19 abril 2007

Espiritualidade urbana

Introdução
É de conhecimento geral que a maioria da população brasileira reside nas cidades. “Dos 152.322.400 habitantes da terra brasileira, cerca de 74% habitam as cidades e se concentram, em maior número, nas grandes regiões metropolitanas”.[1]

O êxodo rural nas décadas de 60 e 70 trouxe um crescimento significativo às cidades, criando grandes metrópoles e um novo conceito de vida: a vida urbanizada. Juntamente com o crescimento das cidades cresceu também os males sociais. Foi-se o tempo em que achávamos que alguma coisa ruim iria acontecer, no máximo, com o nosso vizinho. Hoje, nas grandes cidades, as pessoas ficam temerosas em sair para o serviço, porque não sabem se irão retornar para casa no fim da tarde, pois uma bala perdida pode tirar a vida de qualquer pessoa a qualquer momento. Também não é mais visto pessoas conversando com seus vizinhos no cair da tarde.

A cidade isolou seus habitantes, trancando-os atrás das grades de ferro e dos altos muros de concreto. Toda uma parafernália eletrônica foi elaborada no sentido de proporcionar aos cidadãos algum sentimento de segurança. Todos clamam por segurança, buscando nela uma alternativa para viver melhor na cidade. O individualismo é algo que caracteriza o cidadão das grandes metrópoles, fazendo com que o próximo seja apenas mais um rosto na multidão.


Diante destas considerações, podemos questionar: É possível ao homem dizer que ama a Deus, mas viver o individualismo das grandes cidades? O que a Igreja, como uma agente proclamadora do reino de Deus, pode fazer para aproximar o homem à presença de Deus?

Nos dias atuais temos presenciado uma busca crescente pelo sagrado. Isso faz com que as pessoas se sintam mais próximas de Deus. Mas mesmo esta busca pelo sagrado se torna infrutífera, pois as pessoas se enganam, porque se estivessem próximas de Deus certamente o mundo atual não experimentaria tantos males sociais como é visto atualmente. Portanto, não há como dizer que amamos a Deus sem um amor pelo próximo, como diz 1 João 4.20: “Se alguém disser: amo a Deus, e odiar a seu irmão, é mentiroso; pois aquele não que ama a seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê”. Isso reflete muito bem as cidades, pois muitos de seus moradores têm a pretensão de achar que o amor a Deus não tem nada a ver com o amor ao próximo. João, comentando o texto de Abel e Caim, diz que: “Amemos uns aos outros; não segundo Caim, que era do maligno e assassinou a seu irmão; e por que o assassinou? Porque as suas obras eram más e a de seu irmão justas” (1João 3.11,12). Assim, o problema de Caim não foi a invenção da cidade no sentido de suas realizações tecnológicas, pois estas foram e são de grande benefício para a humanidade, mas foi a maldição que o levou a fugir da presença de Deus.

Caim e a Cidade
Em Gênesis 4.1-7 vê-se a situação onde Deus aceita o sacrifício de Abel e rejeita a pessoa e a oferta de Caim, trazendo, assim, a ira de Caim contra o fato de Deus não ter aceitado a sua pessoa e a sua oferta. A resposta de Caim a essa rejeição de Deus lhe causou revolta, e começou a andar amargurado. O que resultou no assassinato de Abel, para que sua ira fosse aplacada. Nas palavras de E. Wielsel:

Ah, se Caim tivesse preferido a palavra à violência, se tivesse falado com Deus da seguinte maneira:

- Senhor do Universo, ouve-me. Tu és minha testemunha como eu sou a tua, tu és meu juiz e eu tenho medo, tenho medo de julgar. Reconhece, porém, que tenho toda razão em clamar a ti mostrando-te minha confusão e minha irritação; tenho todos os meios para opor minha injustiça à tua; reconhece que eu poderia protestar contra as provações que impões aos homens. Eu poderia afogar a humanidade em minhas lágrimas e em meu sangue, eu poderia acabar com essa comédia; pode ser que tu me incites a isso; pode ser que tu me forces a isso. Mas eu não o farei, ó Senhor do Universo, eu não destruirei, não matarei!

Se Caim tivesse falado dessa maneira, a história teria sido bem diferente! Não teria havido a aventura desesperada de dois irmãos, um dos quais se impõe matando e o outro fazendo-se matar, mas sim a gesta bela e apaixonante, pura e purificada, de uma humanidade de nobreza e piedade.

Se Caim tivesse preferido testemunhar a derramar o sangue, seu destino teria sido nosso exemplo e nosso ideal, e não a imagem de nossa maldição. Em vez de ser sugestão da morte, ele ficaria sendo nosso irmão; e nós o invocaríamos não com medo, mas com orgulho.[2]

Mas a história não se deu assim. Caim agiu de forma violenta e revoltosa contra seu irmão Abel. Depois que Abel é preferido por Deus e ele rejeitado, instala-se em seu coração um desejo de vingança, e essa vingança é direcionada contra Abel, já que nada poderia ser feito contra Deus. E esse tipo de vingança dirigida contra a criatura e não contra o Criador já é encontrado em outras partes da Bíblia, como é o caso de satanás que dirige seu ataque contra a coroa da criação de Deus, que é o homem.

A partir do versículo 9 instala-se um diálogo entre Caim e Deus, e o Senhor tenta então conduzir Caim a uma conscientização de seu pecado: “Onde está Abel, teu Irmão?” (v.9). Mas Caim não admite seu pecado e mente sem nenhuma vergonha, escondendo-se atrás de uma frase: “Acaso sou eu guardador de meu irmão?” (vs.9). E isso é uma forma de esconder a verdade, ou seja, responder a uma pergunta com outra.


No versículo 10 Deus abre o jogo: “Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama a mim desde a terra”. Deus, então, depois de dar a Caim possibilidade de arrependimento, e este se recusa a se arrepender, coloca diante dele seu pecado, dando, em seguida, o veredicto: “Agora maldito és desde a terra, que abriu a sua boca para receber das tuas mãos o sangue do teu irmão” (vs. 11). Essa sentença é um paralelo da sentença que foi dada a Adão em Gênesis 3.17: “Maldita é a terra por tua causa...”, porém, com uma diferença, nela a pessoa de Caim é amaldiçoada, enquanto que na primeira maldição só a terra recebera a maldição, e Adão foi amaldiçoado indiretamente.

O versículo 12 é a descrição desta maldição: “Quando lavrares o solo, não te dará mais a sua força; fugitivo e errante serás pela terra”. Caim teria que procurar outro meio de subsistência, e outra forma de proteção. Aí está o motivo da queixa de Caim descrita nos versículos 13 e 14, dizendo que ele ficaria sem proteção (qualquer um que o achasse poderia matá-lo), e sem como viver, já que ele não poderia mais contar com a produção agrícola (o solo não produziria mais nada a ele). Deus, então, dá uma solução para esse impasse de Caim pondo-lhe um sinal (vs.15). E esse sinal era a possibilidade que Deus dava a Caim de viver em “segurança”, mesmo longe da presença de Deus.

Nos versículos 16 e 17 vemos Caim deixando a presença de Deus para, doravante, viver de acordo com seus próprios intentos. Ele deixa sua terra natal e vai viver em uma terra distante (Node), onde tem um filho (Enoque), constrói uma cidade e dá o nome de seu filho, iniciando a uma nova forma de vida. Como diz Derek Kidner “o nome Enoque tem parentesco com o verbo iniciar. Talvez haja a idéia de um novo princípio no fato de se dar esse nome ao primeiro filho e à primeira cidade de Caim independente”.[3]

A Cidade como alvo de bênção ou maldição de Deus
A perícope de Gênesis 4.8-17 é um elo da perícope que narra o nascimento de Abel e Caim (4.1-7). Um era pastor de ovelhas e o outro era agricultor. Parece que “ambos manifestaram ato de oferenda, fé na existência de Deus e no direito de reverência e culto. Cada um fez a oferenda de acordo com a iniciativa individual [tradução própria]”.[4] Por isso que a oferta de Caim fora do fruto da terra e a de Abel um animal de seu rebanho. A aceitação de Abel e a rejeição de Caim por parte de Deus trouxe uma crise familiar entre os irmãos. Caim não conseguiu se conformar com este fato, e fez de seu irmão o alvo de sua revolta, já que Deus não podia ser tocado por sua vingança ele se vira contra aquele que era amado por Deus, Abel. Caim foi repreendido por Deus quanto à sua atitude de rebelião (vv.6,7), mas parece que Caim já estava resolvido a praticar a maldade que estava em seu coração.

A perícope de Gênesis 4.17-26 narra a descendência de Caim. E essa descendência deu um novo início à civilização humana, introduzindo profissões que jamais se ouvira falar. Mas também a violência começa a crescer (v.23) como é visto no cântico de Lameque. E isto fica claro nas palavras do Dr. Shedd: “A narrativa chama a atenção para a edificação da cidade como se isso marcasse um novo estágio no avanço da civilização. Sem dúvidas foi o aumento da família de Caim e do círculo dos seus dependentes que ocasionou a edificação da cidade. Provavelmente a cidade não passasse de um centro defendido de vida social organizada”.[5]

Dentro do livro de Gênesis podemos observar o tema “cidade” sendo tratado em outra parte, como por exemplo, Gênesis 11. E em referência a isso o ápice dessa narrativa conclui que a mesma condenação da vida urbana será encontrada na narrativa da torre de Babel.

Como na narrativa de Caim a narrativa da torre de Babel mostra o mesmo problema: o homem tentando se esconder de Deus se refugiando nas cidades. Parece que o mesmo medo de Caim de ser fugitivo e errante pela terra (4.14) se encontra no episódio da torre de Babel “...para que não sejamos espalhados por toda terra” (11.4). O ajuntamento não era para viver em comunidade apenas, mas era com o intuito de proteção, visando serem poderosos e invencíveis.

Nas narrativas referentes às cidades encontramos um início e um desfecho parecidos. O início da cidade com Caim foi para proteção, assim como foi com a torre de Babel. No caso de Caim o fim da cidade veio por “que a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era continuamente mau todo desígnio do seu coração” (6.5). Deus assim, envia um dilúvio para destruir a cidade e dá início a uma nova oportunidade para o homem. Após o dilúvio os homens novamente se ajuntam para se protegerem, construindo, assim, uma cidade (11.4). O desfecho que Deus dá para esta história é de novamente fazer com que os homens não confiem em cidades para se protegerem. Ele, então, confunde as línguas (11.7) para que os homens possam ser espalhados pela terra e parem de confiar em cidades para sua proteção (11.8). Mas o ideal de Deus, para o ajuntamento em sociedade, é relatado a partir do capítulo 12 de Gênesis com o chamado de Abraão no qual diz que: “farei de ti um grande povo” (12.2), e ainda diz que a bênção de Deus estaria sobre este povo, e Ele abençoaria os que abençoassem o seu povo, e amaldiçoaria os que amaldiçoassem o seu povo (12.3).


Até o capítulo 11 de Gênesis observamos a tentativa do homem em formar cidades, mas o capítulo 12 fala dos planos de Deus para viver entre um povo escolhido, a nação de Israel, descendentes de Abraão e Isaque. Agora não vemos mais a iniciativa do homem em formar uma cidade, mas, sim, a iniciativa de Deus, que seria o centro desta cidade. Quanto a isto veremos o que outros livros da Bíblia dizem a respeito.

Podemos observar que outros lugares da Bíblia, de forma quase direta, trata do mesmo tema abordado.

Velho Testamento
Em Dt.4.41-43 encontramos a referência das cidades de refúgio por Moisés que serviria de proteção para aquelas pessoas que cometessem algum crime não intencional, desta forma elas não seriam condenadas injustamente. Mas em Josué 20.7-9 é que vemos a instituição das cidades de refúgio, pois agora o povo de Israel estava habitando na terra de Canaã e se fazia necessário a existência de tais cidades.

Já em Juízes 21.25 vemos que a anarquia se instalara em Israel, pois até aquele momento o povo não havia adquirido um sentido religioso e nem monárquico. Por isso que o autor de Juízes disse: “Cada um fazia o que lhe parecia correto”. Isso é notado claramente em todo livro em fatos do tipo pai assassinando filha por votos pessoais, estupro coletivo, vingança desenfreada, religião egoísta e líderes sem padrão de referência. Faltava ao povo alguém que desse um sentido moral e sagrado para a cidade. Sem isso a cidade é apenas um ajuntamento onde dominam os interesses humanos.

No saltério observamos que a idéia da presença de Deus é muito prestigiada, de forma poética, nas palavras do Salmo 46.2: “Deus é o nosso refúgio”, e ainda no versículo 5 diz que “há um rio cujo as correntes alegram a cidade de Deus”. Essas duas alegorias representam a presença de Deus dando sentido à existência de um povo. Fica claro quando recordamos de Gênesis 12.1-3 aonde vemos Deus planejando morar entre seu povo. E a idéia era resgatada toda vez que esse Salmo era cantado pela congregação de Israel.

Novo Testamento
O assunto analisado ganha esclarecimento nas palavras do evangelista Mateus, quando diz que “Jesus acabou de dar instruções aos seus doze discípulos, partiu dali para ensinar e pregar nas cidades deles” (11.1). Esta sentença faz parte da missão de Jesus exposta nos sinópticos, onde com Ele se inaugura a chegada do Reino de Deus. Com isso queremos dizer que na visão de Jesus as cidades eram alvos da preocupação de Deus como é visto em Mateus 11.20-24, que narra a indignação de Jesus por causa da dureza de algumas cidades.

Também em Atos notamos que as cidades são alvos de evangelização da Igreja, pois nelas encontram-se pessoas que não tem sua vida centrada em Deus.

O desfecho final das cidades, em termos escatológicos, é descrito por João em Apocalipse 21 e 22. Nesses capítulos João quer dizer que “a cidade dos eleitos, em total contraste com a Babilônia, é um Dom de Deus. A perspectiva é puramente celeste”[6], onde a intenção humana não faz mais sentido. Isso é descrito no início do capítulo 21 onde João diz: “Vi um novo céu e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra se foram, e o mar já não existe. Vi também descer do céu, de junto de Deus, a Cidade Santa, uma Jerusalém nova”(vv.1,2). O Apocalipse descreve também que o mal social das cidades sem Deus não estaria presente nesta nova cidade (21.8 e 27).


A conclusão chegada é que o Novo Testamento alude todo o estágio da salvação (presente, passado e futuro) no contexto das cidades, ou seja, a cidade é tanto o alvo como o local da realização definitiva de Deus, pois vemos Jesus pregando nas cidades, os apóstolos são enviados às cidades e Apocalipse fala das sete igrejas que estão localizadas em cidades, bem como, a morada definitiva do cristão é descrita como “cidade santa”.

CONCLUSÃO
A Igreja como agente proclamadora do reino de Deus, pode tentar aproximar o homem de Deus de quatro maneiras:

1· Promovendo a evangelização através de relacionamentos pessoais, aproximando-se do homem sem Deus, e para isso, aproveitando as lacunas deixadas pelo sistema das grandes cidades;

2· Oferecendo o convívio sociável, ou seja, a Igreja influenciando os relacionamentos interpessoais, para que as pessoas aprendam que o cristianismo não é apenas vertical, mas, também, horizontal. A Igreja ensinando que mesmo nas cidades é possível viver um relacionamento significativo e saudável com Deus e com o próximo;

3· Desenvolvendo ministérios que atuem na sociedade de forma a oferecer serviço social relevante, que mostre que o cristianismo não está apenas interessado consigo mesmo, ou seja, que tenha a religião como um fim em si mesmo, mas está interessado em proporcionar ao ser humano conforto material (alimentos, vestuários, etc.), e, também, conforto espiritual (aconselhamentos, visitação, ministração da Palavra, etc.). A exemplo de Jesus, que procurava as cidades para manifestar os sinais do reino de Deus, e não somente através da pregação do evangelho, mas, também, através da convivência com os marginalizados e excluídos da sociedade de seu tempo.

4· Incentivando os cristãos a se envolverem com a sociedade e a política de sua época, com o intuito de, através da influência positiva, incutir padrões bíblicos de qual é o ideal de Deus para as cidades.

BIBLIOGRAFIA
1. Bíblia de Jerusalém, Paulus. 1973.
2. Bíblia Hebraica Stuttgartensia. Stuttgart. 1991.
3. JAMIESON, Roberto. Comentario Exegetico y Explicativo de la Biblia. El Paso: Casa Bautista de Publicaciones, 1988.
4. KIDNER, Derek. Gênesis Introdução e Comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1991.
5. McKENZIE, John L. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulus 1983.
6. SHEDD, Russell. O Novo Comentário da Bíblia, vol.1. São Paulo: Vida Nova, 1990.
5. SCHMIDT, Werner H. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1994.
6. SCHREINER, J. Palavra e Mensagem. São Paulo: Paulinas, 1987.
8. VIANA, Fernando. Novo Manual Didático de Pesquisas, 2. Ed. São Paulo: Didática Paulista, 1997.
Notas:
[1] Manual Didático de Pesquisas, p.536.
[2] E. Wielsel, pp.61,62.
[3] DEREK KIDNER. Gênesis, Introdução e Comentário. p.72.
[4] Comentario – Exegetico y Explicativo de la Biblia, p.24.
[5] SHEDD. Op. Cit., p.89.
[6] Bíblia de Jerusalém, p.2326.
Rev Baltazar L. Fernandes

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