Não poderíamos continuar sem antes verificar os dados bíblicos. Poderia ser acrescentado que, apesar de Deus ser o Criador, e por isso o modelo tanto para as virtudes “masculinas” e “femininas” (mas que estas sejam bem definidas), as figuras bíblicas de Deus como gênero, lhes é relevante, e que são predominantemente masculinas. Os pronomes e verbos que se referem a Deus são sempre masculinas na Escritura, e as figuras que usa para si (Senhor, Rei, Juiz, Pai, marido) são tipicamente masculinas.[1]
Todavia, há algumas figuras femininas de Deus na Bíblia. Em Deuteronômio 32:18, Deus, através de Moisés, repreende Israel, dizendo:
Abandonaste a Rocha que te gerou;
E te esqueceste do Deus que te deu o nascimento.
Nesta figura, Deus usa tanto funções masculinas como femininas na origem de Israel. Em Números 11:12, Moisés frustrado com a murmuração dos israelitas, nega que não foi ele, mas Deus, quem havia concebido aquele povo e conduzido-os. Assim ele pergunta: “porque, Tu ordenas-me para conduzi-los em meus braços, como uma ama conduz uma criança?” Talvez o pensamento expresso em Deuteronômio 32:18 descansa nas palavras de Moisés: Deus concebeu Israel e lhe deu o nascimento, e assim Deus deveria ser sua ama. Estas duas passagens são mencionadas muitas vezes na literatura feminista, mas a figura feminina não é enfatizada. No contexto, nada mais é feito pelo fato de que Deus concede o nascimento ou pode ser uma ama. A figura aqui é menos impressionante do que de Gálatas 4:19, onde o apóstolo Paulo descreve a si mesmo como em dores de parto pela igreja, e em 1 Tessalonicenses 2:7, onde diz que ele e seus cooperadores foram “carinhosos entre vocês, como uma mãe acaricia aos seus pequeninos bebês.” Ninguém sugeriria com base nestas passagens que podemos concluir que Paulo era uma mulher. Nem que Números 11:12 e Deuteronômio 32:18 nos exigem repensar o gênero de Deus.[2]
Em Isaías 42:14, Deus declara um ameaçador julgamento:
Por muito tempo me calei
Estive em silêncio e me contive;
Mas agora darei gritos como a parturiente,
E ao mesmo tempo ofegarei,
E estarei esbaforido.
Escritoras feministas mencionam diversas vezes esta passagem apresentando-a como uma figura de Deus. A figura aqui certamente é feminina. Uma mãe ansiosa pode passar muitos meses em modesto silêncio, mas quando chega o seu tempo de dar a luz, ela gritará! Semelhantemente, Deus demora o seu julgamento, mas quando o tempo certo vem, ele certamente fará a sua presença conhecida. De fato, a Escritura menciona muitas vezes, o sofrimento do nascimento como uma figura da maldição de Deus (Gn 3:16) e, proverbialmente, o pior sofrimento imaginável. Assim, como uma metáfora, ela se aplica natural e freqüentemente tanto a homens como a mulheres. Salmo 48:4-6 diz:
Por isso, eis que os reis se coligaram
E juntos sumiram-se;
Bastou-lhes vê-los, e se espantaram,
Tomaram-se de assombro
E fugiram apressados.
O terror ali os venceu,
E sentiram dores como de parturiente.
Os reis são homens, mas eles tremeram como uma mulher em momento de parto (cf. Is 13:8; 21:3; 26:17; Jr 4:31; 6:24; Mq 4:9). Enquanto a Escritura usa esta metáfora feminina para Deus, ela não nos dá mais coragem para pensar de Deus como fêmea, do que nos dá a pensar daqueles reis como mulheres. A figura feminina usada para Deus em Is 42:14-15 é comum na Escritura, e muitas vezes é usada para personagens masculinos.
Em Lucas 15:8-10, Jesus nos conta uma parábola acerca de uma mulher que acende uma lâmpada, varre a casa, e procura cuidadosamente para encontrar uma moeda perdida. Quando ela a encontra, chama as suas amigas para junto regozijarem. Alguns crêem que a mulher representa Deus, talvez, especificamente Jesus, como faz o pastor e o pai nas outras duas parábolas em Lucas 15. Todavia, a parábola enfoca mais sobre a alegria dos amigos (i.e., os anjos, vs. 10) do que sobre o esforço doméstico. Em Mateus 23:37, Jesus compara a si mesmo a uma galinha que deseja ajuntar os seus pintinhos debaixo de suas asas. Esta é certamente uma metáfora feminina, mas certamente não é algo que leva em questão o gênero de Jesus.
Além destas passagens específicas, há algumas idéias bíblicas mais latas em que alguns pressupõem um elemento feminino de alguma espécie em Deus. Uma é o uso de raham e splanchnizomai para compaixão divina, um uso que discuto brevemente numa nota de roda-pé anterior. Veja o capítulo 20 para maiores discussões.
Outro é o uso da palavra Espírito (heb. Ruah, gr. Pneuma). Ruah é um substantivo feminino, e Gn 1:2 ilustra o Espírito “chocando” como uma ave mãe. A Escritura também representa o Espírito como o doador da vida (Sl 104:30), particularmente do novo nascimento (Jo 3:5-6).
Não se pode, entretanto, deduzir muita coisa deste ponto gramatical. Substantivos femininos, necessariamente, não denotam personagens femininos,[3] e o termo grego correspondente pneuma é neutro. Além do mais, “pairar” é também uma interpretação possível da palavra rahaf em Gênesis 1:2. E em João 3, a palavra traduzida “nascido” (gennao) pode significar “gerado” bem como “conduzido”, podendo se referir a função masculina de procriar. Todavia, a interpretação “conduzido” é preferível em João 3:5 por causa da resposta de Nicodemos no verso 4. Poderia concluir que é possível ser um conjunto de figuras femininas do Espírito na Escritura, mas que dificilmente sugeriria que o Espírito é um personagem feminino da Trindade.[4] Se o grupo de figuras, como discutimos anteriormente, é insuficiente para justificar em falar-se da divina feminilidade, certamente que duas figuras não são suficientes para provar a feminilidade do Espírito.
Outro conceito sob discussão é acerca da sabedoria (heb. Hokmah, gr. Sophia). Os termos, tanto no grego como no hebraico, são substantivos femininos, e em Provérbios, a sabedoria é personificada como uma mulher (7:4; 8:1-9:18). Sabedoria é uma figura divina em Provérbios 8:22-31, e o Novo Testamento identifica-a com Cristo (1 Co 1:24, 30; Cl 2:3; cf. Is 11:2; Jr 23:5), ela também é usada em relação ao termo Palavra (João 1:1-18). Igualmente, têm-se concluído que a segunda pessoa da Trindade é feminina.[5]
Contudo, este argumento é muito fraco. A primeira coisa a ser notada é que, Jesus é inquestionavelmente homem. Entretanto, a sugestão de que sabedoria requer uma personificação feminina é simplesmente errada. Pois a personificação da sabedoria em Provérbios possui perfeitamente uma óbvia razão para isto, que nada tem haver com um elemento de feminilidade na Divindade. Provérbios 1-9 apresenta ao leitor a figura de duas mulheres chamadas de “Senhora Sabedoria” e a “Senhora Loucura”. A Senhora Loucura é a prostituta que seduz um jovem para a imoralidade. A Senhora Sabedoria também chama aos homens da cidade (8:1-4), persuadindo-os a levar uma vida piedosa. A Sabedoria é uma senhora, não porque o escritor procurou afirmar um elemento de feminilidade na Divindade, mas simplesmente como um recurso literário apresentando como uma alternativa positiva para a prostituta.
Minha conclusão destas referências bíblicas é que existem poucas figuras femininas de Deus na Escrituras, mas elas não sugerem nenhuma ambivalência sexual na natureza divina. Elas não justificam, nenhuma necessidade, do uso de “Mãe” ou pronomes femininos para Deus. Nem justifica a tentativa de reprimir o uso majoritário de figuras e pronomes masculinos em referência a Deus.
Notas:
[1] Há apenas uma juíza, Débora (Jz 4-5).
[2] Obviamente, não poderíamos tirar tal conclusão de Is 46:3. Passagens que mencionam a concepção e nascimento de Israel, não sugerem que Deus concebeu e formou a nação. De fato, ele o fez, num sentido, e a passagem pode fazer uma recordação de Dt 32:18. Todavia, Is 46:3 não contribui para fortalecer a tese teológica do Deus feminino. O mesmo poderia ser declarado de Is 49:15, que muitas vezes é mencionado na literatura feminista. Nesta passagem, Deus coloca o seu amor pelo seu povo acima e além do amor de uma mãe pelo seu bebê. Há uma semelhança entre Deus e a mãe, mas a ênfase de contraste é mais predominante. Deus reivindica, ser não a mãe, mas ser maior que qualquer mãe. E, em Is 66, é Sião quem está em trabalho de parto (vs. 8), e quem amamentará (vs. 11-12). A única função maternal de Deus nesta passagem é confortar (vs. 13).
[3] Desde que exemplos podem, às vezes, ajudar a induzir-nos ao hábito de demasiada confiança na forma gramatical, eu poderia ilustrar que o termo latino uterus (útero, em português) é masculino.
[4] Veja Elizabeth A. Johnson, She Who Is (New York, Crossroad Publishing, 1996), p. 50-54, para algumas referências. Johnson prefere não limitar a feminilidade de Deus a pessoa do Espírito, apesar de discutir extensivamente acerca do Espírito (pp. 124-149). Este livro se encontra publicado em português: Elizabeth A. Johnson, Aquela que é (Petrópolis, Editora Vozes, 1995).
[5] Ibid., 150-169.
Extraído de John M. Frame, The Doctrine of God (Phillipsburg, P&R Publishing, 2002), pp. 380-383.
Traduzido por Rev Ewerton B. Tokashiki
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