31 outubro 2011

Carta de Lutero contra Johannes Eck

Meu querido Eck está indignado, prezado leitor. Consagrou à cátedra apostólica outra folha de debate, cheia de sua raiva e acusações contra mim, acrescentando às suas teses anteriores outra, violentamente indignada. Isso representa uma bela ocasião para responder de uma vez por todas às suas calúnias, se eu não tivesse certo receio de que isso poderia atrapalhar o futuro debate. Mas tudo tem seu tempo. Por ora basta. Citando várias sentenças de alguns santos pais, Eck acusou-me de inimigo da igreja. Compreenda isso da seguinte maneira, prezado leitor: Por "igreja" ele designa suas opiniões e as de seus "heróis que se empenharam pela causa das indulgências". Isso porque ele é um consagrador da cátedra apostólica e fala à maneira de seus supostos heróis que usam as palavras da Escritura e dos pais, como Anaxároras[1] lidava com os elementos. Depois de tê-los dedicado à cátedra apostólica, as palavras rapidamente se transubstanciam (a bem dizer: prodigiosamente) em que quer que seja. Prestam-se também para significar aquilo que ou sonham em delírio, ou fantasiam na impotência de sua inveja feminil; e, finalmente, seus conhecimentos tão pouco lhes adiantam, que até aquilo que de bom aprenderam, jamais compreendem bem, e, como o diz o Apóstolo: Não entendem nem o que dizem nem os assuntos sobre que fazem afirmações (1 Tm 1:7), isto é, não sabem compor predicado com sujeito nem sujeito com predicado numa sentença catagórica. Esperamos que, no debate vindouro, ele com igual habilidade, ainda nos apresente outros testemunhos, para que também as crianças tenham algo com que se divertir.

Eu havia esperado que Eck conhecesse a limitação de sua cabeça através da carta de Erasmo, o mestre das ciências, e depois, através da insuperável "Defesa do Dr Carlstadt"[2]; mas a paciência de Eck supera a tudo; mesmo que desagrade a todos os demais, já lhe basta agradar ao menos a si mesmo e a seus heróis. Mas que ele me difame como herege e boêmio,[3] afirmando que estou queimando cinzas velhas e etc, isto ele o faz por sua modéstia ou por seu ofício de consagrante, pelo qual tudo que ele consagra está consagrado, não usando outro óleo senão o veneno de sua línguas. Como não tolero semelhante ultraje, saiba, entretanto, prezado leitor, que, no que tange a autoridade exclusiva do pontífice romano, não desprezo o venerável consenso de tantos fiéis na Itália, Alemanha, França, Espanha, Inglaterra e outros países. Somente uma coisa peço ao Senhor: que jamais permita que eu diga ou sinta algo que agrade a Eck, tal como ele é agora; nem que eventualmente, por causa do livre arbítrio, eu publicamente exponha ao ridículo a Cristo, Filho de Deus, nem que por causa da igreja romana eu negue que Cristo vive e reina na Índia e no Oriente; ou que - para propor também eu enigma a este festivo fazedor de enigmas - eu não volte a abrir, junto com Eck, a cloaca constantinopolitana nem celebre os antigos homicídios da África como novos martírios da igreja. Para que não sirva de tropeço seu enigma envenenado, saiba, estimado leitor, que não poucos incluem entre os artigos de João Huss também aquele em que ele afirmou que a supremacia do papa se deve ao imperador, o que também Platina[4] escreve claramente. Eu, em contrapartida, expus que essa mesma supremacia se prova por decretos pontificiais, e não por ordens imperiais. Assim a mesma igreja lateranense canta alegremente em verso que, no que se refere ao alcance de sua autoridade, tanto por decreto do papa, como pelo do imperador, ela é mãe das igrejas, etc. Esses versos são bem conhecidos. O que há, então? Necessariamente para Eck a mesma igreja seria também hussita e estaria reavivando velhas cinzas. Então, já que ela canta or ordem do papa com a concordância dos cardeais, de toda Roma e da igreja universal, não admira que Eck, enfastiado das cinzas velhas e em virtude de seu ofício de consagrante, deseje dedicar à cátedra apostólica um novo holocausto, reduzindo a novas cinzas o papa, os cardeais e a própria igreja lateranense. Graças a Deus, que resta ao menos um Eck de mentalidade católica, aquele singularíssimo promotor da singularidade, visto que todos os outros estão arruinados pelo veneno da Boêmia. Mas por que haveria de causar surpresa que os sofistas dessa espécie não conhecem os fatos históricos, se nem suas próprias sentenças categóricas não entendem? Eu naturalmente nunca terei esse tema, nem pensei em debater sobre ele. Mas Eck já há muito tempo está ulcerado pela mais profunda inveja contra mim. Ele sabe que essa sentenças são odiosas. Não acreditando numa possibilidade de vitória em outras coisas, ao menos neste ponto esperava que pudesse provocar indignação contra mim, uma vez que aprendeu (como se diz) a bater o cachorro ante os olhos do leão, fazendo de um debate em torno da verdade uma tragédia de inveja. Mas eles que acusem quanto quiserem, consagrem suas adulações à cátedra apostólica, consagrem à cadeira e ao banquinho; eles que consagrem também à caixa apostólica (visto que esta faz parte mais intrínseca da indulgência e da supremacia); eles que fiquem manquejando ao redor do altar de seu Baal, clamem mais alto (porque ele é um deus, ele está conversando, ou a caminho, ou numa estalagem, ou certamente dorme), para que ele venha (1 Reis 18:26ss).

Para mim é suficiente que contra Cristo a cátedra apostólica nada quer nem consegue. Nessa questão também não terei medo nem do papa nem do nome do papa, menos ainda destas peninhas e bonecas[5]. Somente uma coisa espero: Que roubo do meu nome cristão não venha em prejuízo da puríssima doutrina de Cristo. Pois aqui não quero que alguém espere "paciência" de mim, não quero que Eck procure modéstia, seja sob o hábito preto, seja sob o branco[6]. Maldita seja a glória daquela clemência ímpia, com a qual Acabe deixou escapar Ben-Hadade (1 Reis 20:34ss), inimigo de Israel. Pois aqui não quero ser fortíssimo apenas no morder (o que dói a Eck), mas também insuperável em devorar, para que possa devorar de uma só bocada (falando com Isaías 9:11) os Silvestres e Civestres, os Cajetanos e Ecks e o resto dos falsos irmãos que combatem a graça cristã. Eles que amedrontem alguém outro com suas adulações e consagrações; Martinho despreza os sacerdotes e consagradores da cátedra apostólica.

Quanto ao resto, veremos no debate e após ele. Mas também o Dr Andreas Carlstadt, que já agora é vencedor sobre o engano de Eck, virá não como soldado desertor[7], mas receberá confiantemente a este leão morto[8] e por ele derrubado. Entrementes permitimos que a consciência miserável se alegre com a esperança simulada do triunfo e com a vã jactância das ameaças. Por isso também eu acrescento às minhas teses uma décima-terceira, avessa à raiva de Eck: Deus fará com que saia algo de bom do debate que Eck mancha com tanto mal, ódio e infâmia. Passe bem meu caro leitor.

Contra erros novos e velhos Martinho Lutero defende as seguintes teses na Universidade de Leipzing
1. Toda pessoa peca diariamente, mas também todos os dias faz penitência, como ensina Cristo: "Fazei penitência!"[9]; e isso com exceção de um suporto novo justo que não necessita de penitência, apesar de o vinhateiro celeste limpar dia a dia as videiras frutíferas.
2. A pessoa também peca ao fazer o bem e o pecador não alcança perdão em si mesmo, mas apenas pela misericórdia de Deus. Também depois do batismo ainda permaneça pecado na criança. Negar isso significa pisar com os pés de uma só vez a Paulo e a Cristo.
3. Quem afirma que a boa e a penitência começa com a aversão aos pecados, antes do amor à justiça, e nisso a pessoa não mais está em pecado, a este consideramos um herege pelagiano[10], mas também provamos que ele comete uma tolice contra o santo Aristóteles.[11]
4. Deus converte o castigo eterno em pena temporal, ou seja, a de carregar a cruz. Os cânones[12] ou os sacerdotes não tem qualquer poder de impor ou retirá-la, mesmo que o presumam, seduzidos por aduladores nocivos.
5. Todo sacerdote deve absolver o penitente de castigo e culpa, caso contrário ele peca. Da mesma forma peca o prelado superior se ele, sem razão muito forte, guarda para si coisas ocultas, mesmo que essa não tenha sido a prática da igreja, isto é, dos aduladores.
6. Pode ser que as almas satisfaçam no purgatório os seus pecados; mas que Deus exija do moribundo mais do que a disposição para a morte, é uma afirmação temerária e muito vã, porque não pode ser provada de modo algum.
7. E mostra desconhecer o que seja fé ou contrição ou livre arbítrio aquele que balbucia ser o livre arbítrio senhor sobre os atos, sejam bons ou maus, ou aquele que sonha que a pessoa não seja justificada exclusivamente pela fé na palavra ou que a fé não anule toda culpa.
8. Contraria a verdade e a razão afirmar não terem amor aqueles que não querem morrer, e que eles por isso tenham que sofrer o horror do purgatório; isso, porém, é assim somente se verdade e razão forem a mesma coisa que a opinião dos pseudoteólogos.
9. Sabemos muito bem que os pseudoteólogos afirmam que as almas no purgatório estão certas de sua salvação e que a graça não cresce nelas; mas nos surpreendemos que esses senhores eruditíssimos não possam fornecer qualquer fundamentação convincente para essa fé, por menor que seja, nem mesmo para um ignorante.
10. Certo é que o mérito de Cristo constitui o tesouro da igreja e que para ele contribuem os méritos dos santos; mas que esse seria o tesouro das indulgências, isso ninguém faz crer, a não ser um adulador sem-vergonha, os extraviados da verdade e práticas e usos inventados da igreja.
11. Dizer que as indulgências sejam algo de bom para o cristão é falar bobagem; na verdade elas são uma perversão da boa obra. Um cristão deve rejeitar as indulgências por causa do abuso, porque o Senhor diz: "Por causa de mim apago as tuas iniqüidades" (Isaías 43:25), e não por causa do dinheiro.
12. Que o papa poderia dispensar todo castigo devido por causa do pecado, tanto para esta vida como para a futura, e que as indulgências também são úteis para os que nada fizeram de mal, isso sonham sossegadamente sofistas[13] bem desinformados e pestilentos aduladores, se bem que não o consigam demonstrar, nem mesmo em vestígio.
13. Demonstram que a igreja romana é superior a todas as outras. Isso o fazem dos decretos mais frios dos pontífices romanos dos últimos 400 anos. Contra esses, porém, estão as histórias comprovadas de 1100 anos, o texto da Escritura Divina e o decreto do Concílio de Nicéia, o mais sagrado de todos.

NOTAS:
[1] Anaxágoras, filósofo grego, conhecido por apresentar deduções aparentemente lógicas para chegar a conclusões obviamente absurdas.
[2] Defensio Andreae Carlstadii adversus eximii D. Ioannis Eckii monomachian, 1518.
[3] Alusão aos adeptos de João Huss, da Boêmia.
[4] Um dos autores do Liber Pontificalis, coleção de biografias dos papas.
[5] Trata-se de um jogo de palavras no original latino: papa - pappos - puppas.
[6] Os agostinianos (como Lutero) usavam o hábito preto, os dominicanos (Eck), branco.
[7] Eck havia chamado a Carlstadt, em carta, de "soldado covarde".
[8] Quando Eck quis inculpar a Tetzel, Carlstadt lhe escreveu que desejava lutar com um leão, não com um asno.
[9] Mt 4:7.
[10] Pelagianismo - doutrina do heresiarca inglês Pelágio (século V), a qual nega o pecado original e a corrupção d a natureza humana.
[11] Isto é, não sabem raciocinar logicamente.
[12] Cânone: cada uma das prescrições da lei eclesiástica que rege a vida do fiel católico.
[13] Designação pejorativa dos escolásticos.


Extraído de Martinho Lutero, Pelo evangelho de Cristo (Porto Alegre, Concórdia Editora, 1984), págs. 52-57.

Um comentário:

Mateus D. Aguiar disse...

Boa tarde. Quando Lutero falou do purgatório na carta, ele fala em sentido positivo, como se ainda cresse na existência dum estado intermediário entre o Céu e o Inferno?