a trindade e a
     liberdade humana, sempre dentro de uma perspectiva reformada e com métodos
     da filosofia analítica. Ao longo de sua carreira, Crisp tem se dedicado a
     uma abordagem “renovada” do calvinismo, que visa tanto recuperar aspectos
     tradicionais quanto abrir o diálogo com questões teológicas
     contemporâneas. Em seu livro Deviant
     Calvinism, por exemplo, ele propõe novas perspectivas dentro do
     calvinismo que desafiariam as interpretações mais rígidas, explorando
     alternativas compatíveis com a Teologia Reformada, mas menos
     convencionais, como ideias sobre a liberdade
     humana e expiação universal.
     Suas obras, como Jonathan Edwards and the Metaphysics
     of Sin e The Word Enfleshed, são
     amplamente estudadas e respeitadas na teologia contemporânea,
     especialmente entre aqueles que buscam integrar a tradição cristã
     reformada com abordagens filosóficas modernas. [N.T.]
 - John Lafayette Girardeau foi um teólogo, pastor e educador
     presbiteriano norte-americano, conhecido por seu trabalho como pastor e
     defensor da educação religiosa entre afro-americanos no sul dos Estados
     Unidos durante o século XIX. Ele nasceu em 14 de novembro de 1825 e
     faleceu em 23 de junho de 1898. Girardeau é lembrado principalmente por
     seu ministério em Charleston, Carolina do Sul, onde pastoreou uma igreja
     presbiteriana afro-americana antes da Guerra Civil. Mais tarde, tornou-se
     professor de Teologia Sistemática no Columbia
     Theological Seminary, na Carolina do Sul, onde ensinou temas como
     predestinação, expiação e soberania divina, com um forte enfoque na
     teologia calvinista ortodoxa. Ele escreveu várias obras teológicas,
     incluindo Calvinism and Evangelical Arminianism, na qual defende o
     calvinismo tradicional em oposição ao arminianismo, e The Will in Its Theological
     Relations, onde explora questões sobre a liberdade humana e a
     soberania divina, sendo uma figura de destaque na tradição reformada
     americana do século XIX. [N.T.]
 - O debate entre compatibilismo e libertarianismo no contexto da Confissão
     de Fé de Westminster envolve interpretações divergentes sobre como
     a liberdade humana se relaciona com a soberania divina. A Confissão aborda
     o livre-arbítrio e a providência de Deus de forma a sustentar a
     responsabilidade moral humana, mas também a soberania absoluta de Deus
     sobre todas as coisas, incluindo as ações humanas. O compatibilismo é a visão de que a liberdade humana e a
     soberania divina são compatíveis, isto é, que Deus pode ordenar todas as coisas e, ao mesmo tempo, os seres
     humanos podem agir livremente de forma responsável. Essa perspectiva
     geralmente sustenta que o ser humano é livre para fazer o que deseja,
     embora seus desejos e decisões estejam sob a ordem soberana de Deus. Para
     o compatibilista, a liberdade
     não é a capacidade de agir de maneira totalmente independente, mas sim a
     capacidade de agir conforme os próprios desejos, que estão, por sua vez,
     debaixo da providência de Deus. Em outras palavras, a
     vontade humana opera de acordo com os decretos divinos sem que isso retire
     sua responsabilidade moral. Deus é apresentado como o soberano que
     “determina” todas as ações, mas, ao mesmo tempo, mantém a agência moral
     das criaturas humanas. Os principais defensores do compatibilismo foram Jonathan Edwards (1703–1758) e John Owen (1616–1683). Ambos acreditavam que o livre-arbítrio
     humano está alinhado com a vontade divina soberana, e que a liberdade
     humana está limitada pela providência de Deus.
 - O libertarianismo argumenta que a liberdade humana envolve a
     capacidade de agir de maneira contrária à vontade ou ao controle direto de Deus.
     Libertários geralmente defendem que, para que as escolhas humanas sejam
     moralmente significativas, devem estar fora do alcance direto do decreto
     divino. Esta visão sustenta que Deus, em Sua soberania, permite
     que os seres humanos tomem decisões genuinamente livres, isto é, decisões
     que poderiam ser de outra forma, mesmo diante da providência ou dos
     decretos divinos. Embora a Confissão de Fé de Westminster não use
     explicitamente a terminologia
     “compatibilismo” ou “libertarianismo”,
     alguns teólogos argumentam que a Confissão oferece espaço para uma leitura
     libertária em passagens como Capítulo
     IX, Do Livre-Arbítrio, que menciona que o homem, no estado de
     inocência, possuía liberdade para escolher entre o bem e o mal. O
     argumento é que essa liberdade anterior à Queda poderia indicar um espaço
     para a possibilidade de decisões não determinadas, especialmente nas questões
     morais. Os principais defensores do libertarianismo foram, por exemplo, John Girardeau (1825–1898) e Richard
     Baxter (1615–1691). Um puritano que não era um estrito calvinista,
     Baxter defendia uma espécie de sinergismo que se aproxima do libertarianismo, acreditando que os
     seres humanos cooperam de forma significativa com a graça divina na
     salvação. [N.T.]
 - William Cunningham (1805–1861) foi
     um influente teólogo e historiador escocês, amplamente conhecido por suas
     contribuições ao presbiterianismo e à Teologia Reformada e o
     presbiterianismo. Nascido em Broughton,
     Escócia, Cunningham se tornou uma figura proeminente na Igreja da
     Escócia e desempenhou um papel importante na história do movimento
     presbiteriano. Cunningham estudou no New
     College de Edimburgo, onde se formou em teologia. Em 1830, ele foi
     ordenado como ministro na Igreja
     Presbiteriana Livre da Escócia e, em 1843, se tornou um dos fundadores
     dessa denominação, após a Disrupção de 1843, que separou
     um grupo de ministros da Igreja da Escócia devido a disputas sobre a
     autonomia da igreja e a interferência do Estado nos assuntos
     eclesiásticos. Entre suas obras mais notáveis está The Reformers and the
     Theology of the Reformation, que examina o pensamento teológico
     dos reformadores do século XVI e suas implicações para a teologia
     contemporânea. Cunningham abordou temas como a soberania de Deus, a
     providência divina e a relação entre fé e razão. Ele também contribuiu
     para o debate sobre a relação entre a liberdade humana e a soberania
     divina, especialmente em relação à ideia de compatibilismo, que
     defende que a liberdade humana pode coexistir com a soberania de Deus.
     [N.T.]
 

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