21 julho 2007

A manhã em que eu ouvi a voz de Deus

por John Piper

Deixem-me falar-lhes sobre uma experiência das mais maravilhosas que eu tive na manhã de segunda-feira, 19 de março de 2007, pouco depois das seis da manhã. Deus falou de verdade comigo. Não há nenhuma dúvida de que era Deus. Eu ouvi as palavras em minha cabeça com a mesma clareza com que a memória de uma conversa passa pela consciência. As palavras eram em inglês, mas elas tinham sobre si uma absoluta auto-autenticação da verdade. Eu estou certo sem a menor sombra de dúvida de que Deus ainda fala hoje.

Eu não conseguia dormir por alguma razão. Eu estava em Shalom House no norte de Minnesota em um retiro de casais. Eram aproximadamente cinco e trinta da manhã. Fiquei lá deitado decidindo se eu deveria me levantar ou esperar até que pegasse no sono novamente. Por Sua misericórdia, Deus me tirou da cama. Estava ainda muito escuro, mas eu consegui achar minha roupa, vesti-me, peguei minha pasta, e saí suavemente do quarto sem acordar Nöel [esposa de John Piper – N.T.]. Na sala principal lá embaixo, estava tudo absolutamente tranqüilo. Ninguém mais parecia estar acordado. Assim eu me sentei em um sofá num canto para orar.

Enquanto eu orava e meditava, de repente aconteceu. Deus disse, "venha e veja o que eu fiz." Não havia a menor dúvida em minha mente de que estas eram mesmo palavras de Deus. Naquele mesmo instante. Naquele mesmo lugar no século vinte e um, no ano 2007, Deus estava falando comigo com autoridade absoluta e realidade auto-evidenciada. Eu parei para tentar entender a dimensão do que estava acontecendo. Havia uma doçura naquilo tudo. O tempo parecia ter pouca importância. Deus estava próximo. Ele estava me vendo. Ele tinha algo a dizer para mim. Quando Deus se aproxima, a pressa deixa de existir. O tempo pára.

Eu queria saber o que ele quis dizer com "venha e veja". Ele me levaria a algum lugar, como fez com Paulo levando-o ao céu para ver aquilo que não pode ser descrito? Será que "ver" significava que eu teria uma visão de alguma grande obra de Deus que ninguém jamais havia visto? Não estou certo de quanto tempo decorreu entre a palavra inicial de Deus, " Venha e veja o que eu fiz", e as palavras seguintes. Não importa. Eu estava sendo envolvido no amor da comunicação pessoal com Ele. O Deus do universo estava falando comigo.

Então ele disse, tão claramente quanto qualquer palavra que alguma vez tenha entrado em minha mente: "Fiz coisas tremendas para com os filhos dos homens!". Meu coração acelerou, "Sim, Senhor! Tu és tremendo em todas as tuas obras. Sim, para com todos os homens quer eles percebam isto ou não. Sim! E agora? O que mais me mostrarás?"

As palavras vieram novamente. Tão claramente quanto antes, mas cada vez mais específicas: "Converti o mar em terra seca; atravessaram o rio a pé; ali, eles se alegraram em Mim". De repente percebi que Deus estava me levando de volta milhares de anos no tempo, até a época em que ele secou o Mar Vermelho e o Rio Jordão. Eu estava sendo transportado na história, pela palavra dEle, até essas grandes obras. Era isso que Ele queria dizer quando disse "Venha e veja". Ele estava me conduzindo ao passado pelas Suas palavras até essas duas gloriosas obras que ele fez diante de crianças e homens. Estas eram as "coisas tremendas" a que Ele havia se referido. O próprio Deus estava narrando as poderosas obras de Deus. Ele estava fazendo isso para mim. Ele fazia isto com palavras que estavam ressoando em minha própria mente.

Então me cobriu uma maravilhosa reverência. Uma palpável paz desceu sobre mim. Este era um momento santo e um lugar santo do mundo ali no norte de Minnesota. O Deus Todo-Poderoso tinha descido e estava me dando a quietude, a abertura e a disposição de ouvir a Sua voz. Enquanto eu me maravilhava do Seu poder para secar o mar e o rio, ele falou novamente: "Os meus olhos vigiam as nações, não se exaltem os rebeldes."

Isso era empolgante. Era muito sério. Era quase uma repreensão. No mínimo uma advertência. Ele poderia da mesma forma ter me arrastado pelo colarinho, me erguido do chão com uma mão, e ter dito, com uma mistura incomparável de ferocidade e amor, "Nunca, nunca, nunca te exaltes a ti mesmo. Nunca te rebeles contra mim."

Eu sentei, olhando para o vazio. Minha mente estava cheia da glória universal de Deus. "Meus olhos vigiam as nações." Ele tinha dito isto para mim. Não era só que ele tinha dito. Sim, isso já seria glorioso. Mas ele tinha dito isto para mim. As próprias palavras de Deus estavam em minha cabeça. Elas estavam lá em minha cabeça da mesma maneira que as palavras que eu estou escrevendo neste momento estão na minha cabeça. Elas foram ouvidas tão claramente quanto se neste momento eu recordasse que minha esposa havia dito, "Desça para jantar assim que estiver pronto." Eu sei que aquelas são palavras da minha esposa. E eu sei que estas são palavras de Deus.

"O Deus Todo-Poderoso tinha descido e estava me dando a quietude, a abertura e a disposição de ouvir a Sua voz."

Pense nisso. Maravilhe-se com isso. Trema diante disso. O Deus cujos olhos vigiam as nações, como algumas pessoas vigiam o gado ou o mercados de ações ou locais de construção - esse Deus ainda fala no século vinte e um. Eu ouvi as próprias palavras dEle. Ele falou pessoalmente comigo.

Que efeito teve isso sobre mim? Encheu-me de um senso renovado da realidade de Deus. Assegurou-me mais profundamente de que ele age na história e no nosso tempo. Fortaleceu minha fé de que ele é por mim e cuida de mim e usará o seu poder universal para tomar conta de mim. Por que mais ele viria e me contaria essas coisas?

Aumentou meu amor pela Bíblia como a verdadeira palavra de Deus, porque foi pela Bíblia que eu ouvi estas palavras divinas, e através da Bíblia eu tenho experiências como estas quase diariamente. O próprio Deus do universo fala em cada página à minha mente – e à sua mente também. Nós ouvimos as Suas próprias palavras. Deus mesmo multiplicou as Suas obras e Seus pensamentos maravilhosos para nós; ninguém pode se comparar a ele! Eu quisera anunciá-los e deles falar, mas são mais do que se pode contar. (Salmo 40:5).

E, melhor de tudo, eles estão disponíveis a todos. Se você quiser ouvir as mesmas palavras que eu ouvi no sofá no norte de Minnesota, leia o Salmo 66:5-7. Foi ali que eu as ouvi. Quão preciosa é a Bíblia. É a própria palavra de Deus. Nela Deus fala em pleno século vinte e um. Ela é a própria voz de Deus. Por esta voz, Ele fala com verdade absoluta e força pessoal. Por esta voz, Ele revela a Sua transcendente beleza. Por esta voz, Ele revela os segredos mais profundos de nossos corações. Nenhuma voz pode em qualquer lugar e a qualquer tempo ir tão fundo ou erguer-se tão alto ou levar tão longe quanto a voz de Deus que nós ouvimos na Bíblia. É uma grande maravilha que Deus ainda fale hoje através da Bíblia com maior força, maior glória, maior certeza, maior doçura, maior esperança, maior orientação, maior poder transformador e maior verdade cristocêntrica do que pode ser ouvida de qualquer voz em qualquer alma humana no planeta fora da Bíblia.

É por isso que fiquei triste com o artigo "My Conversation with God" ("Minha Conversa com Deus" – N.T.) na Christianity Today (Cristianismo Hoje – N.T.) deste mês. Escrito por um professor anônimo de uma "conhecida Universidade Cristã", conta a sua experiência de ouvir Deus. O que Deus disse era que ele deveria dar todos os royalties de um novo livro para pagar os estudos de um estudante necessitado. O que me deixa triste sobre o artigo não é que não é verdade ou que não aconteceu. O que me entristece é que realmente dá a impressão de que a comunicação extra-bíblica com Deus é infinitamente maravilhosa e fortalecedora da fé. O tempo todo, a supremamente gloriosa comunicação do Deus vivo que pessoalmente e poderosamente e transformadoramente explode todos os dias no coração receptivo através da Bíblia é ignorada em absoluto silêncio.

Tenho certeza que esse professor de teologia não quis dizer isso deste modo, mas o que ele disse de fato foi: "Durante anos ensinei que Deus ainda fala hoje, mas não pude testemunhar isso pessoalmente. Eu só posso fazer isso agora de forma anônima, por razões que eu espero fiquem claras" (ênfase acrescentada por Piper). Certamente ele não quer dizer o que ele parece inferir – que somente quando a pessoa ouve uma voz extra-bíblica como, "O dinheiro não é seu", você pode testemunhar pessoalmente que Deus ainda fala. Seguramente ele não pretende depreciar a voz de Deus na Bíblia que fala neste mesmo dia com poder, verdade, sabedoria, glória, alegria, esperança, maravilha e utilidade, dez mil vezes mais decisivamente que qualquer coisa que possamos ouvir fora da Bíblia.

Eu me aflijo com o que está sendo comunicado aqui. A grande necessidade de nosso tempo é que as pessoas experimentem a realidade viva de Deus ouvindo a Sua Palavra pessoalmente e de forma transformadora nas Escrituras. Algo está inacreditavelmente errado quando as palavras que nós ouvimos fora da Bíblia são mais poderosas e mais influentes para nós do que a Palavra inspirada de Deus. Clamemos com o salmista: "Inclina-me o coração aos teus testemunhos (Salmo 119:36)". "Desvenda os meus olhos, para que eu contemple as maravilhas da tua lei (Salmo 119:18)". Que sejam iluminados os olhos do vosso coração, para saberdes qual é a esperança do seu chamamento, qual a riqueza da glória da sua herança nos santos e conheçais o amor de Cristo, que excede todo entendimento, para que sejais tomados de toda a plenitude de Deus (Efésios 1:18; 3:19). Ó Deus, não nos deixes sermos tão surdos à tua Palavra e tão indiferentes à Sua inefável excelência evidencial a ponto de celebramos coisas menores como mais emocionantes, e até mesmo considerarmos esse maravilhar-se completamente fora de lugar merecedor de ser impresso em uma revista de circulação nacional.

Ainda ouvindo a Sua voz na Bíblia,
Pastor John Piper

Extraído de http://www.bomcaminho.com/jp001.htm

20 julho 2007

Por amor da verdade: julgue!

Cada vez mais tenho percebido que os "evangélicos" e seus líderes estão vivendo um estranho evangelho sem entendimento e subjetivista. O emocionalismo dita o comportamento e, no final de tudo é só atribuir ao Espírito Santo, que ninguém terá a ousadia de questionar! Qualquer critério que possibilite uma honesta verificação dos fatos é anulada, simplesmente porque não podemos julgar! Exercer a mente usando a Escritura, a nossa única regra de fé e prática, nos autoriza a encontrar a verdade e exige que julguemos com integridade e, assim desprezemos todo erro que tenha origem no meio do povo de Deus.

Situação bem recente e que se delongará é o modismo das "unções". Sinceramente não encontro na minha Bíblia estas tais unções modernas. Reli estas páginas amassadas várias vezes e, algumas outras com uma concordância exaustiva, mas é pavoroso como o que se ensina e pratica por aí como "unção" hoje é tão diferente do que os profetas e apóstolos experimentaram. Pelo menos Jesus não recebeu nenhuma "unção" do cajado, do sapatinho de fogo, do riso, do cair, do rolar, [engatinhar] do leão, etc.. Temo até mesmo o imaginar o Santo de Israel se comportando de modo tão ridículo! O meu Salvador nunca fez papel de palhaço, nem perdeu a sua integridade em momento algum. Se devo ser Seu imitador, então não posso desonrá-Lo.

Mas, se alguém com um pouco de bom senso questiona, se pronunciando quanto aos absurdos de líderes evangélicos que têm manipulado os membros de suas comunidades, então, logo a resposta surge, quase que decorado: quem somos nós, não podemos julgar ninguém! Quando o Senhor Jesus advertiu contra o juízo temerário (Mt 7:1-5), Ele não estava declarando pecaminoso e proibido toda e qualquer forma de juízo. Ele não nos ordenou que nos tornássemos subjetivistas e anulássemos o nosso entendimento passando a adotar um pluralismo epistemológico. O amado de minha alma me desafia a julgar pelo que é justo (Lc 12:57); bem como que DEVO julgar segundo a reta justiça (Jo 7:24). Por isso, não posso ser omisso diante dos absurdos, dos comportamentos esquizofrênicos, e ensinamentos de um evangelho que não é o Evangelho do meu Jesus, conforme as Escrituras Sagradas. Dentro do contexto de Mt 7:1-5, no verso 6, Ele mesmo nos induz a discernir o que/quem é cão e porco [palavras desamorosas?] para que não se desperdice a graça de Deus. Julgar não é pecado! Afinal o próprio Deus exerce juízo. Ele mesmo nos ordena exercer o discernimento, que diga-se de passagem é o dom mais ignorado, e talvez o mais odiado hoje em dia. Ao exercer o "discernimento" você inevitavelmente julga, ou não julga?

O Senhor Jesus Cristo julgou os escribas e fariseus pelo seu comportamento hipócrita e doutrinariamente distorcido (Mt 23:1-36). Se o julgar não é o papel de um homem de Deus, então creio que tanto os profetas do Antigo Testamento como Cristo e os apóstolos devem ser despidos deste título! Creio que os crentes deveriam ler a Bíblia mais atentamente. Talvez, a mentalidade mundana pós-moderna seja incapaz de tolerar o julgamento inspirado dos escritores da Escritura Sagrada.

Vou ficar com a minha Bíblia e desprezo toda e qualquer experiência subjetiva e duvidosa que queira se colocar no mesmo pé de igualdade que a autoridade das Escrituras. Insisto que SOMENTE A ESCRITURA SAGRADA É A ÚNICA REGRA DE FÉ E PRÁTICA. Vou continuar lendo e me alimentando com a única e verdadeira Palavra de Deus. Não perco o meu tempo interpretando e espiritualizando gente que quer gritar, rolar, vomitar [!], cair, desmaiar, engatinhar, sapatear, etc., e ainda assim dizem que estas aberrações são obra do poder e santificação do Espírito Santo! Negar o poder do Espírito é perigoso, mas atribuir ação da carne e, talvez, de demônios, ao Espírito Santo é mais perigoso ainda (Ap 22:18-19). E o ponto de referência para se discernir o que é acréscimo ou descrécimo da verdadeira obra do Espírito Santo é a ESCRITURA SAGRADA e não as experiências.

Não estou criticando apenas por mero prazer, ou, por comodidade. Os evangélicos deveriam ler, ou talvez reler mais atentamente alguns textos do Novo Testamento que falam do dever dos verdadeiros cristãos lutarem pela pureza da fé que lhes foi entregue pelo Senhor Jesus (Gl 1:6-9; Fp 1:15-17; Cl 2:8-9; 2Ts 2:9-12; 1 Tm 1:18-20; 1 Tm 4; 1 Tm 6:1-5; 2 Tm 2:14-26; Tt 1:10-16;2 Pe 2; 1 Jo 4:1-6; 2 Jo vs. 7-11; Jd vs. 3-4). São advertências contra gente que estava dentro da Igreja, e todavia, ensinavam coisas estranhas ao Evangelho de Jesus. Os apóstolos, inspirados pelo Espírito Santo, nos ordenam discernir, resistir, refutar e acusar o erro e todo desvio e, ao mesmo tempo firmar a verdade da Palavra deDeus.

Exorto a todos os que amam ao Senhor Jesus Cristo que se arrependam do seu desvio doutrinário e voltem ao puro e antigo Evangelho, e amem e obedeçam somente o ensino da Escritura Sagrada (2 Tm 4:1-5).

Rev. Ewerton B. Tokashiki

12 julho 2007

Sobre a última declaração do Papa

Não sei porquê tem gente se surpreendendo com a última declaração do Papa Bento XVI?! Penso ser ignorância histórica ou ingenuidade voluntária. A Igreja Romana nunca arredou um milímetro de sua opinião acerca de si mesma, e sobre os protestantes, mesmo quando fez política da boa vizinhança durante o Concílio Vaticano II. Tanto a posição teológica quanto a prática moral dos papistas tem demonstrado no que eles diferem, e radicalmente constrastam dos protestantes durante todos estes séculos.[1]

O Movimento Ecumênico iniciado a partir da Conferência Missionária de Edinburgh, em 1910, e promovido majoritariamente pelos protestantes de orientação teológica liberal (com todas as suas variantes e elasticidades do termo)[2] desejam manter uma relação de mútuo reconhecimento de "irmandade" com a Igreja Católica Apostólica Romana. Pois é, depois desta declaração do Joseph Ratzinger, descobriram que deram "um tiro no próprio pé"! Em vez de receberem a benção papal, levaram um coice desprevenidos.

Os romanistas nunca prometeram, oficialmente ex cathedra, o reconhecimento do protestantismo, ou de qualquer outro ramo histórico ocidental ou oriental do Cristianismo, como membro da "verdadeira" Igreja.[3] O historiador David S. Schaff observa que "os protestantes sustentam que há unidade onde haja obediência a Cristo; o romanista pensa que há unidade onde haja obediência ao papa. Leão XIII, em sua encíclica sobre a unidade da Igreja, acompanhou os seus predecessores, Bonifácio VIII e Leão X, ensinando que a unidade de comunhão - unitas communionis - acompanha a unidade da fé e unidade de governo - unitas regiminis - pelos quais se entendem o sistema doutrinário romano e o governo papal".[4] O máximo que fizeram foi nos chamar de "irmãos separados", mas deve-se ao fato da influência de teólogos da ala progressista ser influente na comissão de relações ecumênicas durante o Concílio Vaticano II.

A opinião do atual Papa quanto ao Ecumenismo não é novidade! O maior ataque de Ratzinger contra o diálogo inter-religioso foi a declaração da Congregação para a Doutrina da Fé Dominus Iesus, de 2000, que abriu uma brecha profunda entre as denominadas igrejas cristãs, ao mesmo tempo em que dinamitou todas as pontes que estavam se estabelecendo entre a Igreja Católica e as diferentes religiões. Ratzinger afirmava ali que a igreja católica é “a Igreja verdadeira” e que as “igrejas particulares” (ortodoxas) e as comunidades eclesiais (protestantes) “não são Igreja em sentido próprio” (n. 17). Não era de se esperar que ele mudasse de opinião, nem que intentasse mudar esta doutrina, sendo ele mesmo a autoridade máxima da Igreja Católica.

Os protestantes são chamados pela Igreja Romana de comunidades eclesiais separadas. Desde os dias do Concílio Vaticano II o critério de apreciação das Igrejas Protestantes era muito simples: a proximidade ou distanciamento da doutrina sacramentalista e sacerdotal romana define como os papistas devem julgar todos os protestantes.[5] Segundo a cúria católica os protestantes não são reconhecidos como participantes da verdadeira Igreja, porque não são propriamente uma igreja; por não possuirem sacramentos reconhecidos, nem uma ordenação que descende a sucessão apostólica.

A Igreja Católica Romana não pode usurpar a prerrogativa de ser a verdadeira Igreja enquanto negar os sola's da Reforma. Esta corrompida instituição não pode apresentar-se como a autoridade reguladora final, roubando das Escrituras a posição que pertence somente a Palavra de Deus. Ela é impotente de assumir o papel de dispenseira da graça, pelos sacramentos ou qualquer outro meio, enquanto negar a suficiência e eficiência da graça para salvar o pecador. Nem mesmo pode atribuir ao seu sumo Pontíficie, o Papa, o papel de vigário de Cristo, negando a perfeição da obra redentora do Filho de Deus. Não pode apresentar-se como detentora da fé, acrescentando méritos pessoais e superstições ao puro evangelho. É inconcebível que ela declare que a sua liturgia e missa, quer em língua vulgar ou em latim, é o único culto aceito, enquanto negar que toda glória, honra e adoração sejam dadas exclusivamente ao soberano e trino Deus.

Notas:
[1] O estudo apologético realizado por Loraine Boettner, Catolicismo Romano (São Paulo, Imprensa Batista Regular, 1985) demonstra este distanciamento irredutível.
[2] Uma obra esgotada, mas muito interessante para se conhecer o desenvolvimento histórico de como o Ecumenismo se processou no Brasil, é o livro publicado pela ASTE sob o título de O Catolicismo Romano - um simpósio protestante (São Paulo, ASTE, 1962). São as teses escritas que foram entregues num dos simpósios promovidos pela ASTE, instituição que dispensa apresentações, nos dias 5 a 9 de Novembro de 1959. Na época o presidente desta editora era o Rev. Júlio A. Ferreira, pastor da IPB. As 8 palestras possuem um tom ecumênico, sendo um dos articulista um católico dominicano, e os demais membros de denominações do protestantismo histórico como Igreja Metodista do Brasil, Igreja Evangélica Luterano do Brasil, Igreja Evangélica da Confissão Luterana, Igreja Anglicana do Brasil, Igreja Presbiteriana Independente do Brasil e o conhecido Rubem A. Alves, então pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil.
[3] Há muitos oficiais da Igreja Católica que defendem a prática do Ecumenismo, entretanto, não representam coerentemente o pensamento tradicional romanista. Adeptos desta posição alguns livros-textos podem ser mencionados como Francis S. Fiorenza - John P. Galvin, Teologia Sistemática - Perspectivas Católico-Romanas (São Paulo, Editora Paulus, 1997), 2 vols..
[4] David S. Schaff, Nossa Crença e a de Nossos Pais (São Paulo, Imprensa Metodista, 2a.ed., 1964), pág. 208.
[5] José Grau, Catolicismo Romano - origenes y desarrollo (Barcelona, Ediciones Evangélicas Europeas, 2a.ed., 1990), vol. 2, pág. 1144.

09 julho 2007

O significado da palavra "indigno" em 1 Co 11:27

A palavra grega traduzida por indignamente (anaziôs) é uma hapax legomena.[1] Em outras palavras, em todo o Novo Testamento ela somente ocorre nesta passagem. Se Paulo quisesse exigir um caráter digno dos participantes da Ceia em Corinto, teria empregado a palavra anaziós e não anaziôs. A diferença entre as duas é realmente pequena, se limita apenas a um trocadilho entre as vogais ómicron e ômega. Todavia, a palavra anaziós é um adjetivo, o que qualificaria o caráter do participante. Enquanto que anaziôs é um advérbio que descreve o modo da ação do participante.

Por ser uma hapax legomena dificulta uma análise comparativa da palavra pelo número de ocorrências. Entretanto, é possível fazê-lo de seu antônimo. Pode-se concluir que, enquanto a palavra anaxiôs é “agir de modo digno”, a palavra anaziôs significa “agir de modo indigno”. O articulista E. Tiedtke observa que “nas epístolas, axios freqüentemente tem o significado de ‘apropriado’, ‘de acordo com’. Este uso é especialmente evidente no uso do adv. axios nas exortações que exigem a maneira de vida à altura do evangelho de Cristo (Fp 1:27), do Senhor (Cl 1:10; 1 Ts 2:12), ou da nossa vocação (Ef 4:1). De modo semelhante em 1 Co 11:27, Paulo adverte contra a celebração da Ceia do Senhor de modo indigno (anaziôs). Não é tanto uma exigência de qualidades morais nos participantes, mas, sim, procurar um modo de vida de acordo com o evangelho, i.é, o amor mútuo (cf. o contexto, 1 Co 11:17-34).”[2]

O advérbio “indignamente” possui na língua portuguesa um sentido moral que não corresponde com exatidão ao significado da palavra grega anaziôs. O Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa fornece as seguintes explicações dos verbetes correlatos: desprezível, torpe, inconveniente, impróprio. Neste caso, somente a palavra “impróprio” aproxima-se do significado original. Por isso, traduzir anaziôs por indignamente, como ocorre na Versão Revista e Atualizada, embora esteja correto, não esclarece completamente o seu sentido original. Na língua portuguesa a palavra indigno tem a sua origem no latim, significa “algo que não convém, indigno, que não merece, não merecedor, injusto, vergonhoso, infamante.”[3] Daí o entendimento popular, de que para participar da Ceia do Senhor a pessoa necessita ser “digna”, subentendendo as suas virtudes pessoais, ou boa conduta como mérito.

A palavra anaziôs não sugere mérito pessoal do participante. Esta palavra simplesmente acusa a maneira como se procedeu. Spiros Zodhiates comenta que este verbete grego significa “indignamente, irreverente, de uma maneira indigna (1 Co 11:27, 29), tratando a Ceia do Senhor como se fosse um alimento comum, sem atribuir-lhe, e aos seus elementos o valor próprio.”[4]

Notas:
[1] Algumas versões que adotam o Texto Majoritário (Zane C. hodges & Arthur L. Farstad, The Greek New Testament According to the Majoritary Text [Nashville, Thomas Nelson Publishers, 2a.ed., 1985], pág. 532) trazem no verso 29 o acréscimo “indignamente” (Edição Revista e Corrida da Imprensa Bíblica Brasileira, a Edição Contemporânea da Editora Vida e a Edição Corrigida e Revisada da Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil). Gordon Fee observa que “esta adição e a que segue são intentos compreensíveis para conformar esta oração ao vs. 27, mas ao fazê-lo alteram consideravelmente o sentido.” Gordon Fee, Primera Epistola a los Corintios (Buenos Aires, Nueva Creación, 1994), p. 632
[2] E. Tiedtke, in: Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento (São Paulo, Ed. Vida Nova, 2ª ed., 2000) vol.2, p. 2106.
[3] Ernesto Faria, Dicionário Escolar Latino-Português (Rio de Janeiro, FAE, 1994) p. 274.
[4] Spiros Zodhiates, ed., The Complete Word Study Dictionary New Testament (Chattanooga, 1993), p. 156. Outro dicionário diz “não correspondendo ao que poderia acontecer – impropriedade, de uma maneira imprópria, alguém que come do pão e bebe do cálice do Senhor de uma maneira imprópria 1 Co 11:27” in: J.P. Louw & E.A. Nida, eds., Greek-English Lexicon of the New Testament Based on Semantic Domains (New York, United Bible Societies, 2ªed., 1989), p. 628.

04 julho 2007

Análise comparativa de 1 Co 11:27

A constatação do apóstolo Paulo de que os cristãos coríntios participavam da Ceia do Senhor de maneira indigna tem trazido divergência de interpretação quanto ao seu exato significado. Algumas dessas interpretações serão expostas a seguir numa análise comparativa.

Thomas C. Oden prefere uma interpretação moral para indignamente. Em vez de recorrer a palavra grega original, ou, ao contexto próximo da passagem, ele busca uma relação com a desqualificação moral do caráter de alguns cristãos coríntios. Citando alguns versículos Oden concebe a seguinte ponte “aqueles que tem um procedimento desordenado são admoestados (2 Ts 3:6-15). Alguns ‘devem examinar a si mesmos antes de comer do pão e beber do cálice. Pois o que come e bebe sem discernir o corpo do Senhor, come e bebe juízo para si’ (1 Co 11:28-29). Paulo especificamente instrui os coríntios que ele não deveriam comer ‘com alguém que chamasse a si mesmo de irmão, mas que era sexualmente imoral ou ganancioso, um idólatra ou um caluniador, beberrão ou mentiroso’ (1 Co 5:11).”[1] Entretanto, o advérbio indignamente refere-se ao modo da ação, não especificamente ao caráter do agente.

Leon Morris sugere que a participação digna da Ceia deve ser com fé. Ele declara que “mas noutro sentido podemos vir dignamente, isto é, com fé, e com a devida realização de tudo que é pertinente a tão solene rito. Negligenciar nisto é vir indignamente no sentido aqui censurado.”[2] Todavia, os que participavam da Ceia não estavam sendo reprovados por sua falta de fé. Nem por permitirem a participação de incrédulos. A sua reprovação era por desprezar o cerimonial da Ceia e a comunhão dos irmãos.

O teólogo da antiga Princeton Charles Hodge defende que a participação indigna significa participar com espírito negligente e irreverente. Ele diz que “se a Ceia do Senhor é em sua própria natureza uma proclamação da morte de Cristo, conseqüentemente que os que participam dela como se fosse uma comida ordinária, ou de maneira irreverente, ou com qualquer outro propósito que o moveu a realizá-la, são culpados do corpo e do sangue do Senhor.”[3] Em seguida define dizendo que “comer ou beber indignamente é, em geral, vir a mesa do Senhor com espírito negligente e irreverente; sem intenção nem desejo de comemorar a morte de Cristo como sacrifício por nossos pecados, e sem o propósito de cumprir as obrigações que com ela contraímos.”[4] Hodge cai no erro de interpretar a participação indigna como sendo um problema subjetivo.

O comentarista F.W. Grosheide relaciona o significado da indignidade ao errôneo uso da Ceia. Ele argumenta que “indignamente: isto implica que uma certa dignidade, ou valor está relacionado com o pão e o cálice. Aquele que os utiliza sem levar em conta o seu valor, os usa de um modo indigno, ou seja, não está de acordo com o seu valor. Um tão indigno uso os coríntios fizeram da Comunhão quando serviram-na, seguida duma festa do amor unida pela discórdia.”[5] Embora Grosheide capte o significado original da palavra indignamente, ele o erra em sua aplicação. Defende que o erro dos coríntios era ter a Ceia do Senhor como sendo de inferior valor, por realizá-la após uma festa. Deve-se notar que ele pressupõe um modelo de ceia greco-romana. A igreja de Corinto teria apenas feito uma ligeira adaptação para celebrar a Ceia do Senhor após a refeição principal. Como nas refeições greco-romanas, a principal e mais importante era a primeira refeição, servida para a nutrição, a que era servido em seguida objetivava encerrar o jantar, mas não tinha valor nutritivo. Esta concepção torna-se insustentável pelo fato, que não é provável que a Igreja Primitiva tenha mudado a sua prática litúrgica tão cedo, abandonando o modelo da ceia pascal judaica, pela ceia greco-romana. A história aponta para a preservação da tradição original, pelo menos nos primeiros dois séculos.[6]

C.K. Barret interpreta que o indignamente é posicionar-se com hostilidade aos irmãos durante a Ceia. Barret declara “o que Paulo entende por indignamente é explicado pelos versos 21 em diante; ele pensa das falhas morais de partidarismo e ganância que marcavam a reunião dos coríntios.”[7] Continua esclarecendo que “comer e beber indignamente (no sentido indicado acima) é contradizer tanto o propósito da auto-entrega de Cristo, e o espírito no qual foi feito, e situar-se entre aqueles que foram responsáveis pela crucificação, e não entre aqueles que pela fé receberam o seu fruto.”[8] A segunda citação possuí uma implicação lógica que é verdadeira. Mas, ela não se encontra de modo objetivo na passagem (11:17-34). Logo, não é possível incluí-la como um aspecto da indignidade que Paulo estava reprovando.

John F. MacArthur Jr. sustenta que a indignidade refere-se a uma depreciação da cerimônia. Comenta que “vir indignamente à Comunhão é uma simples desonra a cerimônia; é uma desonra Àquele a quem a honra é celebrada. Tornamo-nos culpados de desonrar o seu corpo e sangue, que representam a Sua obra e completa graça por nós, Seu sofrimento e morte em nosso favor.”[9] A interpretação de MacArthur é parcial. Ao expor que os coríntios estavam desonrando a cerimônia, omite os abusos cometidos entre os cristãos coríntios (cf. vs. 17-22, 33-34).

Simon Kistemaker prefere uma interpretação inclusiva. Reconhece que há uma variada gama de definições acerca do significado da maneira indigna que a Ceia foi realizada. Simplesmente prefere assumir que "talvez Paulo tenha pretendido que o advérbio indignamente fosse interpretado de modo mais amplo possível. É verdade que alguns dos coríntios mostravam falta de amor, enquanto outros deixaram de distinguir entre a festa de fraternidade e a observância da Santa Ceia. Ambos estavam errados, e Paulo os confronta. Mas o texto tem uma mensagem para a Igreja universal, também. Os cristãos nunca devem considerar a celebração um mero ritual. Ao contrário, os crentes sinceros devem aguardar com alegria a Ceia do Senhor. Os cristãos devem confessar não serem dignos por causa do pecado, mas terem sua posição de dignidade por causa de Cristo. Paulo não está exigindo perfeição antes que se permita aos crentes virem à mesa da comunhão. Ele defende um estilo de vida governado pelas reivindicações do evangelho de Cristo, e que tribute o mais alto louvor a Deus."[10] É possível que Kistemaker tenha razão. Mas, parece que a passagem trata de um problema bem específico. Entretanto, pelo fato do apóstolo exigir um auto-exame, e indicar a ocorrência de disciplinas distintas, e por fim fazer uma recomendação dirigida a mutualidade (esperai uns pelos outros, vs. 33), é mais correto pensar que a participação indigna na Ceia também poderia ser um problema específico.

Notas:
[1] Thomas C. Oden, Life in the Spirit: Systematic Theology (Peabody, Prince Press, 2001), vol. 3, p. 326.
[2] Leon Morris, 1 Coríntios Introdução e Comentário (São Paulo, Ed. Vida Nova e Mundo Cristão, 1988), p. 131.
[3] Charles Hodge, Comentário de 1 Corintios (Edinburg, El Estandarte de la Verdad, 1996), p. 212.
[4] Charles Hodge, Comentário de 1 Corintios, p. 213.
[5] F.W. Grosheide, Commentary on the First Epistle to the Corinthians (Grand Rapids, Wm. B. Eerdmans Publishing Company, 1953), pp. 273-274.
[6] Justino (100-165 d.C) descreve a celebração da Ceia da seguinte forma “depois àquele que preside aos irmãos é oferecido pão e uma vasilha com água e vinho; pegando-os, ele louva e glorifica ao Pai do universo através do nome do Filho e do Espírito Santo (...) depois que o presidente deu ação de graças e todo o povo aclamou, os que entre nós se chamam ministros ou diáconos dão a cada um dos presentes parte do pão e do vinho e da água sobre os quais se pronunciou a ação de graças e os levam aos ausentes.”Justino de Roma, 1 Apologia in: Patrística (São Paulo, Ed. Paulus, 1995), pp. 81-82.
[7] C.K. Barret, The First Epistle to the Corinthians (Peabody, Hendrickson Publishers, 1996), p. 272.
[8] C.K. Barret, The First Epistle to the Corinthians, p. 273.
[9] John F. MacArthur, Jr., The MacArthur New Testament Commentary 1 Corinthians (Chicago, Mood Press, 1984), p. 274.
[10] Simon Kistemaker, Comentário do Novo Testamento: 1 Coríntios (São Paulo, Ed. Cultura Cristã, 2004), p. 557.

30 junho 2007

Reconstrução histórica da Ceia em Corinto

Estrutura de 1 Coríntios
Paulo escreve esta epístola corrigindo várias distorções cometidas pelos coríntios.[1] O apóstolo reprova as divisões (1:10-4:20). O vergonhoso e público caso de incesto de um de seus membros (5:1-13). Disputas legais entre cristãos (6:1-11). Casos de envolvimento com prostitutas (6:12-20). Desentendimentos quanto ao valor do casamento (7:1-40). Participação de festividades pagãs e comidas oferecidas a ídolos (8:1-11:1). Os três problemas seguintes estão relacionados com as reuniões públicas dos cristãos em Corinto. A explicação da autoridade entre homens e mulheres na igreja (11:2-16). O segundo relata as distorções da Ceia do Senhor (11:17-34). A terceira problemática sobre o culto na igreja de Corinto envolve a má compreensão da distribuição e usos dos dons (12:1-14:40). Em seguida, Paulo fornece um esclarecimento da veracidade da ressurreição de Cristo, e a certeza da ressurreição futura dos crentes (15:1-58). Solicita como a igreja deve proceder para a coleta (16:1-11) e a ida de Apolo (16:12).

O problema da Ceia não era generalizado, mas era perceptível. Não é possível sustentar que toda a igreja de Corinto se encontrava reprovada por Paulo. Ele mesmo diz que “porque importa que haja partidos entre vós, para que também os aprovados se tornem conhecidos em vosso meio” (vs. 19). Os abusos da Ceia em Corinto envolviam apenas os cristãos. Não há indícios de que nesta perícope Paulo esteja preocupado em restringir a Ceia. Os coríntios não estavam sendo acusados de permitir a participação de incrédulos na Mesa do Senhor. Não eram os incrédulos que estavam profanando a Ceia, mas as atitudes ímpias dos cristãos coríntios.

A Ceia do Senhor seguia um padrão helênico?

Há dois modos de reconstruir a reunião da Ceia da igreja Corinto. O primeiro modelo sugere que a Ceia seguia o padrão de um jantar comum. Isto pressupõe uma refeição extraída da cultura greco-romana. Conforme este modelo a Ceia da igreja de Corinto possuía duas fases. A primeira desenrolava-se numa refeição comum, com o propósito de nutrição. Logo em seguida, viria uma segunda parte, com a celebração solene da Ceia do Senhor.

Esta interpretação explica que durante a primeira fase da refeição os crentes de Corinto cometiam sérios abusos, tais como egoísmo, bebedeira, glutonaria e desprezo pelos irmãos pobres. Sendo que a Ceia do Senhor que viria em seguida já não teria importância, para os que se atrasaram e não participaram da primeira refeição, estando ainda com fome e gerando um descontentamento entre os cristãos coríntios. James D.G. Dunn está correto ao discordar desta reconstrução entende que “o problema neste caso é que Paulo parece ter em mente só uma única refeição comum (a Ceia do Senhor). A prática que ele reprova não é a de uma refeição separada (precedente) da Ceia do Senhor, mas o abuso de uma única refeição (a Ceia do Senhor) que começava com o único pão e terminava com o cálice ‘após a ceia’ (11,25).”[2]

A Ceia era cuturalmente judaica
A segunda reconstrução histórica interpreta a Ceia do Senhor como sendo uma única refeição numa reunião com o propósito solene de celebrar a comunhão da Igreja de Cristo. Seguindo o padrão da ceia Pascal, então, a interpretação toma outro rumo. Primeiro, pressupõe-se que a Ceia do Senhor, em alguma medida, possuí continuidade com a refeição da antiga Aliança. Segundo, a Ceia era uma refeição litúrgica (Mt 26:30), seguindo os moldes da tradição apostólica (eu recebi do Senhor o que também vos entreguei, vs. 23), não meramente uma reunião de confraternização. Em terceiro lugar, Paulo usa uma palavra muito específica para a “ceia” que se refere ao “principal alimento recebido à noite”[3] não se referindo a uma refeição secundária.

A Ceia do Senhor representa, entre outras concepções, a comunhão da Igreja de Cristo (10:17). O comportamento partidário e egoísta contradizia abertamente o sentido da cerimônia. Tal era a distorção das reuniões dos coríntios, que descaracterizavam a Ceia, tornando o ambiente impróprio de celebrar a comunhão do Corpo de Cristo (vs. 20).

Não se deve admitir que as divisões dentro da igreja de Corinto ocorriam somente por problemas sociais. James D.G. Dunn interpreta, erroneamente, que “é particularmente evidente que a tensão era basicamente entre cristãos ricos e cristãos pobres, isto é, entre os que tinham comida e bebida suficiente e suas próprias casas (11,21-22) e ‘os que nada têm’ (11,22)”.[4] Percebe-se que o principal problema que afetava a celebração da Ceia da igreja de Corinto eram os partidarismos relacionados a uma má compreensão de quem eram os seus líderes. Dentro da igreja havia discórdia e competição, pois “cada grupo se jactava da sabedoria superior de seu escolhido (1:10-17).”[5] O problema não era apenas uma luta de classes sociais. O texto refere-se a “divisões” (vs. 18) e a “partidos” (vs. 19). Não eram apenas dois grupos em desentendimento, mas vários, acerca de diversos assuntos (cf. 3:4, 22; 8:7, 9, 13; 9:2; 11:22).

Notas:
[1] D.A. Carson, et.al., Introdução ao Novo Testamento (São Paulo, Ed. Vida Nova, 1997), pp. 287-289.
[2] James D.G. Dunn, A Teologia do Apóstolo Paulo (São Paulo, Ed. Paulus, 2003), pp. 688-689.
[3] William D. Mounce, The Analytical Lexicon to the Greek New Testament (Grand Rapids, Zondervan Publishing Books, 1992), p. 133.
[4] James D.G. Dunn, op.cit., p. 687. Embora sendo cuidadoso com a sua análise contextual Dunn não evita a sua tendência em defender que “a análise sociológica sugere que o assunto tratado em 1 Co 10-11 era primariamente a união social e não tanto uma disputa teológica” p. 689. É aceito que Paulo não estava discutindo com os coríntios acerca da presença de Cristo na Ceia. Mas ao instruir-lhes acerca da natureza da Ceia do Senhor (11:23-26) certamente o apóstolo releva-lhes à memória a gravidade da confusão e profanação da Ceia, a ponto de acusá-los de descaracterizá-la, e dizer-lhes que aquilo que eles faziam “não é a ceia do Senhor que comeis” (11:20).
[5] D.A. Carson, et.al., Introdução ao Novo Testamento, p. 287.

21 junho 2007

Implicações dos 5 Pontos do Calvinismo no Aconselhamento Cristão

De 13 de novembro de 1618 a maio de 1619, reuniu-se o Sínodo de Dort, na Holanda, com representantes de vários países europeus. Tal reunião teve por finalidade produzir um documento doutrinário que a histórica conhece por TULIP[1]. Esse Sínodo fez-se necessário porque alguns discípulos de Armínius[2] (1560 a 1600) produziram um documento enviado ao estado da Holanda. Tal documento, conhecido como Remonstrance (ou Protesto), tinha como teor algumas afirmações que destoavam do calvinismo, tendo mais proximidade com a doutrina pelagiana. O documento produzido nesse Sínodo se tornou o texto oficial do calvinismo desde então.

Esse trabalho tem como objetivo partir desses pontos do calvinismo e analisar sua aplicabilidade dentro do contexto do aconselhamento. É importante salientarmos que o aconselhamento bíblico e reformado leva em conta todos os aspectos do homem, espiritual, físico, moral, social e assim por diante. O Deus que regenera o homem é o mesmo que provê condições para que este se desenvolva na sua santificação. Cremos que é nessa direção que o aconselhamento caminha, sem abrirmos mão da nossa herança bíblica e reformada.

O DEUS SOBERANO
A soberania de Deus é um ponto de grande destaque dentro da tradição reformada. Na verdade, Calvino levanta toda a sua argumentação pautada nessa constatação absoluta. Não há como fugir do domínio soberano do Senhor. O salmista nos põe de frente com essa realidade, quando lança a pergunta: Para onde me ausentarei do teu Espírito? Para onde fugirei da tua face?[3] A partir de um claro conceito de um Deus soberano, é que os cinco pontos do calvinismo puderam surgir como uma conseqüência “lógica”, que parte de um Deus que tem todas as coisas diante dos seus olhos.

Elege (Eleição Incondicional)
A eleição incondicional nos remete ao pensamento de que não há bem nenhum em nós que possa “motivar” Deus a nos salvar. Não havia uma resposta positiva da nossa parte, que foi prevista por Deus, como argumentam os arminianos. Segundo Jay Adams, “a escolha foi incondicional; i. e., Deus livremente escolheu aqueles que Ele desejou salvar, não com base em alguma virtude, mérito, valor, fé prevista, ou algum outro fator neles... esta seleção de alguns para a vida eterna foi feita com base em elementos não reveláveis, conhecidos apenas por Deus (tradução própria).”[4] O conselheiro cristão não pode aconselhar concretamente nas virtudes de Cristo um não regenerado. Aí não seria aconselhamento e sim evangelização.

O próprio Jay Adams argumenta a não possibilidade de um aconselhamento completo sem a pessoa ter passado pela experiência da conversão. O Deus Trino que elege, é o mesmo que possibilita que este regenerado seja desenvolvido em santidade. O aconselhamento cristão leva em conta que somente a Palavra pode causar mudanças em nosso pensar e agir. Sendo assim, somente os eleitos podem, verdadeiramente e em todas as áreas de sua vida, serem moldados por ela.

Redime (Expiação Limitada)
O controverso ponto da expiação limitada está solidamente firmado sobre as Escrituras Sagradas. Não há nada mais verdadeiro do que a declaração do próprio Cristo a esse respeito em Mateus 22:14 : “Muitos serão chamados, mas poucos escolhidos.”

Aqueles escolhidos pelo PAI e dados ao FILHO tinham de ser redimidos para serem salvos. Para assegurar a redenção deles Jesus veio ao mundo e tomou sobre Si a natureza humana de tal maneira, que Ele pode identificar-se com o Seu povo e agiu como substituto legal da raça. Jesus, agindo em favor do Seu povo, perfeitamente guardou a Lei de Deus, executou uma justiça perfeita que é imputada ou creditada aos pecadores no momento em que eles são trazidos à fé a Ele.

Através daquilo que Ele fez, os pecadores são constituídos justos diante de Deus. Eles são livres de toda a culpa e condenação, como resultado daquilo que Cristo sofreu por eles. Através do Seu sacrifício substitutivo Ele suportou a penalidade de seus pecados, e assim removeu a culpa para sempre. Conseqüentemente, quando o Seu povo está unido a Ele por fé, eles são creditados com perfeita justiça e são livres de toda a culpa e condenação. Eles são salvos, não por aquilo que eles mesmos fizeram, ou farão, mas somente sobre a base da obra redentora de Cristo.

A doutrina da expiação limitada trás para o ambiente do aconselhamento a certeza de que o Deus que redime é o Deus que cuida ativamente de cada um de nós. Conselheiros e aconselhados podem firmemente crer que Deus é o maior interessado no bem estar de seus filhos, proporcionando-lhes todos os meios para que sejam consolados em suas tribulações e tristezas.

Chama (Graça Irresistível)
O evangelho é a voz de Deus que chama os pecadores ao arrependimento. O chamado externo pode e é resistido por muitos que ouvem. Entretanto, o chamado interno, que é a operação do Espírito Santo no coração do pecador, não pode, sob nenhuma circunstância, ser resistido pelo ser humano. O Espírito Santo graciosamente chama o pecador ao arrependimento. E este, voluntariamente, atende ao chamado da graça. É o que conhecemos por graça irresistível.

O evangelho de Cristo chama, irresistivelmente, pecadores ao arrependimento. Esse chamado da graça torna totalmente possíveis mudanças significativas na vida de um regenerado. Tais mudanças se estendem por toda sua vida. É o que Paulo denomina novidade de vida (Rm.6). É o chamado da escravidão para a liberdade, das trevas para a luz, tornando possível um aconselhamento pautado nas Escrituras, para que o indivíduo se guie por ela.
Por esse chamado irresistível é que o cristão pode desfrutar de um casamento abençoado por Deus, sendo aconselhado a como lidar com o cônjuge e filhos; que o jovem pode ter um namoro amadurecido pelos conceitos da Palavra; que o homem de negócios vise só aquilo que é justo e bom; que os relacionamentos interpessoais se desenvolvam com solidez e sem hipocrisia. Essa é a proposta do evangelho de Cristo, que pode ser desenvolvida dentro de um aconselhamento saudável.

Preserva (Perseverança dos santos)
Essa doutrina repousa sobre o sacrifício completo e absoluto de Cristo. Ele não somente derramou seu precioso sangue para nossa salvação, mas providenciou o meio para que perseveremos na fé até ao último dia. Assim como a salvação, também o perseverar na fé depende da graça de Cristo. Paulo nos esclarece em sua epístola aos Efésios, capítulo um, versículos treze e quatorze: “em quem também vós, depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação, tendo nele também crido, fostes selados com o Santo Espírito da promessa; o qual é o penhor da nossa herança, até ao resgate da sua propriedade, em louvor da sua glória”.

Na verdade a doutrina da perseverança dos santos tem profundas implicações dentro do aconselhamento cristão, pois ela infunde esperança àqueles que buscam ajuda para lutarem com seus problemas e erros. O conselheiro sábio trará para seu aconselhado as terríveis realidades de uma vida de pecado, mas lhe dará esperança de que em Cristo, não só podemos ser perdoados, mas que agora o pecado não nos separa eternamente de Deus. Lembrando, é claro, as recomendações de Paulo em Romanos 6.1, 2.

“O QUE É O HOMEM...”
Algumas teorias modernas definiram o homem longe daquilo que as Escrituras declaram a respeito da humanidade. Destacaremos aqui alguns nomes que acreditamos expressarem um conceito geral daquilo que é dito, em termos psicológicos e sociais, do que é o homem e como ele se relaciona com o seu ambiente.

O homem de Freud
Sigmund Freud foi altamente influenciado por uma visão iluminista e evolucionista. Para Freud, a única maneira de ver o homem e o mundo é através da ciência que, em sua concepção, era sinônimo de razão. Em sua maneira de pensar, a religião era apenas uma neurose e a idéia de um Deus soberano eram muletas que ajudavam no sentimento de segurança do homem. Tais coisas deveriam ser deixadas para trás pelo homem moderno. Eram apenas heranças pré-históricas que perderam seu sentido moderno.

Freud queria elaborar uma filosofia que pudesse ver o mundo e o homem que não fosse através do conceito religioso. Ele encontrou nas ciências e em certas filosofias, como por exemplo, o iluminismo, uma estrada que parecia a ele muito promissora. Na verdade, toda sua visão de mundo é antropocêntrica. Tudo que o homem necessita para sua auto-aceitação, liberdade e felicidade, está nele mesmo.

A razão é a única coisa que rege o homem. Sendo este, segundo Freud, um produto da evolução, um animal racional, não tem porque ficar preso a dogmas religiosos, que trazem perniciosos sentimentos de culpa. Uma vez entendido isso, o homem se torna livre para ser o que sua consciência quiser. Freud coloca a psicanálise como a alternativa racional para lidar com a culpa. Ele coloca a psicanálise como a ciência da alma, e seus terapeutas como seus pastores, eliminando qualquer necessidade ou utilidade do sobrenatural.

O homem de Skinner
Burrhus Frederic Skinner não foge ao padrão geral daqueles que trilham caminhos distintos do que propõe as Escrituras. Filho de presbiterianos, revolta-se contra a religião e tenta conceber o homem e o mundo sob uma ótica puramente racional. Passa, então, a ver o homem como máquina. O problema da humanidade é o seu ambiente que o impulsiona para o mal. O homem não é responsável pelos seus atos. É um ser manipulável por forças externas naturais.
Ele é puramente fruto de estímulos de recompensa e punição. Esse condicionamento humano é resultante de sua evolução biológica de sobrevivência. A máxima de Skinner é: “o homem é uma máquina”. Há pouco espaço na sua teoria para a consciência. Quase tudo é fruto do meio. Na sua visão não há nenhum espaço para o ser humano criado como um ser individual e único. Apesar de tal pensamento estar em desuso em seu estado natural, ele influenciou grandemente teorias comportamentalistas que vêem o homem apenas como o resultado do meio em que vivem.

O homem de Rogers
Carls Rogers acredita que o ser humano é essencialmente bom. O que torna o homem ruim é a influência exterior. Coloca o homem como o centro de todas as coisas. Na verdade Rogers exalta o valor do ego, o sentir-se bem consigo mesmo. Nisso ele exalta o homem, incentivando o hedonismo. Palavras como bem-estar pessoal, vida centrada no eu, definem bem as idéias de Rogers.

O método de aconselhamento rogeriano centrado no pragmatismo, leva em consideração que a pessoa é, essencialmente, boa. Tal pressuposto destoa da antropologia bíblica de que o homem é, essencialmente, mau, nascido em pecado. Com certeza Rogers tem elevado grau de otimismo quanto ao potencial humano de se auto-construir em direção a uma vida plena, sem qualquer ajuda extra, a não ser a si próprio.

Repensando o homem biblicamente (total depravação)
O pensamento bíblico que os calvinistas sustentam sobre a “Depravação Total” é “Incapacidade espiritual”. Significa que o pecador está espiritualmente falido e que ele não pode fazer nada concernente à sua salvação. E ainda, o reino do pecado é universal; todos os homens estão debaixo do seu poder (Jó 25:4-6; II Cr.6:36; Jó 15:14-16; Sl.143:2; Ec. 7:20, 29; Rm.3.9-18). A Confissão de Fé comentando sobre a queda de Adão e Eva, nos diz que “sendo eles o tronco de toda a humanidade, o delito dos seus pecados foi imputado a seus filhos; e a mesma morte em pecado, bem como a sua natureza corrompida, foram transmitidas a toda a sua posteridade, que deles procede por geração ordinária”[5].

Não é preciso fazer grandes comparações para perceber que o pensamento atual sobre o homem destoa completamente daquilo que a Bíblia nos diz. Na verdade a Bíblia não eleva e nem diminui o homem. Apenas o coloca em sua condição real: falido espiritualmente. É justamente essa a posição que a doutrina calvinista sustenta. O homem não é uma máquina, como sustenta Skinner, conduzido pela razão e impulsos biológicos como queria Freud, e nem é bom como afirmou Rogers.

A teologia reformada ensina, com base nas Escrituras Sagradas, que o homem está ligado à sua natureza pecaminosa de tal forma que é inapto para se desvencilhar dela. Ele não pode produzir qualquer bem por si só que o leve a uma regeneração de sua condição. Mesmo que ele produza obras boas, ele sempre é direcionado, por seus próprios impulsos, para o mal. Tais obras são ineficazes para cumprir o padrão de Deus.

Sendo assim, o homem não é um ser livre e capaz como querem os expoentes do pensamento humanista, mas um ser que não pode produzir bem permanente. Ele é dependente de Deus não só para sua própria existência, mas principalmente para sua salvação. Tal conceito bíblico não diminui o homem, mas o coloca intimamente dependente de Deus.

POR UM ACONSELHAMENTO INTEGRAL
Ao longo da gloriosa história da igreja cristã, encontramos grandes teólogos que também foram pastores de alma, e que viam suas ovelhas pela ótica do cuidado integral. O cuidado pastoral pelas pessoas deve ser dirigido pelas Escrituras e moldado pela oração. É sempre direcionado ao outro, seja individualmente ou em grupo. Seja em lugares de cultos ou informais.

Temos que nos lembrar que aconselhamento não é resolver problemas ou tornar pessoas mais felizes. O aconselhamento pastoral nada mais é do que ajudar as pessoas visualizarem a graça de Deus em suas vidas. É conduzi-las a perceberem que essa graça, na maioria das vezes, está nas coisas ordinárias da vida. Não há relevância fora de Deus. Qualquer projeto alienado de Deus está fadado à solidão existencial. Todo projeto só pode encontrar sua realização e relevância na relação íntima e profunda com o Pai.

Ao analisarmos os cinco pontos do calvinismo, sua extensão prática para todas as áreas do relacionamento humano, percebemos, como diz Jay Adams, que a prática do aconselhamento cristão deve ser considerado dentro do processo de santificação[6]. Ele não é um fim em si mesmo, mas uma prática proporcionada por Deus para moldar um novo homem, “criado segundo Deus, em justiça e retidão, procedentes da verdade”[7].

Jesus olhava para o homem como um ser integral, com necessidades que abrangiam todas as áreas do seu ser. Não há como cuidar das pessoas sem entender claramente o que a Palavra de Deus declara sobre elas. Os cristãos reformados crêem que os cinco pontos do calvinismo fazem jus aos ensinamentos bíblicos quando pontuam todos os aspectos do homem, desde sua incapacidade para o bem, até sua total dependência de Deus para todas as coisas. Ainda, é ponto de destaque que a soberania de Deus é o clímax de toda estrutura na qual repousam as conclusões calvinistas.

A crença calvinista é que a primeira necessidade do homem, como um ser caído em pecado e separado eternamente de Deus, é a salvação de sua alma. E essa só pode ser efetuada mediante os méritos de Cristo, pela cruz do calvário. Qualquer aconselhamento bíblico, que não leve em conta a redenção, não poderá produzir resultados para a santificação, visto que o homem não regenerado não pode entender as coisas do Espírito de Deus, pois ainda não nasceu de novo.

Portanto, para um aconselhamento integral se desenvolver plenamente na vida de uma pessoa, que mude seu modo de pensar e agir, esta deve ser regenerada por Cristo Jesus. Ao não regenerado o conselheiro cristão deve, primeiramente, apresentar o evangelho de Cristo Jesus, dando-lhe oportunidade para conhecer a graça de Cristo e ser alcançado por ela. A isso, muitos conselheiros dão o nome de “pré-aconselhamento”, o que nós conhecemos por evangelização.

Conclusão
Algumas vezes os calvinistas são acusados de serem pouco práticos em suas doutrinas e crenças. Tal acusação é infundável, visto que os cinco pontos do calvinismo, que fazem uma síntese do pensamento reformado, é parte do dia-a-dia do cristão e molda sua maneira de ver a vida e a morte. É notório que o homem tem ganhado um espaço muito além dos seus méritos dentro da presente sociedade. Aliás, nada novo quando se trata de exaltar a humanidade. Pensamentos de proeminentes estudiosos da área do comportamento humano, altamente influenciados por uma visão humanista e até mesmo, espiritualista, é que constroem o cenário onde o homem é tido no mais alto grau de importância. Não há espaço para Deus nesse altar da soberania humana.

Ao resgatar a aplicabilidade da TULIP, usando-a para designar quem é o homem, podemos ajudar mais efetivamente o ser humano criado à imagem e semelhança de Deus, direcionando-o para o seu Salvador, num processo de santificação contínua. “Habite, ricamente, em vós a palavra de Cristo; instruí-vos e aconselhai-vos mutuamente em toda a sabedoria, louvando a Deus, com salmos, e hinos, e cânticos espirituais, com gratidão, em vosso coração” Colossenses 3.16.


Bibliografia
1. ADAMS, Jay E. Counseling and the Five Points of Calvinism. Phillipsburg: Presbyterian and Reformed Publishing Co., 1981.

2. CLARK, R. Scott. Convenant, Justification, and Pastoral Ministry. Phillipsburg: Presbyterian and Reformed Publishing Co., 2007.

3. COLE, Steven J. How John Calvin Led me to repent of Christian Psycology. The Journal of biblical counseling, v.20, nº 2, dec.-feb. 2002.

4. CONFISSÃO DE FÉ E CATECISMO MAIOR. São Paulo: CEP, 1984.

5. HURDING, Roger F. A Árvore da Cura – Modelos de Aconselhamento e de Psicoterapia. São Paulo: Vida Nova, 1995.

6. LILLBACK, Peter A. The Pratical Calvinist: an Introduction to the Presbyterian & Reformed Heritage. Christian Focus Publications: Great Britain, 2002.


Notas:
[1] Total Depravity; Unconditional Election; Limited Atonement; Irresistible Grace; Perseverance of Saints
[2] Era professor de um seminário holandês. Chama-se Jacob Hermann, cujo sobrenome latino era Arminius. Viveu entre 1560 a 1600. Era seguidor das doutrinas de Pelágio e Erasmo, e questionava a tradição reformada no que se refere à livre vontade do homem.
[3] Salmo 139.7
[4] Adams, Counseling and the five points of calvinism.
[5] Confissão de Fé de Westminster, cap. VI, parágrafo III
[6] Adams, Biblical Counseling and Practical Calvinism.
[7] Efésios 4.24

Rev. Baltazar L. Fernandes

15 junho 2007

Ordenação e confessionalidade

Em 1924, cerca de 1300 ministros presbiterianos, membros da Presbyterian Church in the United States of America [PCUSA], assinaram a liberal Declaração de Auburn, negando a necessidade de se aceitar algumas doutrinas para a ordenação de seus ministros e demais oficiais. Entre alguns dos ensinos da Confissão de Fé de Westminster este novo documento negava a inerrância da Escritura Sagrada, e declarava que a crença em doutrinas essenciais, como a expiação substitutiva de Cristo e a Sua ressurreição corpórea não deveriam ser “testes para a ordenação, ou para a boa norma da nossa igreja.” Este é um exemplo histórico do processo de degeneração doutrinária e moral que a nossa igreja-mãe [PCUSA] sofreu, e continua se apostatando da Palavra de Deus. Atualmente em defesa da inclusão homossexual, como uma prática não pecaminosa, estão propondo um novo documento eclesiástico chamado A Nova Declaração de Auburn.

Uma das marcas da verdadeira igreja é a sua pureza doutrinária. Entretanto, sabe-se que o processo de corrupção é primeiramente um problema ético que se manifestará confessional. Quando um candidato é chamado pelo concílio para ser ordenado ele deve prestar juramento e votos de fidelidade ao padrão doutrinário que a denominação sustenta. Todavia, em muitos casos, o que é declarado com a boca é desprezado pelo coração, ou ignorado pela mente. É possível que existam entre nós, ministros presbiterianos que estão sendo infiéis aos seus votos de ordenação! Fato é, que há muitos que negam abertamente dos seus púlpitos doutrinas claramente ensinadas na Confissão de Fé de Westminster como a inerrância das Escrituras Sagradas, ou, casos que desprezam na prática a necessidade de disciplina na Igreja, ou talvez mais escandalosamente, pastores faladores de línguas estranhas e que aceitam novas revelações sendo incoerentes com a doutrina da suficiência da Escritura Sagrada.

Este artigo tem o propósito de refletir a necessidade de revermos o importante processo de ordenação dos ministros e demais oficiais da nossa denominação. Creio firmemente, se não houver uma postura dos concílios, a começar pelo Supremo Concílio, acerca da prática de tolerância doutrinária que tem se espalhado em nossa denominação, em breve teremos ministros e oficiais se reunindo e tomando decisões similares àqueles que assinaram a Declaração de Auburn.

O cuidado na ordenação
A Palavra de Deus nos declara que a ordenação é realizada por oficiais autorizados por Deus e representantes da autoridade de Cristo (1 Tm 4:14). Por isso, o nosso Senhor exige que sejamos cuidadosos na ordenação dos oficiais. A Escritura nos adverte que “a ninguém imponhas precipitadamente as mãos” (1 Tm 5:22, ARA). Acerca desta passagem J.N.D. Kelly comenta que
"o reconhecimento que os presbíteros são passíveis de cair na má conduta, e do julgamento terrível que os aguarda caso assim fizerem, sublinha a importância de usar cuidado e deliberação extremos quando se nomeia tais oficiais. Além disto, está de acordo com a preocupação de Paulo nas [epístolas] Pastorais o fato de ser muito desejável obter para o ministério homens de caráter firme e comprovado. (...) Uma razão sadia porque um pastor principal deve exercer prudência em ordenar é evitar a associação de si mesmo com os pecados de outrem. Ele poderia, com toda justiça, ser considerado até certo ponto responsável se o homem a quem ordenara com pressa imprópria se tornasse ocasião de escândalo. Longe de permitir que isto acontecesse, o líder cristão que é conclamado a julgar, e também a castigar outros, deve (conforme Paulo admoesta a Timóteo) conservar-se a si mesmo puro, i.é., sua própria vida deve estar absolutamente acima de repreensão."[1]

A fidelidade aos votos da ordenação
O direito que a Igreja Presbiteriana do Brasil tem de determinar as qualificações dos candidatos a cargos eclesiásticos e de requerer-lhes compromissos de fidelidade é constitucional, moral e bíblico. A Confissão de Fé de Westminster declara que "quem vai prestar um juramento deve considerar refletidamente a gravidade de ato tão solene, e nada afirmar senão do que esteja plenamente persuadido ser a verdade, obrigando-se tão-somente por aquilo que é justo e bom, e que tem como tal, e por aquilo que pode e está resolvido a cumprir. É, porém, pecado recusar prestar juramento concernente a qualquer coisa justa e boa, que seja exigido pela autoridade legal."[2]

O pecado da reserva mental é uma prática comum em muitas situações onde o juramento é exigido. A reserva mental é o ato em que o indivíduo voluntariamente se limita a aceitar ou concordar, sem que seja por completo, mantendo algumas reservas, sem revelá-las aos seus inquiridores. Não é necessário dizer que esta atitude é pecaminosa, faltando com a transparência, e divorciando a palavra da disposição do coração. A Confissão de Fé de Westminster declara que "o juramento deve ser prestado conforme o sentido comum e claro das palavras, sem equívoco ou reserva mental. Não pode obrigar a pecar; mas, sendo prestado com referência a qualquer coisa não pecaminosa, obriga ao cumprimento, mesmo com prejuízo de quem jura. Não deve ser violado, ainda que feito a hereges ou infiéis."[3]

Existe uma outra situação onde o que jura também falha em seu juramento.[4] É possível que embora seja sincero em sua disposição em concordar com o que está declarando, mas que esteja mentindo por não conhecer ou não entender as implicações de seu juramento, ou das doutrinas que está aceitando. Esta prática não é menos pecado do que a desonesta reserva mental. Pois, como posso dizer que creio num sistema doutrinário que ignoro, ou não entendo? Ao participar de um grupo é indispensável que se saiba claramente qual o seu sistema doutrinário. O nosso é bem definido: os padrões de Westminster.


Notas:
[1] J.N.D. Kelly, I eII Timóteo e Tito – introdução e comentário (São Paulo, Ed. Vida Nova, 1986), p. 122.
[2] Confissão de Fé de Westminster XXII.3
[3] Confissão de Fé de Westminster XXII.4
[4] Lewis B. Smedes, Moralidad y Nada Más (Grand Rapids, Wm. B. Eerdmans Publishong Co., 1997), p. 232.

Rev. Ewerton B. Tokashiki

06 junho 2007

Baixou a bizarrice de quatro!

Agora a loucura baixou de vez! A falta da Palavra de Deus como ÚNICA REGRA DE FÉ E PRÁTICA só dá nestas bizarrices de "unção". Desta vez a Ana Paula Valadão resolveu soltar a franga e ficou de quatro para encenar que estava recebendo a "unção do leão"! (Não lembro em que livro e capítulo a Bíblia ensina isto, alguém poderia me refrescar a memória?). Se alguém se interessar, a Ana Paula deu a sua interpretação a respeito da sua experiência mística.

Mas, como para essa turma pentecostal a Bíblia não é referência de autoridade, o que conta é a EXPERIÊNCIA. Qualquer oposição à estas loucuras e bizarrices, atribuídas insanamente ao Espírito Santo, são tidas como menos espiritual e falta de amooorrrrrrrr!!! E, como este povo não gosta de pensar [haja as cãimbras entre as orelhas] e preferem apenas SENTIR, levam tudo para o subjetivismo ilimitado se defendendo com a irresponsável frase: "quem sou eu prá julgar?" A Escritura corretamente interpretada [por qualquer cristão] deve julgar o que é certo ou errado, como o que é sã doutrina e heresia advinda da ignorância, carnalidade, ou até ensino de demônios! Temos o DEVER de julgar à luz da Escritura Sagrada. Misericórdia quero e não o sacríficio de mente. Ele é o Espírito de sabedoria, não de comportamentos esquizofrênicos.

BASTA DE BIZARRICE EM NOME DO ESPÍRITO SANTO!!!!!!!!! Negar a obra do Espírito é perigoso, mas atribuir loucuras e bizarrices à Ele, é blasfêmia! Insanidade tem que ter limite. Chega de inclinar-se diante do trono da loucura.

Rev. Ewerton B. Tokashiki

04 junho 2007

Uma crítica à Hermenêutica Feminista

A Escritura é a autoridade final na Igreja. Logo, é necessário que todo intérprete se submeta à Escritura, e dela extraia o ensino, corretamente interpretado, da Palavra de Deus. Entretanto, não podemos pensar que todos lerão a Escritura sem preconceitos teológicos, e que chegarão às mesmas conclusões. Existem diferentes perspectivas hermenêuticas contemporâneas, mas a Hermenêutica Feminista será analisada como um exemplo do que acontece quando se abandona a autoridade final da Escritura.

A Teologia Feminista é um ramo dentro da conhecida Teologia da Libertação. Entretanto, as teólogas feministas em vez de usarem a Bíblia numa interpretação em favor dos pobres, a aplicação dos princípios da libertação é direcionada à mulher como desfavorecida, num ambiente predominantemente de domínio masculino. A Teologia Feminista propõe “refazer toda a teologia a partir do gênero, com a premissa de que toda a teologia ocidental foi construída a partir do domínio que exerce o homem e que, inclusive se encontra na mesma Bíblia.”[1] A interpretação feminista das Escrituras tem o seu ponto de partida num dos seus pressupostos básicos: a teologia deve fundamentar-se sobre a análise da realidade sociopolítica. Ela não começa com o texto e contexto da Escritura Sagrada, mas com o contexto social da mulher, como sendo oprimida numa sociedade de cosmovisão machista.

Todavia, é necessário observar que a articulista Helen Schüngel-Straumann nota que nem todas as teólogas feministas adotam a mesma perspectiva em relação à interpretação da Bíblia. Ela declara que em relação à Bíblia "Carolyn Osiek (em Collins 93s) distingue cinco atitudes: 1. A de uma rejeição total da Bíblia, de que é exemplo a obra de Mary Daly. 2. A de uma interpretação leal, que vê a Bíblia como revelação/palavra de Deus e que não admite dúvida a este respeito. Uma 3ª abordagem é a que ela denomina de revisionista. Nela é criticado unicamente o enfoque androcêntrico, voltando a ser prestigiadas as tradições feministas esquecidas. Como exemplo desta linha a autora menciona Phyllis Trible. A 4ª abordagem é descrita como sublimacionista, onde os preconceitos ideológicos (como o de que o feminino seria superior ao masculino) desempenham um papel importante e onde predominam as interpretações simbólicas-isoladas de que qualquer contexto político-social. Como 5ª abordagem, que ela vê como a mais importante em nossos dias, Osiek descreve a interpretação da Bíblia segundo a teologia feminista da libertação, a que associa os nomes de Rosemary Radford, Letty M. Russell e Elisabeth Schüssler Fiorenza. No espaço lingüístico alemão não se pode deixar de mencionar aqui Luise Schottroff."[2]

Para a Hermenêutica Feminista a adoção do pressuposto subjetivo da “opressão” é essencial na interpretação das Escrituras. Loren Wilkinson observa que a teóloga feminista “Elizabeth Schüssller Fiorenza, por exemplo, em Bread, Not Stones, argumenta que as mulheres devem tomar como ponto de partida a definição da sua situação de opressão, e depois abrir a sua Bíblia, a fim de descobrir o meio de alcançar a libertação.”[3] Este subjetivismo é uma característica das novas hermenêuticas que surgiram no século XX. Moisés Silva observa que “se há algo diferente na hermenêutica contemporânea é justamente a ênfase que ela dá à subjetividade e relatividade da interpretação.”[4] A Hermenêutica Feminista não é uma exceção entre as novas hermenêuticas que surgiram no século XX.

Além da “opressão”, outro pressuposto desta perspectiva é que a “experiência” feminina determina o resultado e a ação teológica. Christine Schaumberger observa que "o que é novo e especificamente feminista não é, pois, o realce sobre a categoria teológica da experiência, mas sim o concentrar-se no perceber e no refletir as experiências femininas. Experiências femininas é o ponto de partida da teologia feminista, e a medida para a crítica, o engajamento e o compromisso, para a criatividade re-visionária."[5] Entretanto, Schaumberger não define o que ela quer dizer teologicamente com “experiência” (do alemão erfahrung) dificultando a análise da sua tese. Na nova hermenêutica a interpretação e sistematização do ensino não é algo extraído das Escrituras, mas da experiência subjetiva do intérprete que impõe sobre o texto sagrado a sua opinião. Robert H. Stein conclui que “em razão disso, há ‘leituras’ ou interpretações marxistas, feministas, liberais, igualitárias, evangélicas ou arminianas do mesmo texto. Ou seja, para esta corrente os vários significados legítimos podem ser extraídos mediante a concepção de cada intérprete.”[6] A premissa de Schaumberger ignora, ou despreza que o fator determinante do significado do texto, é o seu autor. A passagem significa aquilo que o autor original, conscientemente, quis dizer ao produzir o texto.

Não deve ser esquecido de que o texto é resultado duma ação sobrenatural do Espírito Santo inspirando o autor bíblico. A formulação teológica não depende da experiência de gênero do indivíduo, mas da precisa exegese e sistematização das informações extraídas a partir das Escrituras. O apóstolo Pedro foi claro ao observar que “antes de mais nada, saibam que nenhuma profecia da Escritura provém de interpretação pessoal, pois jamais a profecia teve origem na vontade humana, mas homens falaram da parte de Deus, impelidos pelo Espírito de Deus” (2 Pe 1:20-21, NVI). Declarar que este, ou aquele autor bíblico é machista, é o mesmo que dizer que o Espírito Santo é machista!

John Frame comenta que “o livro She Who Is de Elizabeth Johnson é um amplo tratado acerca da doutrina de Deus, tem como sua tese principal a necessidade de se usar uma linguagem feminina (mais ou menos exclusivamente) com referência a Deus.”[7] Em outro lugar Frame menciona que "mas a [teóloga] feminista poderia replicar aqui que desde que Deus não é literalmente macho, e a Escritura contêm algumas figuras femininas assim como figuras masculinas, seria aceitável falar livremente de Deus tanto em termos masculinos como femininos. Johnson pergunta 'se não significa que Deus é macho quando uma figura masculina é usada, o porque da objeção, quando figuras femininas são apresentadas?'”[8]

Atualmente têm-se exigido o uso de uma linguagem “politicamente correta” na formulação teológica. Entre alguns teólogos, inclusive evangélicos, têm-se evitado o uso de palavras de cunho sexistas, isto é, dando-se a preferência por uma linguagem que seja inclusiva, e que não destaque nem favoreça o gênero masculino.[9] A crítica de John Frame é relevante "uma freqüente sugestão de compromisso é que eliminemos toda sexualidade na distinção lingüística, entre macho e fêmea, ao nos referirmos a Deus. Em vez de chamar Deus de nosso Pai, poderíamos falar de nosso Parente ou Criador. Uma linguagem unissex, todavia, sugere inevitavelmente que Deus é impessoal, o que é completamente inaceitável de um ponto de vista bíblico. Certamente ao eliminar Pai em favor de termos mais abstratos eliminaria algo muito precioso aos cristãos."[10]

A importância teológica da linguagem masculina usada para se referir a Deus se baseia no fato de que foi Ele mesmo que se revelou assim. Quando as teólogas feministas questionam o modo como os autores da Escritura descreveram o ser e os atos de Deus numa linguagem predominantemente de gênero masculino, elas não estão ignorando a doutrina da revelação, mas estão reformulando esta doutrina. O que está em questão não é apenas o como os autores descreveram Deus, mas como este conhecimento divino chegou até eles (epistemologia/revelação) e como se deu o processo de registro desta revelação (inspiração).

O problema da Hermenêutica Feminista não é apenas quais princípios metodológicos e premissas adotar, mas que tipo de Deus/Deusa querem adorar. As lentes feministas produzem uma releitura em toda a cosmovisão destas teólogas. Não é possível crêr que é uma questão de ênfase teológica, ou mera perspectiva de gênero. Tal conclusão seria irresponsável e superficial acerca desta escola hermenêutica.[11]

Notas:
[1] Alberto Fernando Roldán, Para que serve a teologia? (Curitiba, Editora Descoberta, 2000), p. 178.
[2] Helen Schüngel-Straumann, Bíblia in: Elizabeth Gossmann et al., orgs., Dicionário de Teologia Feminista (Petrópolis, Editora Vozes, 1997), pp. 210-214.
[3] Loren Wilkinson, A Hermenêutica e a Reação Pós-Moderna Contra a “Verdade” in: Elmer Dyck, ed., Ouvindo a Deus (São Paulo, Shedd Publicações, 2001), p. 160.
[4] Moisés Silva, Visões Contemporâneas da Interpretação Bíblica in: Walter C. Kaiser, Jr. & Moisés Silva, Introdução à Hermenêutica Bíblica (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2002), p. 233.
[5] Christine Schaumberger, Experiência in: Elizabeth Gossmann et al., orgs., Dicionário de Teologia Feminista (Petrópolis, Editora Vozes, 1997), p. 183.
[6] Robert H. Stein, Guia Básico para a Interpretação da Bíblia (Rio de Janeiro, CPAD, 1999), p. 23.
[7] John Frame, The Doctrine of God (Phillipsburg, P&R Publishing, 2002), p. 378. Frame está se referindo à Elizabeth A. Johnson, She Who Is (New York, Crossroad Publishing, 1996), p. 34. Este livro se encontra publicado em português com o título de Aquela que é (Petrópolis, Editora Vozes, 1995). Para a leitura de uma abordagem na mesma linha que Elizabeth A. Jonhson na teologia prática, bíblica, histórica e sistemática veja o artigo Deus/Deusa in: Elizabeth Gossmann et al., orgs., Dicionário de Teologia Feminista (Petrópolis, Editora Vozes, 1997), pp. 92-110.
[8] John Frame, The Doctrine of God, p. 383.
[9] Como exemplo de um caso de orientação quanto ao uso de uma linguagem inclusiva, não sexista, veja o site www.martinus.com.br/pastoral/carta4.html (acessado 04/06/2007).
[10] John Frame, The Doctrine of God, p. 385-386.
[11] Para uma consulta de uma teóloga brasileira sobre Hermenêutica Feminista acesse in: http://www.fazendogenero7.ufsc.br/artigos/I/Isabel_Aparecida_Felix_24_A.pdf .

Rev. Ewerton B. Tokashiki

24 maio 2007

Teologia Bíblica ou Sistemática?

Este artigo é uma análise do livro Teologia Bíblica ou Teologia Sistemática - Unidade e diversidade no Novo Testamento de Donald A. Carson que propõe discutir a possibilidade de se produzir a teologia sistemática à partir da teologia bíblica. O assunto não é tão simples quanto parece, pois, no cenário acadêmico a teologia bíblica desde o seu nascimento até os dias de hoje não tem desfrutado de homogenia metodológica. De uma forma mais delimitada Carson expõe a questão da unidade e diversidade no Novo Testamento (que é o subtítulo).

O problema
D.A. Carson em seu relevante livro aborda um problema de prolegômena à teologia. A discussão envolve a possibilidade duma dogmática a partir da teologia bíblica. Para responder a esta questão Carson verifica a temática acerca da unidade e diversidade entre os documentos do Novo Testamento. Segundo o próprio autor o seu objetivo é "focalizar um número de obras representativas, primeiro descrevendo-as e depois criticando-as, para finalmente oferecer algumas reflexões úteis ao estudante que esteja convencido de que os documentos do NT são nada menos que a Palavra de Deus e que, no entanto, não possa deixar de, por amor à integridade, lutar com sua diversidade substancial."[1]

No capítulo 2, o autor analisa a obra de J.D.G. Dunn, Unity and Diversity in the New Testament: An Inquiry into the Character of Earliest Christianity. Carson declara que Dunn edifica o seu argumento sobre o alicerce de Bauer, sem fazer uma avaliação crítica dos pressupostos metodológicos e teológicos deste autor (p. 35). O Dr. Carson apresenta as suas críticas aos teólogos que negam a unidade do NT. E a sua conclusão é de que se realmente houver uma diversidade que anula a unidade que gera uma incoerência intransponível entre os autores, e até mesmo entre os seus escritos no NT, então a conseqüência óbvia é de que será impossível construir uma teologia sistemática a partir dos documentos neo-testamentários. D.A. Carson não ignora que existam outros especialistas, que assumem premissas divergentes da sua, e que neguem a relação possível entre a teologia bíblica e sistemática, colocando uma oposta à outra.

Embora estas disciplinas sejam metodologicamente diferentes, entretanto, elas são complementares como sugere Geerhardus Vos. Ele declara que "a Teologia Bíblica ocupa uma posição entre a Exesege e a Sistemática na enciclopédia das disciplinas teológicas. Ela difere da Teologia Sistemática, não porque seja mais bíblica, ou por aderir mais estritamente às verdades da Escritura, mas em que o seu princípio de organizar o material bíblico é mais histórico do que lógico. Considerando que a Teologia Sistemática usa a Bíblia como um todo completo e empenha-se em exibir o seu completo ensino numa forma ordenada e sistemática, a Teologia Bíblica divide os assuntos a partir da perspectiva histórica, buscando demonstrar o crescimento orgânico ou desenvolvimento das verdades da Revelação Especial da primitiva Revelação Especial pré-redentiva entregue no Éden até o fechamento do cânon do Novo Testamento."[2]

Outro autor mais recente observa que a teologia sistemática é o "estudo metodológico da Bíblia que analisa a Escritura Sagrada como uma completa revelação, em distinção das disciplinas de Teologia do Antigo Testamento, Teologia do Novo Testamento e Teologia Bíblica, as quais se aproximam das Escrituras como uma revelação progressiva. Deste modo, o teólogo sistemático analisa as Escrituras como uma revelação completa, buscando entender holisticamente o plano, propósito e a intenção didática da mente divina revelada na Sagrada Escritura, e organizar este plano, propósito e intenção didática de modo ordenado e apresentação coerente como artigos da fé cristã."[3]

Infelizmente há quem queira continuar a controvérsia entre as áreas de Sistemática e Bíblica. Diante desta preocupação metodológica Gordon J. Spykman exorta-nos dizendo que
este é o momento apropriado para deixar de lado este falso dilema. Como em toda ciência, assim também na teologia, existem certas divisões de trabalho que coincidem com certas linhas demarcatórias naturais, dentro do campo global. Discerne-se claramente uma diferença de tarefas. Então, fique estabelecido, tanto na teologia bíblica como na dogmática, que cada uma tem sua identidade e integridade. Cada uma tem seu próprio campo de estudo, seus próprios princípios organizadores e suas metodologias. Assim, ambas são chamadas a serem “bíblicas” no sentido de serem fiéis a Bíblia. O fato de que a teologia bíblica trabalhe mais diretamente com pressupostos bíblicos não é garantia de ser mais fiel às escrituras que a dogmática, ainda que, esta última talvez, trabalhe mais diretamente com os dados bíblicos. Juntas devem inclinar-se ante a autoridade da Palavra de Deus como norma vigente para ambas disciplinas. Ambas são respostas teológicas a essa norma permanente. Todavia, são diferentes em suas áreas de investigação, em suas ferramentas e estudo, nos resultados de seus respectivos estudos. Estas diferenças devem ser honradas.[4]

O próprio Carson sugere que “a teologia bíblica precisa ser sistemática, mesmo que focalize o lugar e o significado históricos de um segmento específico da Bíblia; e a teologia sistemática, se depender de exegese honesta, deve forçosamente depender de considerações históricas.”[5]

A proposta do autor
A proposta do autor não é desenvolver uma demonstração da unidade do NT (p. 47). Por isso, ele não entre em detalhes técnicos, nem concede exemplos expressivos, no entanto, ele pretende oferecer “uma série de reflexões relativas à possibilidade de estabelecer uma teologia sistemática com base em tais documentos de natureza tão diversa.”[6] Mas, ao conceber que exista uma diversidade no NT, Carson observa que “a ampla diversidade existente não pode, portanto, envolver contradição lógica ou histórica.”[7] As diferenças entre os autores do NT reflete apenas interesses e estilos literários de cada autor, respeitando o seu contexto histórico imediato, e o propósito da aplicação da mensagem.[8]

Carson observa que "para o teólogo sistemático conservador já é difícil o bastante quando ele se defronta com a diversidade do Novo Testamento, sem que ele tenha de enfrentar a reorganização dogmática da evidência literária segundo as linhas da ortodoxia crítica. Enquanto vários críticos acusam-no de construir uma teologia sistemática rígida que o força a distorcer sua exegese, ele pode ser perdoado se descobrir que os que o criticam estão reconstruindo a história da igreja e desenvolvimento o que em outro lugar eu denominei de “histomática”, distorcendo assim a exegese de maneira muito mais séria."[9]

Alguns pressupostos metodológicos são propostos por Carson, para tornar a teologia bíblica uma ferramenta possível para a dogmática: 1) a aceitação da autoridade das Escrituras Sagradas; 2) o uso de todo o cânon (66 livros) na formulação da teologia; 3) o reconhecimento da revelação progressiva como o modo que a Escritura foi entregue em seus diferentes períodos da história da salvação; 4) o reconhecimento duma diversidade complementar no NT; 5) a harmonização teológica dos temas do NT; a necessidade de cautela com as aparentes discrepâncias, e da investigação do propósito da linguagem.

A conclusão final de Carson é que "há uma unidade de pensamento que torna a teologia sistemática não apenas possível, mas necessária, e que a teologia moderna que questiona esse ponto de vista está metodológica e doutrinariamente deficiente. É difícil conceber como a teologia sistemática defendida neste ensaio seja possível a não ser que os documentos do Novo Testamento (e os do Antigo Testamento também) sejam verdadeiros e fidedignos; e é difícil conceber como os mesmos documentos possam ser verdadeiros e fidedignos sem que a teologia sistemática seja ao mesmo tempo possível e necessária."[10]

A leitura deste livro torna-se indispensável para os estudiosos da teologia. É uma obra necessária para a Introdução à Teologia, Teologia do Antigo Testamento, Teologia do Novo Testamento, e afins.

Sobre o autor
Donald A. Carson é professor especializado em Novo Testamento.[11] Ele exerce a sua docência no Trinity Evangelical Divinity School em Deerfield, Illinois, EUA. Atua nesta instituição teológica desde 1978. O Dr. Carson recebeu o seu título de Bacharel em Science in chemistry [B.Sc.] da McGill University, e o de Master of Divinity [M.D.] do Central Baptist Seminary em Toronto, e o seu Doctor of Philosophy [PhD] com especialização em Novo Testamento pela Cambridge University. O seu perfil teológico é batista calvinista de linha conservadora.[12]

Notas:
[1] Donald A. Carson, Teologia Biblica ou Teologia Sistemática (São Paulo, Edições Vida Nova, 2001), p. 13. A versão inglesa está disponível.
[2] Geerhardus Vos, Biblical Theology – Old and New Testament (Edinburgh, The Banner of Truth Trust, 2000), p. v-vi.
[3] Robert L. Reymond, A New Systematic Theology of the Christian Faith (Nashville, Thomas Nelson Publishers, 2a.ed.rev., 2001), pp. xxv-xxvi.
[4] Gordon J. Spykman, Teologia Reformacional: un Nuevo Paradigma para hacer la Dogmática (Jenison, TELL, 1994), p. 10.
[5] Donald A. Carson, Teologia Biblica ou Teologia Sistemática, p. 27.
[6] Donald A. Carson, op.cit., pp. 47.
[7] Donald A. Carson, op.cit., p. 30.
[8] Donald A. Carson, op.cit., p. 73.
[9] Donald A. Carson, op.cit.. 64-65.
[10] Donald A. Carson, op.cit., pp. 94-95.
[11] http://www.monergism.com/thethreshold/articles/bio/dacarson.html acessado em 17/05/2007.
[12] http://www.monergism.com/thethreshold/articles/onsite/carsonatonement.html .

Rev. Ewerton B. Tokashiki

19 maio 2007

Uma introdução ao livro de Provérbios

1. Título
O título origina de uma raiz hebraica que significa “ser como”. Por isso, tem primariamente o sentido de “comparação” indicando duas situações de similar caráter.

2. Autoria
Há pelo menos sete indicações da autoria no próprio livro:
1. 1:1 – “provérbios de Salomão”.
2. 10:1 – “provérbios de Salomão” (título).
3. 22:17 – “palavras dos sábios”.
4. 24:23 – “provérbios dos sábios”.
5. 25:1 – “também estes são provérbios de Salomão, os quais transcreveram os homens de Ezequias, rei de Judá”.
6. 30:1 – “palavras de Agur, filho de Jaque, de Massa” (título).
7. 31:1 – “palavras do rei Lemuel, de Massa, as quais lhe ensinou sua mãe”.

O livro é prefaciado com o nome de Salomão, mas há uma seção atribuída aos “sábios”, e dois capítulos são atribuídos: um a Agur e o outro a Lemuel. Há quem tente explicar o fato, dizendo que Lemuel e Agur são outros nomes de Salomão, mas isso é improvável.
A tradição judaica no Baba Bathra 15a afirma que “Ezequias e seus companheiros escreveram os Provérbios”. Provavelmente que esta declaração talmúdica refira-se a “Ezequias e seus companheiros” não como autores, mas como compiladores que ajuntaram e editaram o livro, acrescentando outros provérbios.

Podemos admitir algumas conclusões:
1. A maior parte dos provérbios são realmente de Salomão. Conforme 2 Rs 4:32 lemos que Salomão “disse três mil provérbios e foram o seus cânticos mil e cinco”.
2. Agur foi o autor do cap. 30, e nada se sabe a seu respeito.
3. O rei Lemuel foi o autor do cap. 31, e também, nada se sabe sobre a sua identidade.
4. Podemos deduzir que Salomão tenha compilado e incluído os provérbios pré-existentes aos seus, os “provérbios dos sábios”. Edward J. Young observa que “pode ser que esta referência aos sábios não seja indicação de autoria, mas mostre simplesmente que as palavras empregadas pelo escritor são as aprovadas ou seguidas pelos sábios, ou pelo menos estão de acordo com os seus ditos”.[1]
5. Ezequias e sua equipe adicionaram em seus dias (cerca 700 a.C.), outros provérbios, talvez do próprio Salomão, e de outros sábios, que igualmente foram inspirados e guiados pelo Espírito Santo.
6. Os dois últimos capítulos são unidades independentes, de autores desconhecidos. Seriam como apêndices.

3. Data
Não há motivos sólidos para abandonarmos a autoria de Salomão da primeira parte do livro. Nesse caso, a data provável seria aproximadamente 950-900 a.C., para a escrita dos capítulos 1-24, na metade final do seu reinado, e aproximadamente 725-700 a.C. para os últimos capítulos 25-31, que foram compilados por “Ezequias e seus companheiros”.

O livro apócrifo Eclesiástico 47:17, cita Pv 1:6. Este apócrifo é datado em 200 a.C.. Ao citar Provérbios isso aponta algumas evidências da data do livro:
1. Provérbios já existia tempo suficiente, antes de Eclesiástico, para que tornasse reconhecido como fonte de autoridade canônica.
2. O livro de Provérbios influenciou o estilo literário de Eclesiástico, o que indica uma imitação daquilo que se tornara “padrão” no estilo Mashal.

4. Propósito
4.1. Propósito Didático
Advertir dos grandes perigos que resultam inevitavelmente por seguir os ditames da natureza ou paixões pecaminosas (Pv 1:1-7). “O propósito do escritor aqui é traçar o contraste mais nítido entre as conseqüências de buscar e encontrar a sabedoria e as de seguir uma vida de insensatez.”[2]

4.2. Propósito teológico
Foi escrito para dar ao povo de Deus um guia prático e memorável de como aplicar o conhecimento de Deus (o temor do Senhor) à vida diária, para aqueles que já entraram num relacionamento de Aliança com Ele. Mostrando como a Aliança com Deus tem aplicação extremamente prática no seu cotidiano.

5. Estrutura do Livro
5.1. Primeiro modelo:
1. Prólogo...................................................... 1:1-7
2. Provérbios aos jovens....................... 1:8-9:18
3. Miscelânea de Provérbios................ 10-24
4. Coleção de Ezequias.......................... 25-29
5. Apêndice de Agur e Lemuel............. 30-31

5.2. Segundo Modelo:
1. Título e assunto.................................................. 1:1-7
2. Vários discursos................................................. 1:8-9:18
3. Primeira coleção de provérbios de Salomão... 10:1-22:16
4. Primeira coleção das “palavras dos sábios”.. 22:17-23:14
5. Discursos adicionais.......................................... 23:15-24:22
6. Segunda coleção das “palavras dos sábios”... 24:23-34
7. Segunda coleção de provérbios de Salomão... 25:1-29:27
8. As palavras de Agur.......................................... 30:1-33
9. As palavras de Lemuel..................................... 31:1-9
10.O elogio à esposa prudente............................ 31:10-31

6. Análise do Conteúdo
O livro de Provérbios é uma excelente antologia de declarações sábias. Estimula de forma provocante a imaginação, levando o leitor a refletir nas implicações de uma verdade simples e evidente.

R.K. Harrison observa que “os provérbios consistem geralmente de breves e incisivas declarações em que podem ser usadas com grande efeito na comunicação de verdades morais e espirituais, sobre a conduta.”[3]

Klaus Homburg comenta que “no provérbio da sabedoria são formulados expressões proverbiais segundo os critérios da analogia e do paradoxo.”[4]

7. Contribuição ao Cânon
O texto do Talmud, Shabbath 30b registra a dúvida entre os rabinos quanto à canonicidade de Provérbios. Declara o Talmud que “o livro de Provérbios, também o procuraram esconder, por haver contradições no seu contexto”. E cita como exemplo a passagem de 26:4-5 que diz “não respondas ao insensato segundo a sua estultícia (...), ao insensato responde segundo a sua estultícia...”. Mas o próprio Talmud interpreta a situação afirmando que “não há dificuldade; um refere-se a assuntos da lei e o outro a negócios seculares.”

8. Fatos Interessantes
1. Em 1 Rs 4:32, Salomão fez 3000 provérbios e 1005 cânticos. O livro de Provérbios contém apenas 915 destes 3000.[5]
2. O cap. 31 inclui um poema acróstico (a primeira palavra de cada versículo começa com uma letra do alfabeto hebraico, vide* TM).

Notas:
[1] Edward J. Young, Introdução ao Antigo Testamento, p. 327
[2] W.S. Lasor, D.A. Lasor, F.W. Bush, Introdução ao Antigo Testamento, p. 502
[3] Roland K. Harrison, Introduction to the Old Testament, p. 1011
[4] Klaus Homburg, Introdução ao Antigo Testamento, p. 188
[5] Samuel J. Schultz, A História de Israel no Antigo Testamento, p. 273, nota 13

Rev. Ewerton B. Tokashiki

17 maio 2007

Uma introdução ao livro de Jó

1. Autoria
Há algumas opiniões discordantes quanto à autoria desta obra. A tradição judaica (Baba Bathra 14b e 15a) declara que o autor foi Moisés do livro de Jó. Vejamos algumas objeções à autoria mosaica:
1. A obra foi escrita no mesmo estilo de Provérbios (mashal); este estilo literário teve início no período do reinado de Salomão.
2. Se o livro fosse de autoria mosaica, sua posição no Cânon hebraico seria diferente. Jó é classificado como “Ketubim” (Escritos), e se encontra dentro do Texto Massorético entre o livro de Salmos e Provérbios. Se ele fosse uma obra mosaica, certamente seria colocado na mesma categoria que a Lei, ou subseqüente a ela.
3. A Lei era a referência para as demais obras do AT, seria difícil que uma obra de natureza refletiva ou meditativa tenha sido escrita por alguém cuja principal ocupação era a legislatura, mas este argumento não é decisivo. Davi era um rei com uma sensibilidade poética aguçada.

Sobre a autoria parece mais sensato que a obra foi redigida no tempo de Salomão. Vejamos alguns argumentos em seu favor:
1. Era uma época de paz em que as atividades literárias de sabedoria se desenvolveram. Um período propício para compor este livro.
2. O livro de Jó tem o caráter dos livros da sabedoria (hokhmah). Os comentaristas Keil-Delitzch observam que “é um característica daquele período criador e incipiente da hokhmah, daquela época salomônica da ciência e da arte, do mais profundo pensamento em matéria de religião e da arte, do mais profundo pensamento em matéria de religião revelada e de cultura inteligente e progressiva das formas tradicionais da arte, duma época sem precedentes, em que a literatura correspondeu ao zênite da magnificência gloriosa para que o reino da promissão tendia.”[1]
3. Há uma exaltação semelhante de sabedoria piedosa entre Pv 8 e Jó 28.
4. O autor mostra uma clara preferência pelo nome Elohim (traduzido por “Deus”). O nome Yahweh ocorre somente duas vezes no cap. 1, uma vez no cap. 12, uma vez no cap. 38, três vezes no cap. 40, e cinco vezes no cap. 42. Isto associa com os escritos de Salomão que geralmente utiliza o nome Elohim, e menos o nome Yahweh.[2]

2. Data da Escrita
Existem várias datas propostas:[3]
1. Na época de Salomão: Keil, Delitzsch, Haevernick
2. No séc. VIII (antes de Amós): Hengstenberg
3. No princípio do séc. VII: Ewald Riehm,
4. Primeira metade do séc. VII: Staehelin, Noeldeke
5. Na época de Jeremias: Koenig, Gunkel, Pfeiffer
6. No exílio babilônico: Cheyne, Dillmann
7. No séc. V: Moore, Driver, Gray, Dhorme
8. No séc. IV: Eissfeldt, Voltz
9. No séc. III: Cornill

Adoto uma posição apoiada em algumas evidências literárias. O livro foi escrito durante o reinado de Salomão. Os três amigos eram árabes. O local onde Jó residia era Harã, ao norte da Palestina, perto de Damasco. Não há qualquer referência à Lei de Moisés, ou registro de fatos da história judaica. “Jó pertence em pensamento e forma à corrente literária que se originou com Salomão; daí ter maior semelhança ao livro de Provérbios do que qualquer outro livro no Velho Testamento.”[4]

3. Gênero Literário
Quanto ao estilo literário Sellin-Fohrer observam que o livro "nos mostra que seu autor é um mestre da palavra raramente superado, um mestre dotado de poder de criatividade barroca e possuidor de elevada cultura, como nos indicam não só as imagens, numerosas e multiformes, que exprimem os sentimentos mais variados em um só e mesmo discurso, como também as expressões raras, ou que já nem mesmo se usavam."[5]

Samuel J. Schultz considera o livro de Jó como sendo “apropriadamente classificado como um drama épico. Apesar de que a porção principal da composição seja de natureza poética e tenha a forma de um debate, o arcabouço é escrito em prosa. Neste último, a narrativa provê a base para a discussão inteira.”[6]

4. Situação Histórica
Jó foi um personagem histórico como indicam Ez 14:14 e Tg 5:11. Parece que Jó viveu no período dos patriarcas, embora, não se pode fazer nenhuma afirmação absoluta. Vejamos algumas evidências:
1. Jó é identificado como um habitante de Uz, e não de um lugar fictício (1:1). As referências bíblicas a Uz sugerem um local a leste de Edom (Gn 10:23; Jr 25:20; Lm 4:21). A LXX traduz terra dos Aisitai, povo, que segundo o geógrafo Ptolomeu, se localiza no deserto da Arábia perto dos edomitas do monte Seir.
2. Elifaz, amigo de Jó, era de Temã, localidade bem conhecida perto de Edom.
3. Eliú pertencia aos buzitas, região perto dos caldeus;
4. A riqueza é medida pela quantidade em animais. Isso nos lembra os dias de Abraão (Gn 13:1-11);
5. A narrativa faz menção a uma época anterior à legislação do Sinai (1:5).
6. A ausência de citações sobre as instituições israelitas, indica um cenário patriarcal.
7. Jó viveu um modelo patriarcal de vida e religião.
8. A idade avançada de 140 anos de Jó (42:16) está mais de acordo com a idade atingida pelos patriarcas.

5. Propósito
5.1. Propósito Didático
Mostrar como Deus pode usar a adversidade, bem como a prosperidade para ensinar o seu povo, para se dar a conhecer a Si mesmo (Jó 42:5).

5.2. Propósito Teológico
Mostrar a soberania de Deus. Deus usa os piores ataques de Satanás para o cumprimento do seu santo decreto (Jó 42:2). O soberano Deus ilustra através da vida de Jó, que “todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito” (Rm 8:28).

6. Estrutura do Livro
1. O Contexto Familiar........................ 1:1-2:13
2. Lamentação de Jó............................ 3:1-26
3. Discursos Com os Três Amigos...... 4:1-31:40
1. primeiro ciclo de discursos.......... 4:1-14:22
2. segundo ciclo de discursos.......... 15:1-21:34
3. terceiro ciclo de discursos.......... 22:1-31:40
4. Discursos de Eliú............................. 32:1-37:24
5. Pronuncio do Senhor...................... 38:1-42:6
6. Conclusão......................................... 42:7-17

1. Prólogo (prosa)................................ 1-2
2. Diálogos............................................ 3-28
2.1. Lamento inicial de Jó.............. 3
2.2. Diálogo entre Elifaz e Jó......... 4-5; 15; 22
2.3. Diálogo entre Bildade e Jó..... 8; 18; 25
2.3. Diálogo entre Zofar e Jó........ 11; 20
4. Poema de sabedoria...................... 28
5. Série de discursos......................... 29-42
5.1. Jó alega inocência................... 29-31
5.2. Discursos de Eliú.................... 32-37
5.3. Discursos de Yahweh............ 38-42:6
6. Epílogo............................................ 42:7-17

7. Análise do Conteúdo
Sellin-Fohrer fazem uma preciosa contribuição em perceber que "o poeta de Jó não aborda o problema da Teodicéia, sob a forma do sofrimento merecido do justo, ou sob a forma da justiça de Deus, em contraposição com a experiência humana. Isto estaria em contradição com o pensamento concreto e subjetivo do israelita. Também ele não apresenta pura e simplesmente um acontecimento. Pelo contrário: trata-se aí de um problema vital: o problema da existência humana vivida no sofrimento; trata-se da questão sobre o modo de proceder corretamente dentro dessa existência. Jó vive o comportamento que lhe parece possível e correto. Os amigos querem ensinar-lhe um comportamento que, no seu parecer, é o melhor, e Deus o coloca diante do problema decisivo no que respeita a seu comportamento. (...) A narrativa que enquadra o poema interpreta o sofrimento como provação do homem que deve, por este meio, confirmar a sua piedade que alimentar até então. Os amigos de Jó atribuem a infelicidade às culpas do homem, e o convidam a se desviar do mal, a se voltar humildemente para Deus e a se converter radicalmente. (...) Passando por cima de todas estas opiniões – as ortodoxas e as heréticas -, o poeta de Jó, que faz Deus condenar, inclusive, os amigos de Jó, apesar de sua fé imaculada, e recomendá-los à intercessão daquele Jó que antes parecia tão herético, parte em busca de sua própria solução, a qual atesta a profunda influência da fé profética: a atitude correta do homem no sofrimento é o silêncio humilde, na plena entrega de si mesmo, brotando da paz com Deus, e baseada não somente na intuição de que o sofrimento decorre de uma intervenção misteriosa, impenetrável, mas inteiramente lógica de Deus, mas também na certeza da comunhão com Deus, a qual faz com que tudo o mais seja secundário."[7]

8. Unidade
O livro demonstra uma unidade natural e estrutural.[8] Não há discussões relevantes quanto a este aspecto.

9. Fatos Interessantes
1. Jó é a maior de todas as obras dramáticas do AT.
2. Nenhum livro da Bíblia revela tanto da pessoa e do caráter de Satanás.
3. É citado explicitamente uma vez no NT (1 Co 3:19 – Jó 5:13).
4. Implica que a terra é esférica (22:14), pendurada no espaço (26:7).

Notas:
[1] C.F. Keil & F. Deltzch, Commentary on the Old Testament: Job-Psalms vol.5, p. 19 (Books for the Ages, 1997), CD-Master Library Christian 01/02, in loco.
[2] Gleason L. Archer, Merece Confiança o Antigo Testamento? (São Paulo, Edições Vida Nova, 1993), p. 410
[3] Edward J. Young, Introdução ao Antigo Testamento (São Paulo, Edições Vida Nova, 1963), pp. 334-338
[4] Clyde T. Francisco, Introdução ao Velho Testamento (São Paulo, JUERP, 1983), p. 216
[5] E. Sellin, G. Fohrer, Introdução ao Antigo Testamento (São Paulo, Edições Paulinas 1980), vol.II, p. 480
[6] Samuel J. Schultz, A História de Israel no Antigo Testamento (São Paulo, Ed. Vida Nova, 1995), p. 265
[7] E. Sellin, G. Fohrer, Introdução ao Antigo Testamento, vol. 2, pp. 496-497
[8] Aage Bentzen, Introdução ao Antigo Testamento (São Paulo, ASTE, 1968), vol. 2 pp. 197-202, considera a prosa e a maior parte das seções poéticas como uma unidade.