31 outubro 2006

Comemorando a Reforma

Há 489 anos atrás um padre colocava um cartaz, contendo 95 teses, na porta da Catedral de Wittenberg. No dia 31 de Outubro, Martinho Lutero resolveu expor publicamente o que ele descobrira acerca da salvação nos seus estudos da Escritura Sagrada.

Eventos antecedentes à Reforma

A Reforma iniciou num ambiente favorecido pela crise que a Europa sofria durante a Idade Média. Seis eventos podem esclarecer a origem deste movimento:

1. A origem e desenvolvimento da burguesia. Durante a Idade Média uma nova classe social surgiu no sistema feudal. Uma "classe média" interpôs-se entre os senhores feudais e os seus miseráveis vassalos. Artesãos enriqueciam, e começaram a enviar os seus filhos para os monastérios, não com o intuito de tornarem-se monges, mas para aprenderem o uso das letras, para adquirir a cultura necessária para aplicá-la nas transações comerciais emergentes.

2. A origem das universidades. Os monges eram os detentores da cultura, por isso, criaram escolas anexas aos seus monastérios. Os senhores feudais e os burgueses com recurso financeiro enviavam os seus filhos para serem educados por eles. A partir do século XI a Europa passa a ter seis centros culturais nas cidades de Salerno, Bolonha, Salamanca, Coimbra, Orfoxd, e Paris. Este movimento educacional conhecido como Escolasticismo limitava-se ao estudo de quatro áreas especiíficas como a medicina, direito, artes e a teologia, que era o centro unificador destes cursos recebendo o título de rainha das ciências.

3. O enfraquecimento do poder político da Igreja Católica Romana. O evento conhecido como Cativeiro Babilônico, em que o Papa Bonifácio VIII, ficou prisioneiro do rei francês Felipe, causou uma mudança no eixo do controle da Europa medieval. O Papa que então entronizava, ou efetiva maldições sobre reis e reinos, tornava-se detento de sua própria estratégia de centralizar o poder. Em reação, o clero romano propõe anular o seu papado, sob domínio francês, e anunciar um substituto; então, surgem simultaneamente três papas na Europa: Urbano VI, em Roma, Bento XIII, em Avinhão e Clemente VIII, em Anagni. Esta controvérsia ficou conhecida como o Grande Cisma (1378-1423).

4. O grande número de mortes por causa da Peste [bubônica], em 1347. Com a desestruturada migração para as cidades, a falta de recursos básicos em higiene e moradia, bem como a proliferação de animais peçonhentos, propiciou para um ambiente em que uma pandemia como a peste bubônica se alastrasse de uma forma nunca vista antes na Europa medieval. A religião não forneceu respostas, nem garantias para a presente vida. As pessoas procuravam assegurar a sua vida eterna através das exigências da Igreja Romana. Este ambiente religioso gerou um sentimento apocaliptíco na Europa, de modo que a Igreja reconquistou o controle sobre a população européia.

5. A crise moral e doutrinária da Igreja Católica. Apesar dos conflitos internos e externos a Igreja tentava centralizar o poder em Roma, convergindo a atenção da Cristandade na construção da suntuosa Basílica de São Pedro. A simonia tornou-se a prática dominante entre os arrecadores de dinheiro para tamanho empreendimento arquitetônico. Vendia-se de tudo o que era identificado como "sacro", desde unhas, ossos, roupas, objetos de santos, dos apóstolos, e do próprio Cristo. Mas, a indulgência era o produto mais procurado para aquisição, pois, segundo o ensino católico, garantia o perdão dos pecados passados e futuros, bem como o alívio das almas presentes no purgatório. A imoralidade havia se alastrado em todas as áreas da Igreja e da sociedade.

6. O desenvolvimento do movimento Humanista nas universidades. Apesar da maioria da população ser controlada pela Igreja Romana, um grupo pensante questionava as incoerências doutrinárias e morais ensinadas pela Igreja Romana. O espírito pesquisador levou os humanistas a procurarem esclarecimento, não apenas nas respostas prontas da tradição católica, mas a retornarem ad fontes. O estudo dos textos clássicos impulsionaram estes pesquisadores a redescobrirem os antigos filósofos, os Pais da Igreja, mas principalmente, o estudo das Escrituras a partir dos originais hebraico e grego. Assim, descobriram que algumas das doutrinas centrais da fé católica derivaram a sua origem de uma má interpretação e tradução da Vulgata Latina, e de uma tradição distorcida.

O início da Reforma

Dentro deste contexto ocorre uma mudança na vida de Martinho Lutero. A conversão de Lutero aconteceu entre 1516-17, sobre a qual ele descreveu o seguinte: “embora eu vivesse irrepreensível como um monge, percebi que era um pecador diante de Deus, com uma consciência extremamente perturbada. Não conseguia crer que Ele estava satisfeito com a minha dedicação. Eu não o amava; sim, eu odiava o Deus justo que punia pecadores, e secretamente, se não de maneira blasfematória, certamente murmurando, estava com ódio de Deus... Finalmente, pela misericórdia de Deus, meditando dia e noite, dei ouvidos ao contexto das palavras: ‘A justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito, 'O justo viverá por fé'’ (Rm 1:17). Então, comecei a compreender que a justiça de Deus é aquela mediante a qual o justo vive por uma dádiva de Deus, ou seja, pela fé. E, é este o significado: a justiça de Deus é revelada pelo evangelho, a saber, a justiça passiva com a qual o Deus misericordioso nos justifica pela fé, segundo está escrito: ‘O justo viverá por fé’. Aqui, senti como se renascesse totalmente e entrasse no paraíso pelos portões abertos" (Preface to Writings on Latim, Luther's Works, vol. 34, pp. 336-37).

Houve muita controvérsia dentro da Igreja, por causa dos escritos de Martinho Lutero, porque muitos desejavam uma reforma moral, educacional, social, mas principalmente teológica. Com a excomunhão de Lutero, em 15 de Junho de 1520, ficou consumado a divisão entre reformadores e católicos. Com o reformador alemão outros adotaram o programa de reformar a Igreja e a sociedade, usando o princípio da sola Scriptura [somente a Escritura é fonte e autoridade final], como Ulrich Zuínglio, Felipe Melanchton, Martin Bucer e João Calvino. A Reforma expandiu-se da Alemanha e Suiça para todo o continente europeu.

Breve cronologia biográfica de Lutero

1483 - Nascimento de Lutero em Eisleben
1490 - Foi para a escola de Mansfeld
1497 - Mudou-se para a escola de Magdeburg
1498 - Mudou-se para a escola de São Jorge em Eisenach
1501 - Iniciou na Universidade de Erfurt
1505 - Tornou-se noviço agostiniano
1507 - É ordenado monge
1507 - Enviado para Universidade de Wittemberg por Johann von Staupitz
1510 - Ida à Roma
31/10/1517 - Escreve as 95 teses
1519 - Debate de Leipzig com Johann Eck
1520 - Recebe a bula papal Exsurge Domini decretando a sua exclusão
1521 - Dieta de Worms
1522 - Controvérsia com "os entusiastas" [profetas de Zwickau]
1524-1525 - Ocorre a revolta dos camponeses
1525 - Lutero rompe com os Humanistas [Erasmo de Rotterdam]
1529 - Debate com Zwinglio sobre a Ceia do Senhor
1530 - Escrita a Confissão de Augusburg por Felipe Melanchthon
1531 - União Esmalcada - defesa contra os princípes católicos
18/02/1546 - Lutero falece em Eisleben

Rev. Ewerton B. Tokashiki

30 outubro 2006

Carta de Calvino a Lutero

21 de Janeiro de 1545

Ao mui excelente pastor da Igreja Cristã, Dr M. Lutero, meu tão respeitado pai.[1]

Quando disse que meus compatriotas franceses,[2] que muitos deles foram retirados da obscuridade do Papado para a autêntica fé, nada alteraram da sua pública profissão,[3] e que eles continuam a corromper-se com a sacrílega adoração dos Papistas, como se nunca tivessem experimentado o sabor da verdadeira doutrina, fui totalmente incapaz de conter-me de reprovar tão grande preguiça e negligência, no modo que pensei que ela merece. O que de fato está fazendo esta fé que mente sepultando no coração, senão romper com a confissão de fé? Que espécie de religião pode ser esta, que mentindo submerge sob semelhante idolatria? Não me comprometo, todavia, de tratar o argumento aqui, pois já o tenho feito de modo mais extenso em dois pequenos tratados, e que, se não te for incomodo olha-los, perceberá o que penso com maior clareza em ambos, e através da sua leitura encontrará as razões pelas quais tenho me forçado a formar tais opiniões; de fato, muitos do nosso povo, até aqui estavam em profundo sono numa falsa segurança, mas foram despertados, começando a considerar o que eles deveriam fazer. Mas, por isso que é difícil ignorar toda a consideração que eles têm por mim, para expor as suas vidas ao perigo, ou suscitar o desprazer da humanidade para encontrar a ira do mundo, ou abandonando as suas expectativas do lar em sua terra natal, ao entrar numa vida de exílio voluntário, eles são impedidos ou expulsos pelas dificuldades duma residência forçada. Eles têm outros motivos, entretanto, é algo razoável, pelo que se pode perceber que somente buscam encontrar algum tipo de justificativa. Nestas circunstâncias, eles se apegam na incerteza; por isso, eles estão desejosos em ouvir a sua opinião, a qual eles merecem defender com reverência, assim, ela servirá grandemente para confirmar-lhes. Eles têm requisitado-me de enviar um mensageiro confiável até a ti, que pudesse registrar a tua resposta para nós, sobre esta questão. Pois, penso que foi de grande conseqüência para eles ter o benefício de tua autoridade, para que não continuem vacilando; e eu mesmo estou convicto desta necessidade, estive relutante de recusar o que eles solicitaram.

Agora, entretanto, mui respeitado pai, no Senhor, eu suplico a ti, por Cristo, que você não desprezes receber a preocupação para tua causa e minha; primeiro, que pudesse ler atentamente a epistola escrita em teu nome, e meus pequenos livros, calmamente e nas horas livres, ou que pudesse solicitar a alguém que se ocupasse em ler, e repassasse a substância deles a você. Por último, que escrevesse e nos enviasse de volta a tua opinião em poucas palavras. De fato, estive indisposto em incomodá-lo em meio a tantos fardos e vários empreendimentos; mas tal é o teu senso de justiça, que não poderia supor que eu faria isto a menos que compelido pela necessidade do caso; entretanto, confio que me perdoará.

Quão bom seria se eu pudesse voar até ti, pudera eu em poucas horas desfrutar da alegria da tua companhia; pois, preferiria, e isto seria muito melhor, conversar pessoalmente contigo, não somente nesta questão, mas também sobre tantas outras; mas, vejo que isto não é possível nesta terra, mas espero que em breve venha a ser no reino de Deus.

Adeus, mui renomado senhor, mui distinto ministro de Cristo, e meu sempre honrado pai. O Senhor te governe até o fim, pelo Seu próprio Espírito, que possas perseverar continuamente até o fim, para o benefício e bem comum de Sua própria Igreja.

Notas:
[1] Nota do tradutor: o especial interesse por esta carta, pelo que sabemos, é que ela é a única que Calvino escreveu a Lutero.
[2] Nota do tradutor: pelo que parece Calvino se refere aos huguenotes que embora haviam assumido o compromisso com uma confissão de fé reformada, mas na prática ainda preservavam os ídolos, toda a pompa e ritual da missa católica romana. Esta prática evidenciava uma incoerência entre o ato e a convicção de fé.
[3] Nota do tradutor: Calvino se refere ao culto como uma confissão pública de fé.

Extraído de Letters of John Calvin: Select from the Bonnet Edition with an introductiory biographical sketch (Edinburgh, The Banner of Truth Trust, 1980), pp. 71-73.

Tradução
Rev. Ewerton B.Tokashiki

28 outubro 2006

Um blog de tradução calvinista

O Rev Ewerton B Tokashiki fez um blog só de pequenas traduções. O site chama-se Traductione Reformata - "tradução de textos selecionados de escritores calvinistas". A expressão latina traductione reformata significa "tradução reformada" indicando o conteúdo destes pequenos textos.

O critério para selecionar os textos é a sua brevidade, consistência teológica reformada e fidelidade à Bíblia como nossa única regra de fé e prática. São pequenos diamantes da literatura reformada. Às vezes, se limitam a parágrafos de alguns livros, mas, a proposta é esta: oferecer aos leitores brasileiros porções de livros que estão em inglês, ou espanhol, e que não tenham acesso a estas preciosas obras.

Acesse e divulgue www.textocalvinista.blogspot.com

Boa leitura

27 outubro 2006

Teologia para a Igreja

Não devemos esquecer que o Seminário Teológico, mesmo enquanto instituição, é uma extensão da Igreja, e como tal, deve participar das suas lutas, dúvidas, anseios e dificuldades. O dom de mestre é dado à Igreja, e não apenas aos centros acadêmicos.

Os professores dos nossos Seminários devem ser referenciais de erudição e piedade. O orgulho é um grande mal que persegue aqueles que ensinam, como também aqueles que aprendem (1 Co 8:1-2). A instrução que os mestres cristãos devem transmitir não deve diferir em nada daquele que o Mestre ensinou e viveu. A formação teológica visa lapidar homens aprovados que manejam bem a Palavra de Deus não tendo nada do que se envergonhar (2 Tm 2:15), não contaminados pelo legalismo, nem pela hipocrisia, mas modelos de transformação. Sendo eles mesmos servos que expõem as doutrinas da graça por experiência, ardor e convicção pessoal.

É lamentável que muitos ainda pensem que o treinamento teológico é algo destinado de modo restrito apenas a um grupo seleto. As nossas escolas dominicais poderiam ser transformadas em centros de treinamento teológico. Os nossos presbíteros poderiam receber um curso teológico para melhor supervisionar a saúde doutrinária e espiritual da Igreja. Gordon J. Spykman declara que “uma dogmática saudável está firmemente arraigada na vida religiosa da fé da comunidade cristã”.[1]

O treinamento teológico também visa à formação de cristãos que servirão com melhor capacitação nas igrejas. A Igreja de Cristo é um corpo composto de membros dotados com habilidades espirituais especiais. Se cada membro desenvolver o seu dom espiritual equipando-se com o mais qualificado conhecimento técnico, é muito provável que servirão melhor. Gordon J. Spykman observa que "a dogmática tem que manter abertas as linhas de comunicação com a igreja institucional na variedade de seus ministérios. A missão da igreja é equipar aos crentes com formas práticas para viverem juntos no mundo de Deus (Ef 4:11-16)."[2]

Toda doutrina que refletida e ensinada aos estudantes de teologia também deve ser ensinada à igreja local. É possível que a metodologia de ensino não será a mesma, nem a linguagem técnica teológica, mas, o conteúdo pode ser transmitido com as suas devidas proporções verificando o auditório a ser alcançado. Iain Murray vai um pouco mais longe ao defender que "toda doutrina que pode ser ensinada aos teólogos também pode ser ensinada às crianças. Ensinamos uma criança que Deus é um Espírito, presente em todo lugar e que conhece todas as coisas; e ela consegue entender isto. Falamos lhe que Cristo é Deus e homem em duas distintas naturezas e uma pessoa para sempre. Isto para uma criança é leite, mas em si contêm alimento para os anjos. A verdade expressa nestas proposições podem ser expandidas ilimitadamente, e fornecer alimento para o mais alto intelecto por toda eternidade. A diferença entre o leite e o alimento reforçado, de acordo com esta concepção, é simples, é a distinção entre o maior e o menor desenvolvimento do conteúdo ensinado."[3]

Se ignorarmos a preocupação em termos uma grade de matérias que forme pastores que sairão capacitados para nutrir a Igreja nas suas necessidades, estaremos de fato, alimentando uma desnecessária antipatia. Teremos pastores [talvez] com muito conhecimento, mas que não saberão usa-lo. Pastores frustrados, e igrejas insatisfeitas. Fertilizará apenas a desconfiança entre igrejas e centros teológicos.


A Igreja precisa da Teologia para entender quem ela é. A teologia é indispensável para uma auto-avaliação de sua qualidade de vida. Como saber se o sal não está insípido? Como saberemos que a Igreja está validando a sua existência?

O Cristianismo não é somente uma religião, é uma cosmovisão. Charles Colson afirmar que "o Cristianismo genuíno é mais do que relacionamento com Jesus, tanto quanto se expressa em piedade pessoal, freqüência à igreja, estudo da Bíblia e obras de caridade. É mais do que discipulado, mais do que acreditar em um sistema de doutrinas sobre Deus. O Cristianismo genuíno é uma maneira de ver e compreender toda a realidade. É uma cosmovisão, uma visão de mundo."[4]

Tendo isto em mente, os estudiosos de teologia precisam oferecer respostas e propostas cristãs para todas as áreas da sociedade. Gordon J. Spykman sugere que o esforço teológico "deveria ser moldado por uma estratégia do reino de Deus de tal maneira que possa penetrar o mercado das idéias e a arena das práticas diárias e produzir o impacto reformador do evangelho. A competência de outros eruditos capacita aos dogmáticos a ajudar ao povo de Deus a atuar mais biblicamente em assuntos políticos, econômicos, sociais e educativos."[5]

A Teologia, enquanto uma sistematização fiel da Palavra de Deus, objetiva fortalecer a sua fé. O estudo sistemático das Escrituras deve confirmar o que temos aprendido, restaurar o que temos perdido, reformar o que se tem corrompido, rejeitar o que não foi recebido, e despertar a devoção pela sã doutrina. Os cristãos são chamados por Deus para salvar não apenas a alma das pessoas, mas também as suas mentes. Para isso, os servos do Senhor nunca poderão se esquecer que crer é também pensar!


A proclamação da fé Cristã é extraída do bojo teológico que a Igreja carrega consigo. Ela deve pregar e fazer novos discípulos. Mas anunciar o quê? O seu sistema litúrgico? A sua existência histórica? A sua influência social? Não! Ela não é testemunha de si mesma. Ela fala em nome de Cristo, e tendo o Senhor como o centro de sua mensagem. Sempre preparada para dar razão da fé (1 Pe 3:15) que fora entregue de uma vez aos santos (Jd vs.3).

Notas:
[1] Gordon J. Spykman, Teologia Reformacional (Jenison, TELL, 1994), p. 118
[2] Gordon J. Spykman, op.cit., 118
[3] Iain Murray, Preface in: Collected Writings of John Murray (Edinburgh, The Banner of Truth Trust, 1989), vol. 1, p. xii
[4] Charles Colson & Nancy Pearcey, E Agora Como Viveremos? (Rio de Janeiro, CPAD, 2000), p. 33
[5] Gordon J. Spykman, Teologia Reformacional, p. 121


Rev. Ewerton B. Tokashiki

26 outubro 2006

A Igreja Luterana é teologicamente luterana?

Lendo os escritos confessionais da Igreja Luterana, bem como a teologia expressa por seus dogmáticos, especialmente os de orientação conservadora como John T. Mueller e Edward W.A. Koehler,[1] percebe-se claros elementos de sinergismo na antropologia e na soteriologia. O determinismo teísta e o monergismo teológico de Lutero foram diluídos na teologia luterana, no período do escolasticismo protestante, tendo início esse processo na segunda metade do século XVI com os escritos posteriores e revisados de Felipe Melanchthon.

O historiador luterano Bengt Hägglund observa que para Felipe Melanchthon a conversão “resulta de três fatores: A Palavra, o Espírito Santo e a vontade humana. Num suplemento que apareceu pela primeira vez nos Loci de 1548, a primeira edição publicada após a morte de Lutero, esta idéia foi desenvolvida mais ainda.”[2] Essa mudança doutrinária em direção ao sinergismo teológico, foi um dos principais motivos que deu origem a uma série de controvérsias entre os luteranos, entre aqueles que conservavam a posição original ensinada por Lutero, e o outro grupo que adotava o esquema teológico de Melanchthon.

Felipe Melanchthon em sua Loci Communes Theologici inicialmente também compartilhava da mesma posição antropológica e soteriológica que Lutero, Zwínglio e Calvino, contudo, posteriormente se distanciou, adotando uma posição mais sinergista.[3] Calvino que chegou a prefaciar a edição francesa das Loci Communes Theologici, porém, numa carta posterior, expressou surpresa pela posição sinergista que Melanchthon havia assumido, mesmo assim, manteve amizade com ele, depois de sua mudança de opinião.[4] Deve ser esclarecido que os luteranos, em geral, mantém uma fidelidade com a eclesiologia de Lutero.

O dogmático luterano Carl E. Braaten confirma que "a pequena dogmática de Melanchthon passou por uma série de edições e atingiu sua forma final em 1559 sob o título Loci Praecipui Theologici. O pensamento de Melanchthon havia evoluído neste meio tempo. Na obra anterior, a influência de Lutero era dominante; o impacto do evangelho produziu novas percepções dogmáticas em questões básicas como livre-arbítrio, pecado, lei justificação, fé, obras, Batismo e Ceia do Senhor. Em sua última edição, Melanchthon começou a restaurar certas doutrinas da tradição escolástica, sem revisá-las à luz das novas percepções da Reforma. Os métodos e categorias de Aristóteles, que Lutero havia rejeitado, foram reintroduzidos no sistema teológico. Assim, a obra posterior de Melanchthon formou uma ponte para a subseqüente dogmática do escolasticismo protestante."[5]

Heinrich Heppe comentando as opiniões dos teológos reformados sobre a passividade humana na regeneração, observa que "é neste sentido [monergista] que todos os dogmáticos reformados [calvinistas] falam a respeito da conversão, exceto os antigos mestres reformadores alemães da escola de Melanchthon, Hemming, Sohn, Ursin, Pezel e tantos outros, que semelhante às Confissões Reformadas de Anhalt e Nassau representam a doutrina Melanchthoniana da conversão, em sua inteira peculiariedade, apresentando essenciais modificações." [6]

Outro historiador luterano, Martin N. Dreher, observa que “os Artigos de Esmalcada só passaram a fazer parte do corpo de escritos confessionais da Igreja Luterana em 1580. Essa observação é interessante, pois mostra que, na codificação pública de sua fé, a Igreja Luterana é mais ‘melanchthoniana’ do que ‘luterana’”.[7]

Notas:
[1] Refiro-me aos conservadores por serem comprometidos não somente com a autoridade das Escrituras, mas também com uma séria adoção dos escritos confessionais luteranos, ao contrário de teólogos luteranos como Carl E. Braaten, Robert W. Jenson, Gerhard O. Forde, Phillip J. Hefner, Hans Schwarz que mantém mais intimidade com a neo-ortodoxia do que com o luteranismo histórico.
[2] Bengt Hägglund, História da Teologia (São Leopoldo, Concórdia Editora Ltda, 4a.ed., 1989) p. 213
[3] Paul K. Jewett, Eleicción y Predestinación (Jenison, TELL, 1992) p. 13
[4] Letters of John Calvin Select from the Bonnet Edition (Edinburgh, The Banner of Truth Trust, 1980), p. 159-162. Esta carta é datada de 27 de Agosto de 1554.
[5] Carl E. Braaten & Robert W. Jenson, ed., Dogmática Cristã (São Leopoldo, Editora Sinodal, 1990), vol. 1, p. 56
[6] Heinrich Heppe, Reformed Dogmatics (London, Wakeman Great Reprints, s./d.), p. 521
[7] Martin N. Dreher, A Crise e a Renovação da Igreja no Período da Reforma (São Leopoldo, Editora Sinodal, 1996), p. 38

Rev. Ewerton B. Tokashiki

25 outubro 2006

Prefácio à Teologia Sistemática de Robert L. Dabney

Robert L. Dabney foi um presbiteriano sulista, que viveu durante o século dezenove. Archibald Alexander, o fundador do Princeton Seminary, disse que ele foi “o melhor professor de teologia dos Estados Unidos, se não no mundo.” Seu biógrafo, Thomas Carey Johnson, disse a seu respeito em The Life and Letters of Robert Lewis Dabney (1903), que ele foi o primeiro a receber o título de como sendo “o primeiro entre os pensadores escritores teológicos do seu século.”

Como um homem que desfrutava de tal reputação entre os seus próprios contemporâneos, não é de se admirar que Dabney foi considerado o mais influente homem da Southern Presbyterian Church durante o auge de seu ministério, entre 1865 à 1895.

Dabney era natural da Virginia, nascido no condado de Louisa, em 1820. Era descendente de ingleses e huguenotes franceses. Foi educado em Hampden Sydney College, Virginia, na University of Virginia, e no Union Theological Seminary, em Hampden Sydney; foi ordenado ao ministério da Igreja Presbiteriana em 1847. Exerceu os seus primeiros anos de sua vida ministerial na histórica Tinkling Springs Church no vale da Virginia. Em 1853 foi convidado para lecionar na cadeira de História e Política Eclesiástica no Union Seminary. Em 1859 foi transferido para o Departamento de Teologia Sistemática. Em 1860 recebeu um convite para juntar-se à faculdade do Princeton Theological Seminary. Mas, devido à sua fidelidade ao Sul, preferiu não ir para o Norte dos EUA naquele período. Durante a Guerra Civil entre os Estados, serviu por um período como capelão do exército Confederado, e depois como chefe de assistência ao General T.J. (Stonewall) Jackson, com o posto de major. Serviu com Jackson durante a rigorosa campanha do vale em 1862. Jackson disse a seu respeito que ele foi o mais eficiente oficial que ele havia conhecido. Depois da morte do General Jackson, em Maio de 1863, Dabney foi solicitado pela sra. Jackson para preparar uma biografia do General. Esta foi publicada em 1866 sob o título de The Life and Campaigns of Lieutenant General Thomas J. Jackson (Stonewall Jackson). Esta obra foi considerada como a melhor biografia do General Jackson, e permanece como uma das maiores produções literárias de Robert L. Dabney.

Terminada a guerra, Dabney retornou ao Union Seminary e continuou ensinando na área de Teologia Sistemática até 1883. então, ele se mudou para o Texas, onde se tornou professor na faculdade da recém University of Texas, na cadeira de Filosofia Mental e Moral e Economia Política. Ensinou nesta universidade de 1883 à 1894. Durante este mesmo período, em campanha com o Rev. Robert K. Smoot, organizaram a Austin School of Theology, a qual tornou-se posteriormente a Austin Presbyterian Theological Seminary. Morreu em Victoria, Texas, em 3 de Janeiro de 1898, e foi sepultado em Hampden Sydney, Virginia.

Dabney foi antes de tudo um mestre. A sua principal realização foi em sala de aula, onde sempre afirmou, com intensidade e vigor, os princípios da fé reformada. Também foi um fértil escritor, produzindo inúmeros artigos em várias publicações. Em acréscimo à vida de Jackson, escreveu A Defense of Virginia (and through her of the South) in the recent and pending contests against the sectional party (1967). Em 1870, produziu um livro sobre pregação com o título de Sacred Rhetoric. A presente obra foi inicialmente publicada pelos alunos de Dabney sob o título de Syllabus and Notes of the Course of Systematic and Polemic Theology conforme ensinado no Union Theological Seminary, Virginia (1878). Esta obra foi revisada pelo autor e reimpresso em 1878. Ela envolveu seis edições sendo a última em 1927. Escreveu também dois volumes na área de Filosofia, The Sensualistic Philosophy of the Nineteenth Century (1875), e Practical Philosophy (1896).

O presente volume foi inicialmente publicado pelos alunos, com a sua autorização. Posteriormente, ele a revisou e levou-a sua presente forma. Este volume reflete o seu melhor estilo de ensinar teologia. Thomas Carey Johnson, o seu biógrafo, descreve-o assim: "duas classes eram dedicadas à cada tópico, separadas pelo intervalo de dois dias. No término da segunda reunião, a classe colocava no quadro-negro um programa dos próximos tópicos para que fosse entregue. A condução dos pontos no tópico eram expostos em forma de perguntas, e quais autores tratavam daquele ponto específico. A referência mais importante era escrito primeiro, o seguinte mais importante, e etc., e os estudantes eram obrigados à ler tanto quanto eles conseguissem. O livro-texto usado era o Turrentin em latim [1]. Na reunião seguinte, ele prosseguia com uma recitação de Turrentin, abrangendo cerca de dez ou doze páginas. Os alunos eram obrigados, durante o segundo intervalo de dois dias, à escrever cada uma, de suas próprias teses sobre o tópico. No segundo momento da reunião, ele se detinha em entregar à classe a sua própria preleção sobre o mesmo tópico. Este programa e preleções compunham a principal parte de sua obra teológica" (p. 196).

Na nota original aos leitores sobre a obra foi aludido que as preleções assumiam “como um postulado determinado por outro departamento no Seminário, a inspiração e infalibilidade das Escrituras.” A seqüência geral de toda a matéria é aquela da Confissão de Fé de Westminster. É lamentável que não tenhamos do próprio Dabney, o desenvolvimento da doutrina da inspiração da Escritura. Mas, encontramos na página 144, a sua posição declarada de modo inequívoco “eu defendo que as Escrituras são, em todas as suas partes, plenamente inspiradas... isto tem está determinado, e podemos assumi-la como inspirada e infalível.”

Esta obra foi mantida como livro-texto de Teologia Sistemática no Union Seminary na Virginia até 1930. Ela é uma vigorosa e didática exposição da fé reformada. O leitor não encontrará simplesmente a reafirmação de antigas verdades, mas a ampliação dos problemas que algumas vezes percebem aquelas verdades. Esta obra é digna de ser estudada por todos os que desejam entender o Evangelho e suas implicações mais plenas.

A influência de Dabney foi fortemente percebida no meio dos presbiterianos sulistas. Este volume, como já observamos, tornou-se o livro-texto de Teologia Sistemática nos Seminários do Sul. Ele foi considerado por Auguste Lecerf da França em sua Introduction to Reformed Dogmatics, e por Herman Bavink dos Países Baixos, em sua Gereformeerde Dogmatiek como estando entre os excelentes teólogos da América.

Num período em que a igreja certamente precisa de uma voz tão clara acerca de sua teologia, creio que não há obra melhor do que a de Robert L. Dabney, a ser reproduzida e entregue à nossa geração. Desejo que esta republicação da Teologia Sistemática de Dabney seja apresentada com renovado interesse no estudo e propagação da fé reformada.

Dr. Morton H. Smith
Professor de Teologia Sistemática
Reformed Theological Seminary
Jackson, Mississippi
20 de Julho de 1971.

Nota:
[1] Francis Turrentin, Instituto theologiae elenticae (1675). vide* http://www.christianbook.com/Christian/Books/product?item_no=4524&netp_id=198405&event=ESRCN&item_code=WW

Extraído de Robert L. Dabney, Lectures in Systematic Theology (Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1980), in: Preface to 1972 Edition.

Traduzido por:
Rev. Ewerton B. Tokashiki

Breve análise exegética de Ef 5.18-21

Considerações Gerais

Nas considerações gerais pretende-se, antes de se analisar Efésios 5.18-21, citar duas passagens do Novo Testamento que tratam do termo encher do Espírito, aí então entraremos no texto. Dessa forma, teremos uma visão mais ampla quando tratarmos especificamente do texto de Efésios.

Quando Jesus fala sobre ser cheio do Espírito[1] há uma ênfase de sua parte de uma apropriação contínua. Isso quer dizer que aquele que é cheio do Espírito Santo deve, continuamente, ir ao Senhor Jesus.

Vemos, ainda, Paulo[2] falando sobre o estar cheio do Espírito. É interessante notar que os cristãos de Corinto tinham muitos dons do Espírito e eles achavam que estavam plenos do Espírito por causa disso, mas Paulo, sarcasticamente, lhes diz: “Já estais fartos”(4.8), mostrando que, se realmente estivessem fartos (cheios) evidenciaram em suas vidas atitudes morais encontradas no fruto do Espírito, como por exemplo, o amor. Assim, o ato de estar cheio deve ser sempre buscado em Jesus e não envolve, propriamente, a manifestação de dons, mas a evidência moral do fruto do Espírito na vida do cristão.

O texto que passamos a examinar em Efésios começa com um contraste: “não vos embriagueis... mas enchei-vos...”. Na verdade não é uma comparação, ou seja, um crente cheio do Espírito é, da mesma forma que o ébrio, controlado de forma a não responder por si. Trata-se, na verdade, de contraste.[3] O crente cheio do Espírito deve ser o oposto da pessoa controlada pelo vinho.

Enquanto um é caracterizado pela falta de domínio, tanto de seu corpo como de seus atos, pois a embriagues é associada à dissolução, o outro é caracterizado pelo domínio próprio, que é associado ao fruto do Espírito.

Essa oposição marcada pelo estar cheio, trás conseqüências, que são demonstradas nos versículos subseqüentes (19-21). Mas, antes de falarmos sobre as conseqüências da plenitude do Espírito, iremos, primeiro, falar sobre o verbo “enchei-vos” (plêrousthe).

Na verdade, as conseqüências dependem desse verbo. Vemos, primeiramente, que este verbo está no imperativo, não sendo, portanto, um conselho, uma opção ou uma recomendação, mas uma ordem direta e enfática.

Mas, em segundo lugar, ele está na forma plural. Isso traz a implicação de que todos na comunidade devem ser cheios. A plenitude não é uma recomendação isolada para um indivíduo ou um grupo seleto, mas para a comunidade dos discípulos de Cristo.

Também vemos, em terceiro lugar, que essa ordem de Paulo é feita na voz passiva, que poderia ser traduzido por “sede enchidos” ou “deixai-vos encher”. Isso não quer dizer que o crente é um agente passivo no processo, pois, como vimos acima, devemos ir continuamente a Jesus para sermos cheios. Significa, sim, que o crente deve se entregar sem reservas ao Espírito Santo para que possamos desfrutar da plenitude.

Finalmente, em quarto lugar, o verbo se encontra no tempo presente. O tempo presente indica uma ação contínua, diferente do aoristo que é uma ação única. É uma apropriação contínua do encher do Espírito.

Agora voltaremos às conseqüências, ou resultados da plenitude na vida do cristão, descritas por Paulo. Lembrando que essas conseqüências são benéficas, em oposição às conseqüências do embriagar-se, que são maléficas.

Os quatro verbos ligados ao enchei-vos, que denotam resultado,[4] estão no particípio.
O primeiro verbo é “falando” (lalountes – v.19). O versículo não dá a idéia de falar qualquer coisa, mas conversas espirituais.[5] É uma comunhão espiritual, gerada pelo amor, que é o fruto de uma vida plena do Espírito.

O segundo verbo é “entoando e louvando” (adontes – psallontes - v.19). O crente pleno do Espírito é impulsionado pelo mesmo Espírito a glorificar o nome de Jesus. A adoração comunitária, que é a idéia do texto, se torna viva e contagiante quando é impulsionada pelo Espírito através de pessoas que manifestam a adoração de todo coração.

O terceiro verbo é “dando sempre graças” (eukharistountes – v.20). O dar graças não é uma condicional se as coisas estão dando certo, mas um estado normal na vida do crente pleno do Espírito que vê em todas as circunstâncias, positivas ou negativas, motivos para agradecer a Deus; e isso em nome do Senhor Jesus.

O quarto verbo é “sujeitando-vos” (potassomenoi – v.21). A sujeição não é específica (filhos aos pais, empregados a patrões, etc.), mas geral. Numa comunidade onde os seus membros são plenos do Espírito há uma atitude de humilde submissão uns aos outros. Stott irá dizer que “a marca registrada no cristão cheio do Espírito não é a auto-afirmação, mas a auto-submissão”.[6]

O Grande Contraste: Plenitude X Batismo com o Espírito Santo

Vejamos a diferença entre batismo com o Espírito Santo e enchimento, ou plenitude, do Espírito Santo. O que aconteceu no dia de pentecostes foi que Jesus derramou o Espírito do céu e, assim, batizou com o Espírito, primeiro, os cento e vinte e, depois, os quase três mil (ver Atos 2).

A conseqüência do batismo com o Espírito Santo foi que eles todos ficaram cheios do Espírito. O batismo foi o que Jesus fez e está fazendo a todos os convertidos. O enchimento foi o que eles receberam. O batismo foi e é uma experiência inicial única; o enchimento Deus quer que seja contínuo, como um resultado permanente, como uma norma para a vida do cristão.[7] Como acontecimento inicial, o batismo não pode ser repetido nem pode ser perdido, mas o ato de ser cheio pode e deve ser repetido e, no mínimo, precisa ser conservado.

Quando o enchimento não é conservado, ele se perde. Se foi perdido, pode e deve ser recuperado. O Espírito Santo é entristecido pelo pecado, e existe uma ordem do apóstolo Paulo para não entristece-lo (Ef 4.30). Nesse caso, ele deixa de operar na vida do cristão.

Mas o único meio de recuperar o enchimento é o arrependimento. Mesmo em casos em que não há indícios de que o enchimento foi perdido por causa de algum pecado, lemos que algumas pessoas foram novamente preenchidas, mostrando que uma crise ou um desafio requer um novo revestimento do poder do Espírito.

O “estar cheio do Espírito” como um estado normal do crente

A plenitude ou o estar cheio do Espírito deve ser o estado normal do crente; mas nem sempre encontramos pessoas na igreja cheias do Espírito. Os crentes têm se afastado do Senhor, o culto de oração é sustentado por um grupo mínimo, as orações são feitas sem um sentido real. Partindo da alma? Não.

O que está acontecendo é um esfriamento total dos crentes e isto não é normal e, sim, anormal. A igreja quando orava o Espírito agia, o local onde eles estavam reunidos tremeu e todos ficaram cheios do Espírito (At 4.31).

Jesus batiza o crente e vai inundando-o com o Espírito Santo desde sua conversão. Foi o caso de Saulo de tarso quando ele se “rendeu” ao Senhor (At 9-17). Os discípulos também estavam cheios de alegria e do Espírito Santo (At 13.52).

É, pois errado considerar a plenitude como um caso excepcional; essa idéia provém de nos termos habituados à mediocridade. A ausência da plenitude é que constitui um estado anormal, que não glorifica ao Senhor, não edifica a igreja e não atrai a Jesus os não convertidos.

A igreja neo testamentária sabia reconhecer homens cheios do Espírito Santo e os considerava capazes de desencumbirem-se de qualquer função, humilde ou destacada. É o que se vê no caso dos diáconos (At 6.3, 5), e também de Barnabé, em Antioquia (At 11.24).

Aqui, aliás, a plenitude se exprime mais por um caráter espiritual e moral, fruto do Espírito, que por uma revelação de poder no serviço ou no testemunho, no sofrimento, como aparece nestes textos (At 4.8; 7.55; 13.9).

As Implicações do texto de Efésios 5.18-21

O enchimento do Espírito Santo não é uma sugestão que pode ser tentada, uma recomendação branda, uma advertência educada. É uma coisa que Cristo nos deu, com toda autoridade de um dos apóstolos que ele mesmo escolheu.[8]

Não temos nem um pouco mais de liberdade para escapar desta obrigação. Temos que usar sempre a verdade, trabalhar honestamente, ser gentil e perdoar uns aos outros, viver em pureza e amor.

A plenitude do Espírito não é um privilégio reservado para alguns, mas uma obrigação de todos. Assim como a exigência de sobriedade e domínio próprio, a ordem de buscar o enchimento do Espírito é dirigida a todo o povo de Deus, sem exceção.

Uma condição importante para gozar da plenitude do Espírito Santo é entregar-se a ele sem reservas. Mesmo assim, não devemos pensar que somos apenas agentes passivos ao recebermos a plenitude do Espírito. Assim como alguém fica bêbado bebendo, o cristão fica cheio do Espírito buscando o enchimento através de uma vida na presença de Deus.

Notas:
[1] João 7.37-39
[2] 1Coríntios 3.1-4
[3] LOPES, Augustus Nicodemus, Cheios do Espírito, São Paulo: Mundo Cristão e Puritanos,1998, p.17
[4] LOPES, Op. Cit., p. 42. Nicodemus irá dizer que esses verbos denotam modos e resultados do encher do Espírito.
[5] Efésios 4.29
[6] STOTT, John R.W. Batismo e Plenitude no Espírito Santo, p.43
[7] Planejando Para o Ano 2000. Op. Cit., pp. 46, 47
[8] LOPES, Op. Cit, p.45

Rev. Baltazar L. Fernandes

24 outubro 2006

As características da ética cristã

A ética cristã é revelada

Deus se deu a conhecer e revelou proposicionalmente a sua vontade inspirando homens escolhidos para este fim. A revelação verbal de Deus é o fundamento epistemológico para a ética cristã. Não significa que a Escritura Sagrada seja um livro com um completo código ético com todas as decisões divinas prescritas para cada questão, mas, ela contém suficientemente todas as premissas e princípios necessários para a formulação de uma cosmovisão que orientará na estrutura da ética cristã.

A ética cristã parte do pressuposto de que o Deus que se revela nas Escrituras Sagradas é o único Deus verdadeiro e que, sendo o criador do mundo e da humanidade, deve ser reconhecido, crido e obedecido como tal, e a sua vontade é expressa nas leis de princípios morais. Deus revelou-se proposicionalmente à humanidade. Esta pressuposição é fundamental para a ética cristã, pois é dessa revelação verbal que ela tira os seus conceitos acerca do mundo, da humanidade e de como definir o que é certo e errado. Francis A. Schaeffer nos chama a atenção de que “não há padrão no universo que dê um sentido final a palavras como certo e errado. Se partirmos do impessoal, o universo torna-se totalmente silencioso, em relação a qualquer uma destas palavras.”[1] É precisamente por basear-se na revelação que o Criador concedeu um padrão ético que se estende a todas as dimensões da realidade. A ética cristã pronuncia-se sobre questões individuais, sociais, políticas, ecológicas, econômicas, culturais e espirituais, porque Deus exerce a sua autoridade sobre todas as áreas e esferas da existência humana.

A ética cristã é absoluta

A ética envolve a adoção de um padrão absoluto de autoridade. A ética cristã é teocêntrica e oposta à ética secular, que na maioria das vezes é antropocêntrica. R.C. Sproul observa que “para o humanista, o homem é a norma, o último padrão de comportamento. Os cristãos, contudo, asseveram que Deus é o centro de todas as coisas e que seu caráter é o padrão absoluto pelo qual as questões de certo e errado são determinadas”.[2] Mais enfático afirma James Orr que “o ideal ético, se quiser assegurar o seu caráter absoluto, indica para uma base eterna no Ser absoluto. Levando-nos para a concepção de Deus como um ser eticamente perfeito, fonte e origem da verdade moral, fonte da lei moral, que como vimos está comprometida com o cristianismo.”[3]

A lei de Deus, que é expressa no Antigo e Novo Testamento, é a norma para a vida moral do cristão. Existem três tipos de lei no Antigo Testamento: civil, cerimonial e moral. Tanto a lei civil como a cerimonial foram especificamente e intencionalmente limitadas à antiga Aliança, para estabelecer a teocracia sobre Israel, e foram cumpridas na obra real e sacerdotal de Cristo. A lei moral expressa em essência a vontade moral de Deus, e não teve a sua limitação nas cerimônias da antiga Aliança. A lei de Deus revela a sua perfeição para os homens.

Os Dez Mandamentos é o resumo toda a lei moral de Deus. Temos o resumo da ética do Reino de Deus exposta nele. A Confissão de Fé de Westminster declara "a lei moral obriga para sempre a todos a prestar-lhe obediência, tanto as pessoas justificadas como as outras, e isto não somente quanto à matéria nela contida, mas também pelo respeito à autoridade de Deus, o Criador, que a deu. Cristo, no Evangelho, não desfaz de modo algum esta obrigação, antes a confirma."[4]

Um dos usos da lei é o normativo. O terceiro uso da Lei é normativo para a vida cristã. A vontade moral de Deus está revelada na Escritura, e não elimina o uso de discernimento para interpretar corretamente e aplicar a vontade moral revelada para a vida cristã e civil. John Murray observa que “visto que Deus não muda, e visto que a obrigação a Deus não pode ser abrogada, qualquer alteração radical na ética imperativa é algo simplesmente inconcebível.”[5]

A ética cristã é objetiva

Por causa da sua soberania Deus tem o direito de emitir ordenanças, de impor obrigações e quando necessário intervir na consciência dos homens. Deus nos deu além da consciência, a Escritura Sagrada para regular e estimular o nosso comportamento. Norman Geisler conclui que se Deus não existisse “e as únicas leis objetivas do universo fossem as leis da física e da química, os julgamentos morais seriam absurdos. Não estamos dizendo que os ateus e naturalistas não possam fazer julgamento moral; o que estamos dizendo é que eles não têm base real para os seus julgamentos”.[6]

A ética cristã é prescritiva

A ética não se propõe apenas a descrever, mas também prescrever o que é certo ou errado. C. Stephen Evans define como sendo o “ramo da filosofia que lida com as questões de certo e errado, bem e mal, virtude e defeito.”[7] Nesta definição Evans não declara se a ética é apenas descritiva, ou se preceptiva. Todavia, se a ética cristã pressupõe a fé cristã, isto envolve necessariamente o compromisso de coerente submissão e obediência a Palavra de Deus. Quanto ao caráter preceptivo da ética, John Murray conclui que “se Jesus deu-nos um exemplo que devemos seguir os seus passos, e, se a ética cristã é deste modo definida, então a maior necessidade característica do modo de vida e conduta cristã é obedecer aos mandamentos de Deus.”[8] Quanto a isto o Catecismo Maior de Westminster declara que “que onde um dever é prescrito, o pecado contrário é proibido; e onde o pecado é proibido, o dever contrário é prescrito; assim, onde uma promessa está anexa, a ameaça contrária está inclusa; e onde uma ameaça está anexa a promessa contrária está inclusa.”[9]

Notas:
[1] Francis A. Schaeffer, O Deus que se revela (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2004), p. 62
[2] R.C. Sproul, Discípulos Hoje (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 1998), p. 221
[3] James Orr, Concepción Cristiana de Dios y el Mundo (Terrassa, CLIE, 1992), p. 139
[4] Confissão de Fé de Westminster (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2ªed., 2003), XIX.5
[5] John Murray, ética bíblica in: O Novo Dicionário da Bíblia (São Paulo, Edições Vida Nova, 1998), p. 560
[6] Norman Geisler & Peter Bocchino, Fundamentos Inabaláveis (São Paulo, Editora Vida, 2003), p. 333-334
[7] C. Stephen Evans, Dicionário de Apologética e Filosofia da Religião (São Paulo, Editora Vida, 2004), p. 52
[8] John Murray, The Claims of Truth in: Collected Writings of John Murray (Edinburgh, The Banner of Truth Trust, 1989), vol. 1, p. 181
[9] Catecismo Maior de Westminster (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2002), pergunta e resposta 99, p. 122

Rev. Ewerton B. Tokashiki

21 outubro 2006

O Jansenismo

O movimento católico Jansenista tentou reavivar a soteriologia Agostiniana. As suas ênfases teológicas se concentravam nas doutrinas da graça buscando uma coerência maior do que os jesuítas em seu Semipelagianismo tinha alcançado ao fundir as doutrinas de Agostinho e Pelágio. Todavia, os jansenistas não obtiveram resultados expressivos e permanentes dentro da Igreja Católica Romana.

Cornelius Otto Jansenius (1585-1638 d.C.), bispo de Ypres, de origem holandesa, morreu em 1638, deixando um legado teológico de grande importância. A sua obra histórico-teológica Agustinus que somente foi publicada em 1640, e estudada em Port Royal por Antoine Arnauld, Le Maistre e Blaise Pascal trouxe um importante impacto na vida destes pensadores. N.V. Hope observa que "Jansen já se interessava pelo pensamento religioso de Agostinho, desde seus dias de estudante. No início da década de 1620, vindo a crer que a teologia agostiniana da graça predestinadora eficaz estava sendo ameaçada pelas tendências humanistas dos teólogos jesuítas da Contra-Reforma, lançou-se a um estudo intensivo das obras de Agostinho, principalmente seus escritos antipelagianos."[1]


O livro Agustinus sofreu forte perseguição. A Inquisição proibiu a leitura desta obra em 1641, e o papa Urbano VIII, em 1643, condenou o livro Agustinus em sua bula In eminenti. Mas a sua leitura continuou mesmo nas universidades católicas, tendo muitos simpatizantes.

Os jesuítas acusaram os jansenistas de adotarem uma forma de Calvinismo.[2] A acusação formal baseou-se nos escritos de Arnauld[3], que era discípulo de Jansênio. Destes escritos os jesuítas extraíram cinco proposições teológicas. As chamadas Cinco Proposições do Jansenismo são:[4]
1. Alguns mandamentos de Deus aos homens, que querem e se esforçam para ser justos, são impossíveis para as forças presentes que possuem e falta-lhes a graça pela qual se tornariam possíveis.
2. A graça interior não pode ser resistida no estado da natureza caída.
3. Para o mérito e o demérito no estado da natureza caída não se requer a liberdade de necessidade, mas somente a liberdade de coação.
4. Os semipelagianos admitem a graça interior preveniente para todos os atos individuais, mesmo para o começo da fé; nisto eles são hereges porque querem que a graça seja de modo a que a vontade humana lhe possa resistir ou obedecer.
5. É semipelagiano dizer que Cristo morreu e derramou seu sangue por todos os homens.

Estas cinco proposições foram condenadas pelo papa Inocêncio X, em 1653, na bula Cum Occasione. Em 1709 o convento Port Royal foi fechado e seus ocupantes dispersos.

O papa Clemente XI, em 1713, na bula Unigenitis Dei Filius, condenou 101 das sentenças dos escritos dos teólogos jansenistas. Muitos monges jansenistas foram condenados à morte e outros fugiram para os Países Baixos por encontrarem ali liberdade para expressarem seus pensamentos.[5] Os jansenistas na Holanda nomearam um arcebispo cismático, em 1723, na cidade de Utrecht. Este grupo existe até os dias de hoje, tornando-se parte da Igreja Católica Antiga na metade do século XIX.

Notas:
[1] N.V. Hope, Janse, Cornelius Otto, in: Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã (São Paulo, Ed. Vida Nova, 1992), vol. 2, p. 358
[2] Justo L. Gonzalez, Uma História do Pensamento Cristão – Da Reforma Protestante ao Século 20 (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2004), vol. 3, p. 238
[3] Arnauld era irmão de Mère Angelique, superiora do convento de Port Royal.
[4] Henry Bettenson, Documentos da Igreja Cristã (São Paulo, ASTE, 2001), p. 375
[5] Paul K. Jewett, Elección y Predestinacción (Jenison, TELL, 1992), p. 28

Rev. Ewerton B. Tokashiki

19 outubro 2006

A prolegômena à Teologia Sistemática

O termo prolegômena basicamente significa coisas que devem ser ditas antecipadamente. Uma definição mais precisa pode ser a exposição preliminar dos princípios gerais de uma ciência ou arte. É nesta matéria introdutória à teologia que colocaremos as nossas armas de combate à mesa. Um navio sem um leme, por mais valioso e imponente que seja, será inútil, e até perigoso, por causa de sua desorientação.

A nossa teologia necessariamente possuí uma orientação confessional. Por isso, ao estudarmos a Teologia Reformada sejamos honestos em reconhecer esta premissa e procuremos ser coerentes, em sistematizar toda a nossa teologia partir dos fundamentos do Calvinismo.

A premissa de que toda verdade é verdade de Deus, toda ela se complementa e não se contradiz demonstra como a teologia e filosofia andam de mãos dadas. Gordon J. Spykman adverte-nos ao mencionar que “a dogmática é de demasiada importância para ser confiada a teólogos inseguros de sua orientação filosófica. Sem a filosofia, a teologia se converte numa empreita restrita, superficial e vazia.”[1]

A teologia não pode ser construida arbitrariamente, mas deve seguir uma metodologia clara pela necessidade da sua natureza. Spykman comentando da natureza metodológica da Prolegômena declara que ela "é realmente introdutória, mas não no sentido de que se possa passar por ela e logo abandona-la deixando-a atrás. Não é uma subestrutura racionalmente argumentada que sustém a superestrutura teológica qualificada pela fé. Sua tarefa não é justificar a dogmática aos de fora, mas iniciar uma explicação a partir da sua própria tradição. Por isso, a prolegômena é parte integral do resto da dogmática ao considerar que uma resposta crente à Palavra de Deus é seu contínuo ponto de partida. Ela também está arraigada numa cosmovisão bíblica. Quando submetem-na a um desenvolvimento teórico maior adquire o contorno e a forma de uma filosofia cristã. A teologia necessita dessa classe de marco de referência teórico, e a tarefa da filosofia cristã é, precisamente, oferecer esse tipo de quadro total. Por isso, ao avançar, vou delinear os contornos básicos desta filosofia cristã, como porta teórica e como a perspectiva de contexto para entrar e fazer dogmática reformada. Neste sentido a tarefa é por fundamentos. A filosofia cristã serve para clarificar as pressuposições subjacentes à dogmática, seu paradigma aceito da realidade criada, seu método teológico e sua hermenêutica, seus pontos de referência normativos, e seus conceitos básicos. Proponho que este é o serviço mais autêntico, positivo e útil que uma prolegômena pode prestar."[2]

Divisões gerais da teologia
A teologia é um vasto campo de estudo. Algumas das distinções que darei certamente serão muito úteis para aqueles que, às vezes, se perdem em meio a tantas “teologias”. Podem ser catalogadas dos seguintes modos:

Classificação histórica
1. Teologia Patrística
2. Teologia Escolástica/Medieval
3. Teologia da Reforma
4. Teologia Contemporânea

5. Teologia Pós-moderna

Classificação por áreas de estudo
1. Teologia Bíblica
2. Teologia Filosófica

3. Teologia Histórica
4. Teologia do Antigo testamento
5. Teologia do Novo Testamento
6. Teologia Apologética
7. Teologia Moral
8. Teologia Pastoral
9. Teologia Sistemática (dogmática)

Classificação por concepções confessionais
1. Teologia Católica (Semipelagiana)
2. Teologia Ortodoxa/Oriental
3. Teologia Luterana
4. Teologia Reformada/Calvinista

5. Teologia Arminiana
6. Teologia Pentecostal/Carismática

Classificação por concepções filosóficas
1. Teologia Liberal
2. Teologia Neo-Ortodoxa
3. Teologia Fundamentalista
4. Teologia da Libertação

5. Teologia do Processo
6. Teologia da Esperança
7. Teologia Existencial/Crise
8. Teologia Secular

9. Teologia Feminista
10. Teologia Relacional [teísmo aberto]
11. Teologia Conservadora


A Teologia Sistemática é o centro de convergência onde todas as matérias teológicas se encontram para compartilhar as suas conquistas! A coerência construtiva entre as ciências teológicas, como a exegese, a filosofia, a história, e os padrões confessionais, são organizados num sistema de coerência. Neste sentido ela é uma teologia sistemática.

Notas:
[1] Gordon J. Spykman, Teologia Reformacional (Jenison, TELL, 1994), p. 8
[2] Gordon J. Spykman, op. cit., p. 41

Rev. Ewerton B. Tokashiki

18 outubro 2006

A participação indigna da Ceia [4]

Encerrando esta série de artigos sobre a participação indigna da Ceia pode-se concluir que o participante deve ter uma conduta em conformidade ao momento, às exigências, ao relacionamento mútuo, e ao significado da Ceia do Senhor. Ele precisa discernir o ato da celebração como sendo singular. Reconhecer que a Ceia não é uma refeição ordinária, mas que representa a morte expiatória de Cristo, precisamente por ser ela o sinal da nova Aliança. Todo participante deve possuir uma conduta ética com os demais membros de acordo com aquilo que a Mesa do Senhor exige. James D.G. Dunn corretamente expressa que “a preocupação de Paulo estava concentrada no pão e no cálice como expressões primárias da unidade da congregação e como meio dessa unidade quando corretamente celebrados”.[1] Herman Ridderbos também contribui dizendo que “quando a igreja celebra a Ceia, ela ‘anuncia’ verbalmente numa auto-descrição o que ela significa.”[2] Pesa sobre o participante a responsabilidade de exercer um auto-exame da qualidade dos seus relacionamentos com os demais participantes. A Ceia também representa a comunhão do Corpo, isto é, da Igreja de Cristo. Novamente, Dunn conclui que “uma Ceia do Senhor que não era uma ceia compartilhada, que não era um participar de um só pão e de um só cálice, não era efetivamente a Ceia do Senhor.”[3]

Nada pode diluir a comunhão espiritual que há entre os cristãos. Pois, nada pode separar a Igreja da sua comunhão espiritual com Cristo. Uma vez salvos em Cristo, os cristãos tornam-se membros do mesmo Corpo. Entretanto, a prática da mutualidade pode ser corrompida e afetada. Se houver uma reunião onde não há a recíproca prática da comunhão, não há a Ceia do Senhor. A mesa da comunhão celebrada de modo pecaminoso, com sectarismos, é uma contradição de termos. Esta foi a avaliação de Paulo “quando, pois, vos reunis no mesmo lugar, não é a ceia do Senhor que comeis” (11:20). Eles tornavam a sua reunião indigna, isto é, imprópria para realmente celebrarem a Ceia do Senhor, por causa do modo como se relacionavam. Dunn observa que a mesa do Senhor “não podia ser um negócio particular em que cada qual fizesse o que quisesse. A Ceia do Senhor não era a Ceia do Senhor, se não unia a comunidade participante em mútua responsabilidade de uns com os outros.”
[4]

A recomendação paulina exige não apenas a comunhão que os cristãos devem exercer entre si, mas de torná-la manifesta pela mutualidade. Os cismas dentro da igreja de Corinto prejudicavam essencialmente a celebração da Ceia. Em meio às disputas, os seus relacionamentos deixavam de estar em conformidade com aquilo que eles eram em Cristo. Conseqüentemente, a igreja de Corinto realizava uma ceia que era propriamente sua, mas não do Senhor. Não é de se estranhar que após uma esclarecedora observação acerca dos juízos que estavam disciplinando aquela comunidade, o apóstolo termine com esta conclusão “assim, pois, irmãos meus, quando vos reunis para comer, esperai uns pelos outros” (vs. 33, grifos meus). A participação da reunião para a Ceia não estava de acordo com o seu valor, assim, poderia ser considerada indigna.

Notas:
[1] James D.G. Dunn, A Teologia do Apóstolo Paulo, p. 694.
[2] Herman Ridderbos, El Pensamiento del Apóstol Pablo, p. 548.
[3] James D.G. Dunn, A Teologia do Apóstolo Paulo, p. 696.
[4] James D.G. Dunn, op.cit., p. 702.

Rev. Ewerton B. Tokashiki

A participação indigna da Ceia [3]

A igreja de Corinto estava quebrando uma solene tradição cristã. No início de 1 Co 11 Paulo louva os coríntios por estarem fielmente guardando “as tradições assim como vo-las entreguei (vs. 2).” Porém, encontramos o contraste no verso 22 quando num triste e enfático tom Paulo declara que “certamente, não vos louvo”. Não era apenas uma questão de usos, ou costumes, mas uma cerimônia que celebrava a Aliança com o próprio Senhor Jesus, e necessitava ser preservada diligentemente. F.F. Bruce explica que a Ceia foi algo que Paulo “o recebeu ‘do Senhor’, no sentido de que toda tradição cristã tem sua fonte no Senhor crucificado e exaltado, assim como nele, ela é validada para sempre.”[1] A citação de Kistemaker pode reforçar esta idéia quando diz “Paulo revela que a comunhão também é o ato repetido de se receber e entregar o sacramento até que o Senhor volte (vs. 26).”[2]

A participação indigna consiste em desprezar a mútua comunhão que Cristo pelo seu sacrifício expiatório une a Sua Igreja. Os coríntios estavam numa reunião que deveria ter o propósito de celebrar a unidade do Corpo do Senhor.[3] Entretanto, usavam daquele momento para desprezar uns aos outros. Gordon Fee observa que “tal conduta é indigna da Mesa onde está sendo proclamada a morte de Jesus até que ele venha.”[4] F.F. Bruce sumariza todo o problema ao dizer que "quando eles partiam o pão que era o símbolo do corpo de Cristo, eles relembravam seu auto-sacrifício na cruz, mas também declaravam participar todos juntos do seu corpo coletivo. Por isso, se eles, na prática, negavam a unidade que professavam simbolicamente na Ceia, estavam comendo e bebendo de modo indigno, profanando, assim, o corpo e o sangue do Senhor; se eles comiam e bebiam 'sem discernir o corpo', estavam comendo e bebendo condenação para si mesmos. Comer e beber “sem discernir o corpo” significa simplesmente tomar o pão e o cálice, ao mesmo tempo que tratavam seus irmãos cristãos sem amor, em pensamento ou ação."[5]

Nos escritos paulinos o conceito de “estar em Cristo” não admite uma comunhão que não seja recíproca com os que são salvos por Ele. A ênfase na koinonia é perene nos escritos do apóstolo. F.F. Bruce observa que “a contribuição diferente que Paulo faz à doutrina eucarística está em sua ênfase na refeição como uma ocasião de comunhão (koinonia) e em sua interpretação da palavra pão, ‘este o meu corpo’, fazendo-a englobar o corpo coletivo de Cristo.”[6] Esta comunhão é apenas um reflexo da relação que o Corpo tem com a Cabeça (1 Co 10:16-17; Cl 1:18-20; Jo 17:20-26).

A santidade da comunhão deveria ser manifesta na Ceia da Comunhão. Herman Ridderbos comenta que "a palavra ‘indignamente’ a duras penas reproduz o sentido da expressão; porque se deve excluir toda idéia que insinue que por mérito pessoal, ou algum reclamo legal alguém possa fazer-se ‘digno’. A imagem é melhor se expressa em comer e beber de um modo inadequado, impróprio e incoerente com o seu significado. É uma questão de respeito pelo verdadeiro caráter do que aqui se chama o pão e o cálice do Senhor; isto é, respeito pela santidade desta comunhão (cf. 1 Co 10:21)."[7]

A participação da Ceia envolvia a responsabilidade de avaliar o que era aquele singular momento. As pessoas envolvidas deveriam ter consciência da seriedade daquela cerimônia. O que era representado nos elementos. A espécie de relacionamento que ela estabelecia tanto com Cristo, o seu anfitrião, quanto com os demais membros participantes da Igreja do Senhor. Kistemaker comenta que “os coríntios devem saber que não podem participar da Comunhão com o coração cheio de desprezo nem de frivolidade. Depois do devido auto-exame, devem se aproximar da mesa do Senhor com amor genuíno para com seu Senhor e para com o seu próximo.”
[8] A ordenança ao exame pessoal é o remédio contra a indignidade. Não era para julgarem uns aos outros. Mas cada um a si mesmos sobre o modo de como estavam se portando na Ceia. Gordon Fee sugere que "provavelmente isto não seja tanto uma ameaça quanto um chamado a uma conduta verdadeiramente cristã na Ceia. Neste sentido exorta os coríntios a examinarem-se. Sua conduta desmente o evangelho ao qual asseguram compromisso. Antes de participar no banquete, devem examinar-se acerca de suas atitudes para com o corpo, como estão tratando aos demais, sendo que o próprio banquete é um lugar de proclamação do evangelho."[9]

Parte da celebração apropriada da Ceia envolvia o discernir o que significava o “corpo”(vs. 29). Algumas sugestões tem sido dadas para interpretar o que Paulo quis realmente dizer com “discernir o corpo”. Leon Morris afirma que se refere a “distinguir a ceia do Senhor de outras refeições, isto é, não considerá-la como qualquer outra refeição.”[10] Kistemaker segue o mesmo raciocínio dizendo que “os participantes devem fazer uma distinção clara entre o pão que eles comem na festa da fraternidade para o nutrimento do corpo físico e o pão da Ceia do Senhor em benefício do corpo de crentes.”[11] Uma segunda opinião sugerida por alguns intérpretes seria de que os coríntios não refletiam sobre o significado expiatório da Ceia. Isto é, que a ceia representa a satisfação vicária de Cristo oferecida ao Pai.

Todavia, uma terceira opinião parece merecer crédito: o conceito de que “corpo” refere-se à comunhão da Igreja de Cristo.[12] Algumas evidências favorecem esta última interpretação. Primeiro, é ilusório pensar que os versos 27 e 29 são paralelos. O verso 29 não contém no original a variante “indignamente”. Segundo, Paulo já havia fornecido uma definição do que ele entendia por “corpo” em 10:16-17. Neste caso o verso 27 seria uma das comuns digressões do apóstolo. Gordon Fee observa que “o ‘significado’ desse ‘corpo’ nesta Mesa é aqueles que comem do único pão que são eles mesmos o único corpo.”[13] Terceiro, deve ser observado a ênfase da palavra sinercomai (reunir, vs. 17, 18, 33, 34). Quarto, Paulo mantém na perícope seguinte (12:1-31) o uso do termo “corpo” para referir-se a unidade da Igreja, e não para o pão da Ceia. Então, “discernir o corpo” presume uma exigência de participar da Ceia entendendo a comunhão, uns com os outros, forjada na união com Cristo.

A declaração do apóstolo no verso 30 não se trata de uma ameaça, mas de uma constatação. Gordon Fee comenta que “isto não é uma exortação nem uma advertência; é uma reflexão ad hoc sobre a situação deles.”[14] Os que estão em Cristo não precisam temer o juízo condenatório (Rm 8:1). Todavia, estes tristes efeitos dos abusos cometidos pelos cristãos coríntios testemunhavam do seu comportamento impróprio uns com os outros na Ceia do Senhor. Na Bíblia de Estudo de Genebra encontra-se o seguinte comentário “visto que alguns dos crentes de Corinto estavam celebrando a Ceia de uma maneira que destruía a unidade que ela representa, Deus tinha imposto julgamentos contra a comunidade. O propósito de Deus ao julgar aqueles crentes, porém, era de impedi-los de serem ‘condenados com o mundo’ (vs.32).”[15]

Paulo considera necessário informar aos cristãos coríntios que o sofrimento estava relacionado com a observância inapropriada da Ceia do Senhor. A menção das enfermidades e morte é no seu sentido literal. Charles Hodge afirma que “visto que não há nada no contexto que indique que estes termos devem ser usados no sentido figurado de enfermidades morais e decadência espiritual, devem ser tomadas em seu sentido literal.”[16] G.G. Findlay sugere que “a mera coincidência de tais aflições com a profanação da Eucaristia poderia não justificar Paulo em fazer tal declaração; necessitaria estar consciente de alguma revelação específica para esta conseqüência.”[17] Paulo não justifica a fonte da sua afirmação. Não é possível saber se ele diagnostica a situação dos cristãos coríntios pela informação vinda alguém da própria igreja, ou por uma revelação especial vinda do próprio juiz, o Senhor Jesus.

Notas:
[1] F.F. Bruce, Paulo o Apóstolo da Graça (São Paulo, Shedd Publicações, 2003), p. 275.
[2] Simon Kistemaker, 1 Coríntios (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2004), p. 547.
[3] Raymond Bryan Brown, Comentário Bíblico Broadman Atos-1 Coríntios (Rio de Janeiro, JUERP, 1984), vol. 10. Brown adota uma definição mais ampla “a pessoa come de maneira indigna quando não age por amor, em favor da comunhão da igreja, e também quando é insensível para com a presença de Cristo, ingrata para com a sua morte sacrificial, e irresponsável quanto ao significado de sua redenção”p. 419.
[4] Gordon Fee, Primera Epistola a los Corintios (Bueno Aires, Nueva Creación, 1994), p. 634.
[5] F.F. Bruce, Paulo o Apóstolo da Graça, pp. 276-277.
[6] F.F. Bruce, Paulo o Apóstolo da Graça, pp. 276.
[7] Herman Ridderbos, El Pensamiento del Apóstol Pablo (Grand Rapids, Libros Desafío, 2000), pp. 552-553.
[8] Simon Kistemaker, 1 Coríntios, p. 558.
[9] Gordon Fee, Primera Epistola a los Corintios, p. 636.
[10] Leon Morris, 1 Coríntios Introdução e Comentário (São Paulo, Edições Vida Nova, 1991), p. 131.
[11] Simon Kistemaker, 1 Coríntios, pp. 559-560.
[12] Gordon Fee, Primera Epistola a los Corintios, p. 637.
[13] Gordon Fee, op.cit., p. 638.
[14] Gordon Fee, op.cit., p. 639.
[15] R.C. Sproul, ed., Bíblia de Estudo de Genebra (São Paulo, Ed. Cultura Cristã, 1999), p.1359.
[16] Charles Hodge, Comentário de 1 Coríntios (Edinburgh, El Estandarte de la Verdad, 1996), p. 215.
[17] G.G. Findlay, St. Paul’s First Epistle to the Corinthians in:The Expositor’s Greek Testament (Grand Rapids, Wm. B. Eerdmans Publishing Company, 1961), vol. 2, p. 883.

Rev. Ewerton B. Tokashiki

A participação indigna da Ceia [2]

A constatação do apóstolo de que os coríntios participavam da Ceia do Senhor de maneira indigna tem trazido divergência de interpretação quanto ao seu exato significado. Algumas dessas interpretações serão expostas a seguir.

Thomas C. Oden prefere uma interpretação moral para indignamente. Em vez de recorrer a palavra grega original, ou, ao contexto próximo da passagem, ele busca uma relação com a desqualificação moral do caráter de alguns cristãos coríntios. Citando alguns versículos Oden concebe a seguinte ponte “aqueles que tem um procedimento desordenado são admoestados (2 Ts 3:6-15). Alguns ‘devem examinar a si mesmos antes de comer do pão e beber do cálice. Pois o que come e bebe sem discernir o corpo do Senhor, come e bebe juízo para si’ (1 Co 11:28-29). Paulo especificamente instrui os coríntios que ele não deveriam comer ‘com alguém que chamasse a si mesmo de irmão, mas que era sexualmente imoral ou ganancioso, um idólatra ou um caluniador, beberrão ou mentiroso’ (1 Co 5:11).” [1] Entretanto, o advérbio indignamente refere-se ao modo da ação, não especificamente ao caráter do agente.

Leon Morris sugere que a participação digna da Ceia deve ser com fé. Ele declara que “mas noutro sentido podemos vir dignamente, isto é, com fé, e com a devida realização de tudo que é pertinente a tão solene rito. Negligenciar nisto é vir indignamente no sentido aqui censurado.”[2] Todavia, os que participavam da Ceia não estavam sendo reprovados por sua falta de fé. Nem por permitirem a participação de incrédulos. A sua reprovação era por desprezar o cerimonial da Ceia e a comunhão dos irmãos.

O teólogo da antiga Princeton Charles Hodge defende que a participação indigna significa participar com espírito negligente e irreverente. Ele diz que “se a Ceia do Senhor é em sua própria natureza uma proclamação da morte de Cristo, conseqüentemente que os que participam dela como se fosse uma comida ordinária, ou de maneira irreverente, ou com qualquer outro propósito que o moveu a realizá-la, são culpados do corpo e do sangue do Senhor.”[3] Em seguida define dizendo que “comer ou beber indignamente é, em geral, vir a mesa do Senhor com espírito negligente e irreverente; sem intenção nem desejo de comemorar a morte de Cristo como sacrifício por nossos pecados, e sem o propósito de cumprir as obrigações que com ela contraímos.”[4] Hodge se limita a interpretar a participação indigna como sendo um problema meramente subjetivo.

O comentarista F.W. Grosheide relaciona o significado da indignidade ao errôneo uso da Ceia. Ele argumenta que “indignamente: isto implica que uma certa dignidade, ou valor está relacionado com o pão e o cálice. Aquele que os utiliza sem levar em conta o seu valor, os usa de um modo indigno, ou seja, não está de acordo com o seu valor. Um tão indigno uso os coríntios fizeram da Comunhão quando serviram-na, seguida duma festa do amor unida pela discórdia.”[5] Embora Grosheide capte o significado original da palavra indignamente, ele o erra em sua aplicação. Defende que o erro dos coríntios era ter a Ceia do Senhor como sendo de inferior valor, por realizá-la após uma festa. Deve-se notar que ele pressupõe um modelo de ceia greco-romana. A igreja de Corinto teria apenas feito uma ligeira adaptação para celebrar a Ceia do Senhor após a refeição principal. Como nas refeições greco-romanas, a principal e mais importante era a primeira refeição, servida para a nutrição, a que era servido em seguida objetivava encerrar o jantar, mas não tinha valor nutritivo. Esta concepção torna-se insustentável pelo fato, que não é provável que a Igreja Primitiva tenha mudado a sua prática litúrgica tão cedo, abandonando o modelo da ceia pascal judaica, pela ceia greco-romana. A história aponta para a preservação da tradição original, pelo menos nos primeiros dois séculos.[6]

C.K. Barret interpreta que o indignamente é posicionar-se com hostilidade aos irmãos durante a Ceia. Barret declara “o que Paulo entende por indignamente é explicado pelos versos 21 em diante; ele pensa das falhas morais de partidarismo e ganância que marcavam a reunião dos coríntios.”[7] Continua esclarecendo que “comer e beber indignamente (no sentido indicado acima) é contradizer tanto o propósito da auto-entrega de Cristo, e o espírito no qual foi feito, e situar-se entre aqueles que foram responsáveis pela crucificação, e não entre aqueles que pela fé receberam o seu fruto.”[8] A segunda citação possuí uma implicação lógica que é verdadeira. Mas, ela não se encontra de modo objetivo na passagem (11:17-34). Logo, não é possível incluí-la como um aspecto da indignidade que Paulo estava reprovando.

John F. MacArthur Jr. sustenta que a indignidade refere-se a uma depreciação da cerimônia. Comenta que “vir indignamente à Comunhão é uma simples desonra a cerimônia; é uma desonra Àquele a quem a honra é celebrada. Tornamo-nos culpados de desonrar o seu corpo e sangue, que representam a Sua obra e completa graça por nós, Seu sofrimento e morte em nosso favor.”[9] A interpretação de MacArthur é parcial. Ao expor que os coríntios estavam desonrando a cerimônia, omite os abusos cometidos entre os cristãos coríntios (cf. vs. 17-22, 33-34).

Simon Kistemaker prefere uma interpretação inclusiva. Reconhece que há uma variada gama de definições acerca do significado da maneira indigna que a Ceia foi realizada. Simplesmente prefere assumir que "talvez Paulo tenha pretendido que o advérbio indignamente fosse interpretado de modo mais amplo possível. É verdade que alguns dos coríntios mostravam falta de amor, enquanto outros deixaram de distinguir entre a festa de fraternidade e a observância da Santa Ceia. Ambos estavam errados, e Paulo os confronta. Mas o texto tem uma mensagem para a Igreja universal, também. Os cristãos nunca devem considerar a celebração um mero ritual. Ao contrário, os crentes sinceros devem aguardar com alegria a Ceia do Senhor. Os cristãos devem confessar não serem dignos por causa do pecado, mas terem sua posição de dignidade por causa de Cristo. Paulo não está exigindo perfeição antes que se permita aos crentes virem à mesa da comunhão. Ele defende um estilo de vida governado pelas reivindicações do evangelho de Cristo, e que tribute o mais alto louvor a Deus."[10]

É possível que Kistemaker tenha razão. Mas, parece que a passagem trata de um problema bem específico. Entretanto, pelo fato do apóstolo exigir um auto-exame, e indicar a ocorrência de disciplinas distintas, e por fim fazer uma recomendação dirigida a mutualidade (esperai uns pelos outros, vs. 33), é mais sensato pensar que a participação indigna na Ceia poderia ser um problema específico.

Notas:
[1] Thomas C. Oden, Life in the Spirit: Systematic Theology (Peabody, Prince Press, 2001), vol. 3, p. 326.
[2] Leon Morris, 1 Coríntios Introdução e Comentário (São Paulo, Ed. Vida Nova e Mundo Cristão, 1988), p. 131.
[3] Charles Hodge, Comentário de 1 Corintios (Edinburg, El Estandarte de la Verdad, 1996), p. 212.
[4] Charles Hodge, Comentário de 1 Corintios, p. 213.
[5] F.W. Grosheide, Commentary on the First Epistle to the Corinthians (Grand Rapids, Wm. B. Eerdmans Publishing Company, 1953), pp. 273-274.
[6] Justino (100-165 d.C) descreve a celebração da Ceia da seguinte forma “depois àquele que preside aos irmãos é oferecido pão e uma vasilha com água e vinho; pegando-os, ele louva e glorifica ao Pai do universo através do nome do Filho e do Espírito Santo (...) depois que o presidente deu ação de graças e todo o povo aclamou, os que entre nós se chamam ministros ou diáconos dão a cada um dos presentes parte do pão e do vinho e da água sobre os quais se pronunciou a ação de graças e os levam aos ausentes.”Justino de Roma, 1 Apologia in: Patrística (São Paulo, Ed. Paulus, 1995), pp. 81-82.
[7] C.K. Barret, The First Epistle to the Corinthians (Peabody, Hendrickson Publishers, 1996), p. 272.
[8] C.K. Barret, The First Epistle to the Corinthians, p. 273.
[9] John F. MacArthur, Jr., The MacArthur New Testament Commentary1 Corinthians (Chicago, Mood Press, 1984), p. 274.
[10] Simon Kistemaker, 1 Coríntios (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2004), p. 557.

Rev. Ewerton B. Tokashiki

17 outubro 2006

A participação indigna da Ceia [1]

Corinto: uma igreja problemática

Paulo escreve 1 Coríntios corrigindo várias distorções cometidas pelos coríntios em seu convívio diário.[1] O apóstolo reprova as divisões (1:10-4:20); o vergonhoso e público caso de incesto de um de seus membros (5:1-13); disputas legais entre cristãos (6:1-11); casos de membros da igreja local envolvidos com prostitutas (6:12-20); desentendimentos quanto ao valor do casamento (7:1-40); a participação de festividades pagãs e comidas oferecidas a ídolos (8:1-11:1). Mas, os últimos três problemas seguintes estão relacionados com as reuniões públicas dos cristãos na igreja de Corinto: primeiro, a explicação da autoridade entre homens e mulheres na igreja (11:2-16); segundo, relata as distorções da Ceia do Senhor (11:17-34); e por último, analisa a problemática do culto na igreja de Corinto envolvendo a má compreensão da distribuição, importância e usos dos dons (12:1-14:40). Em seguida, Paulo fornece um esclarecimento da veracidade da ressurreição de Cristo, e a certeza da ressurreição futura dos crentes (15:1-58). Solicita como a igreja deve proceder para a coleta (16:1-11) e menciona a ida de Apolo (16:12).

O problema da Ceia não era generalizado, mas era perceptível. Não é possível sustentar que toda a igreja de Corinto se encontrava reprovada por Paulo. Ele mesmo diz que “porque importa que haja partidos entre vós, para que também os aprovados se tornem conhecidos em vosso meio” (vs. 19).

É necessário observar que os abusos da Ceia em Corinto envolviam apenas os cristãos. Não há indícios de que nesta perícope Paulo esteja preocupado em restringir a Ceia. Os coríntios não estavam sendo acusados de permitir a participação de incrédulos na Mesa do Senhor. Não eram os incrédulos que estavam profanando a Ceia, mas as atitudes ímpias dos cristãos coríntios.

A reconstrução histórica da Ceia em Corinto

Há dois modos de reconstruir a reunião da Ceia da igreja Corinto. O primeiro modelo sugere que a Ceia seguia o padrão de um jantar comum. Isto pressupõe uma refeição extraída da cultura greco-romana. Conforme este modelo a Ceia da igreja de Corinto possuía duas fases. A primeira desenrolava-se numa refeição comum, com o propósito de nutrição. Logo em seguida, viria uma segunda parte, com a celebração solene da Ceia do Senhor. Esta interpretação explica que durante a primeira fase da refeição os crentes de Corinto cometiam sérios abusos, tais como egoísmo, bebedeira, glutonaria e desprezo pelos irmãos pobres. Sendo que a Ceia do Senhor que viria em seguida já não teria importância, para os que se atrasaram e não participaram da primeira refeição, estando ainda com fome e gerando um descontentamento entre os cristãos coríntios. James D.G. Dunn está correto ao discordar desta reconstrução histórica, pois entende que “o problema neste caso é que Paulo parece ter em mente só uma única refeição comum (a Ceia do Senhor). A prática que ele reprova não é a de uma refeição separada (precedente) da Ceia do Senhor, mas o abuso de uma única refeição (a Ceia do Senhor) que começava com o único pão e terminava com o cálice ‘após a ceia’ (11,25).”[2]

A segunda reconstrução histórica interpreta a Ceia do Senhor como sendo uma única refeição numa reunião com o propósito solene de celebrar a comunhão da Igreja de Cristo. Seguindo o padrão da ceia Pascal, então, a interpretação toma outro rumo. Primeiro, pressupõe-se que a Ceia do Senhor, em alguma medida, possuía continuidade com a refeição da antiga Aliança. Segundo, a Ceia era uma refeição litúrgica (Mt 26:30), seguindo os moldes da tradição apostólica (com a sentença: eu recebi do Senhor o que também vos entreguei, vs. 23), não meramente uma reunião de confraternização. Em terceiro lugar, Paulo usa uma palavra grega muito específica para a “ceia”, que se refere ao “principal alimento recebido à noite”
[3] e não a uma refeição secundária.

A Ceia do Senhor representa, entre outras concepções, a comunhão da Igreja de Cristo (10:17). O comportamento partidário e egoísta contradizia abertamente o sentido da cerimônia. Tal era a distorção das reuniões dos coríntios, que descaracterizavam a Ceia, tornando o ambiente impróprio de celebrar a comunhão do Corpo de Cristo (vs. 20).

Não se deve admitir que as divisões dentro da igreja de Corinto ocorriam somente por problemas sociais. James D.G. Dunn interpreta, erroneamente, que “é particularmente evidente que a tensão era basicamente entre cristãos ricos e cristãos pobres, isto é, entre os que tinham comida e bebida suficiente e suas próprias casas (11,21-22) e ‘os que nada têm’ (11,22)”.[4] Percebe-se que o principal problema que afetava a celebração da Ceia da igreja de Corinto eram os partidarismos relacionados a uma má compreensão de quem eram os seus líderes. Dentro da igreja havia discórdia e competição, pois “cada grupo se jactava da sabedoria superior de seu escolhido (1:10-17).”[5] O problema não era apenas uma luta de classes sociais. O texto refere-se a “divisões” (vs. 18) e a “partidos” (vs. 19). Não eram apenas dois grupos em desentendimento, mas várias facções, acerca de diversos assuntos (cf. 3:4, 22; 8:7, 9, 13; 9:2; 11:22).

Notas:
[1] D.A. Carson, et.al., Introdução ao Novo Testamento (São Paulo, Ed. Vida Nova, 1997), pp. 287-289.
[2] James D.G. Dunn, A Teologia do Apóstolo Paulo (São Paulo, Ed. Paulus, 2003), pp. 688-689.
[3] William D. Mounce, The Analytical Lexicon to the Greek New Testament (Grand Rapids, Zondervan Publishing Books, 1992), p. 133.
[4] James D.G. Dunn, op.cit., p. 687. Embora sendo cuidadoso com a sua análise contextual, Dunn não evita a sua tendência em defender que “a análise sociológica sugere que o assunto tratado em 1 Co 10-11 era primariamente a união social e não tanto uma disputa teológica” p. 689. É aceito que Paulo não estava discutindo com os coríntios acerca da presença de Cristo na Ceia. Mas ao instruir-lhes acerca da natureza da Ceia do Senhor (11:23-26) certamente o apóstolo releva-lhes à memória a gravidade da confusão e profanação da Ceia, a ponto de acusá-los de descaracterizá-la, e dizer-lhes que aquilo que eles faziam “não é a ceia do Senhor que comeis” (11:20).
[5] D.A. Carson, et.al., Introdução ao Novo Testamento, p. 287.

Rev. Ewerton B. Tokashiki

16 outubro 2006

Cosmovisão e ética

O cristianismo é uma religião em que a ética exerce uma função essencial. O trino Deus é santo, e exige um relacionamento santo, a sua verdade é absoluta, e a justiça é um elemento permanente em seu reino. Não existem decisões e relacionamentos em que não se apliquem preceitos éticos, e que não tenham motivações e implicações morais. Aceitando esta premissa podemos pensar que o cristianismo é mais do que discipulado, mais do que acreditar em um sistema de doutrinas sobre Deus. O Cristianismo genuíno "é uma maneira de ver e compreender toda a realidade. É uma cosmovisão, uma visão de mundo. [...] em toda área da vida, conhecimento genuíno significa discernir as leis e ordenanças pelas quais Deus estabeleceu a criação, e então permitir que essas leis modelem a maneira pela qual devemos viver."[1]

Toda ética é orientada por uma cosmovisão. As nossas crenças ditam o nosso comportamento, porque as idéias têm conseqüências. Em toda ação moral há uma teoria definida ou não. Uma das características exclusivas dos seres humanos é que não podem fazer nada sem um tipo de orientação ou condução que uma cosmovisão dá. Necessitam ser guiados porque são inescapavelmente criaturas com responsabilidade, que por natureza são incapazes de sustentar opiniões puramente arbitrárias ou fazer decisões inteiramente sem princípios. Por isso, é necessário escolher conscientemente uma específica cosmovisão cristã. Sem uma cosmovisão a possibilidade da incoerência é presente, tornando fragilizada qualquer postura ética que for adotada. Por isso, James W. Sire comenta que comprometer-se com uma cosmovisão “na verdade, é um passo significativo na direção da auto-conscientização, do auto-conhecimento e do auto-entendimento.”[2]

Cosmovisão é o conjunto de premissas que orientam a interpretação de toda a experiência com Deus, comigo e com o próximo. Norman Geisler observa que a cosmovisão “é um sistema filosófico que procura explicar como os fatos da realidade se relacionam e se ajustam um ao outro.”[3] Existem basicamente três provas que formam a estrutura de uma cosmovisão.[4] Primeiro, a suficiência dos pressupostos. Para o desenvolvimento de uma lógica válida, que conduzirá a um resultado que expressa a verdade, é necessário reter-se pressupostos não somente verdadeiros, mas também suficientes. Qualquer informação que falte, propiciará para um possível desvio da verdade. A cosmovisão que não tem respostas a perguntas cruciais não pode ser verdadeira.

Segundo, a consistência interna. A contradição é um caos mental. O uso da lei da não-contradição é necessário para a formação de qualquer cosmovisão. Esta lei da lógica declara que duas declarações não podem possuir sentido contrário, ao mesmo tempo e no mesmo contexto. A contradição é inerente e absurdamente incompreensível. A consistência elimina os elementos e as categorias contraditórias. A essência da verdade é a coerência, pois os fatos são complementares entre si.

Terceiro, a coerência com a experiência externa. Devemos perguntar se a cosmovisão ajusta-se aos fatos. A aplicabilidade existencial de uma cosmovisão é crucial para comprovar a sua veracidade. É necessário questionar se esta percepção da realidade é construtiva? Quais são as conseqüências práticas de se crer assim? Estas conclusões não abrirão portas para um comportamento bizarro, ou destrutivo?É importante notar que as cosmovisões têm a ver com crenças básicas sobre as coisas. As crenças básicas que uma determinada pessoa sustenta, tendem a formar uma estrutura ou padrão. Eis a razão por que os humanistas freqüentemente falam de um "sistema de valores". Todas as pessoas reconhecem, em algum grau pelo menos, que devem ser consistentes em suas concepções, se quiserem tomá-las com seriedade; de modo responsável, não adotam uma posição arbitrária de crenças básicas que não possuam coerência. A cosmovisão forma, num grau significativo, a maneira pela qual avaliamos os eventos, assuntos e estruturas de nossa civilização e da nossa época. A cosmovisão bíblica é simplesmente um apelo para que o crente leve a sério a Bíblia e o seu ensino para a totalidade da civilização, e que não a relegue a alguma área opcional chamada "religião".

Notas:
[1] Charles Colson & Nancy Pearcey, E Agora Como Viveremos? (Rio de Janeiro, CPAD, 2000), p. 33.
[2] James W. Sire, O Universo ao Lado (São Paulo, Editora Hagnos, 2004), p. 21.
[3] Norman Geisler, & Peter Bocchino, Fundamentos Inabaláveis (São Paulo, Editora Vida, 2003), p. 53.
[4] Alan Myatt, Apostila de Teologia Sistemática (texto não publicado do Seminário Teológico Batista do Sul, Rio de Janeiro, 1999), p. 2.

Rev. Ewerton B. Tokashiki