27 abril 2012

A Bíblia como revelação de Deus


Escrito por H. Henry Meeter


Deus possui outro livro além da criação: a Bíblia. No princípio existia somente um livro, uma só revelação de Deus: a natureza. E no mundo vindouro de novo não haverá mais do que um livro: a nova natureza, na qual o homem verá a Deus e a sua vontade revelada. Os redimidos na eternidade, do mesmo que Adão, terão clara revelação da vontade de Deus em seus corações e da natureza que os cerca, e não terão, consequentemente, nenhuma necessidade de uma revelação especial como é a Bíblia.

Há um fato que explica o motivo da necessidade deste segundo livro: a Bíblia, ou revelação especial de Deus; este livro foi necessário por causa do pecado. Quando o homem caiu, tanto ele como a natureza mudou. A mente do homem chegou a entenebrecer-se de tal maneira, que não era capaz de ver as coisas tal como eram; e a natureza se viu alterada como parece deduzir-se da expressão: “produzirá também cardos e abrolhos” que encontramos no livro de Gênesis (Gn 3:18). Contudo, ainda hoje a natureza é um espelho em que se reflete a glória de Deus. Todavia, por causa do pecado pode-se dizer que este espelho esteja deformado. Como é sabido, um espelho torto reflete as coisas de uma forma grotesca e diferente de como realmente são. Como pode o homem agora com sua mente entenebrecida e numa natureza transtornada, descobrir a Deus de modo correto, ou chegar a conhecer a sua verdadeira natureza e propósito de sua existência? Estas se tornam as três perguntas fundamentais que o calvinista terá presente em sua cosmovisão.

Sob tais condições como pode o homem obter uma concepção adequada da realidade? A única solução seria se Deus desse outro livro: a Bíblia. Na Bíblia Deus revela ao homem de uma maneira clara e infalível a verdade sobre estes problemas, iluminando ao mesmo tempo com a luz do Espírito Santo a sua mente entenebrecida para que seja capaz de compreender as verdades bíblicas. Assim, podemos ver a relação que existe entre a Bíblia e o livro da natureza. A Bíblia não está no mesmo nível da natureza como revelação de Deus, senão que é um corretivo das ideias deformadas que possa dar-nos a natureza em seu estado decaído. Apresenta-nos uma revelação sobre Deus e o universo que a natureza não pode proporcionar de maneira adequada. Como disse Calvino, devemos olhar para a natureza através das lentes da Bíblia. Assim, pois, ainda que duas sejam as revelações que Deus deu as suas criaturas, a Bíblia constitui a máxima autoridade para uma cosmovisão. O cristão para interpretar corretamente a natureza e o mundo circundante necessita do enfoque bíblico.

Todavia, a Bíblia é mais do que um mero intérprete da natureza, já que ela contém uma revelação especial para a salvação do pecador. Esta informação tão importante não pode vir da natureza pela simples razão de que a natureza foi criada antes que se abrisse um caminho de salvação aos pecadores. Assim, como poderia a natureza informar-nos sobre isto? Contudo, ainda que a salvação do homem é na realidade o tema central da Bíblia, esta revelação está estreitamente vinculada a visão geral do universo e da vida humana.

Interpretaríamos mal o propósito da Bíblia se crêssemos que se trata de um mero livro de texto sobre diferentes conhecimentos. Não se trata disto. O estudante nos diferentes campos de investigação – natureza, história, psicologia, etc. – acumula evidência. Quando procede a interpretação ou de organizar esta evidência e a relacionar as verdades de alguma ciência em particular numa estrutura geral de conhecimentos, necessitará de interpretação unificadora das Escrituras. Não podemos ter uma concepção correta de Deus, do universo, do homem, ou da história sem a Bíblia.

Consequentemente, este livro além de mostrar-nos o caminho da salvação nos proporciona aqueles princípios que condicionarão toda a nossa vida, incluindo os nossos pensamentos e a nossa conduta moral. Não somente a ciência e a arte, senão que também a nossa vida familiar, os nossos negócios, os nossos problemas políticos e sociais devem estar processados e estruturados à luz e direção das verdades da Escritura.

Isto é assim, inclusive na filosofia. Pode-se supor que pelo fato da filosofia ser a ciência dos princípios, então que a filosofia cristã em última instância terá que fundamentar-se na razão e, tratará de todos os problemas da filosofia sobre uma base puramente racionalista, desprezando a Bíblia como autoridade final. Mas ainda aqui o calvinista não fundamenta a sua aceitação das verdades bíblicas em sua filosofia, pelo contrário, inicia com as verdades básicas da Bíblia para fundamentar a filosofia. A sua filosofia se fundamenta especificamente sobre a revelação. Da mesma maneira que todos os sistemas filosóficos partem de pressuposições básicas não provadas – hipóteses – assim, o cristão parte das verdades da revelação como pressupostos básicos. O proceder do calvinista não consiste em fundamentar a Bíblia na filosofia, senão que estrutura a sua filosofia cristã sobre a Bíblia.

Os princípios de fé e conduta que a Bíblia contém, do mesmo modo que as verdades do caminho da salvação surgem dentro de um contexto histórico vinculado aos acontecimentos dos homens e das nações. Consequentemente não se pode esperar que tudo o que a Bíblia ensina tenha o mesmo valor, e possa ser considerado como norma da vida para nossa conduta. Ela menciona alguns atos que na realidade são totalmente contrários a uma norma da vida padrão como, por exemplo, quando Absalão traiu de forma vergonhosa a seu pai Davi. Outras porções da Escritura contêm normas que não são para todas as épocas, senão que uma vigência específica num período ou ocasião determinada. Assim, Calvino nota que várias das leis civis de Moisés não eram para o nosso tempo, senão que encerram uma significação meramente transitória. Contudo, a Bíblia nos apresenta diretrizes básicas, ou princípios eternos à luz dos quais julga os atos históricos que contém, e nos insta a que também moldemos as nossas vidas. Estes princípios eternos se encontram não somente no Novo como também no Antigo Testamento.

Extraído de H. Henry Meeter, La Iglesia y el Estado (Grand Rapids, TELL, 1963), pp. 27-30.

13 abril 2012

Breve histórico da Bíblia de Genebra (1560)


Escrito por Paulo Teixeira e Rudi Zimmer

A Bíblia de Genebra (Novo Testamento – 1557; Bíblia completa – 1560)

Assim como o Novo Testamento de Tyndale, a Bíblia de Genebra também foi uma edição desenvolvida no exílio durante um período de forte perseguição à fé reformada na Inglaterra, verificado especialmente sob o reinado da Rainha Maria, a Sanguinária, que reinou de 1553 a 1558.

Entre os que se viram forçados a deixar a Inglaterra naquela época estava William Whittingham (c. 1524-1579), cunhado de João Calvino. Whittingham e mais alguns teólogos refugiaram-se em Genebra, na Suíça, e ali produziram uma tradução de toda a Bíblia para o inglês, baseada no latim, mas consultando sempre os textos em hebraico e grego. O Novo Testamento foi lançado em 1557 e a Bíblia toda em 1560. Em 1599, a Bíblia de Genebra já estava disponível, ao menos em parte, também em francês.

A Bíblia de Genebra em inglês tornou-se muito popular. Cerca de duzentas edições foram publicadas entre 1560 e 1630. Logo na primeira edição, os livros apócrifos ou deuterocanônicos foram separados dos restantes livros do Antigo Testamento e receberam prefácios especiais. Apenas décadas depois a Bíblia de Genebra começou a ser impressa sem os apócrifos.

A Bíblia de Genebra foi a tradução inglesa mais usada por cerca de 100 anos, desde seu lançamento em 1560 até meados do século seguinte. Foi usada (e citada) por William Shakespeare, John Bunyan, John Milton, e trechos selecionados dela compuseram a famosa Bíblia de Bolso (1643) carregada pelos soldados do exército de Oliver Cromwell. A Bíblia de Genebra foi também a Bíblia trazida para os Estados Unidos pelos peregrinos.

Na história das versões inglesas, a Bíblia de Genebra é importante, pelo menos, por três razões:
1. A Bíblia de Genebra foi a primeira Bíblia inglesa a adotar a divisão do texto em versículos. [A divisão do Antigo Testamento em versículos surgiu por volta de 1440, por obra do rabino Isaque Nathan, que planejava elaborar uma concordância da Bíblia Hebraica. A divisão do Novo Testamento coube a Robert Stephanus (ou Estienne), que publicou uma edição bilíngue (grega e latina) do Novo Testamento em 1551.]
2. Foi a primeira Bíblia a usar o tipo de letra romano, muito mais fácil de ler do que a letra gótica;
3. Foi a primeira Bíblia a usar letra itálica para aquelas palavras que os tradutores precisaram usar para tornar claras as frases em inglês, mas que não estavam nas línguas originais.

Além disso, era uma Bíblia com um formato menor, muito mais leve que as outras e com preço muito acessível.

O prefácio e as notas interpretativas tiveram uma influência evangélica muito forte, principalmente da parte dos escritos de João Calvino. Foi a primeira Bíblia que não atribuiu a Epístola aos Hebreus a Paulo, o que testifica a alta qualidade acadêmica de seus editores.

A Bíblia de Genebra de 1560 inspirou, em nossos dias, a edição da Bíblia de Estudo de Genebra, cujas notas interpretativas, em número muito superior à da edição de 1560, seguem a orientação calvinista.

Extraído do Manual do Seminário de Ciências Bíblicas (Baureri, Sociedade Bíblica do Brasil, 2008).

06 abril 2012

A cultura numa perspectiva cristã reformada

Escrito por Leland Ryken


A cultura consiste nas instituições, tecnologias, arte, costumes e pautas sociais que se desenvolvem numa sociedade. A cultura é o contexto dentro do qual toda pessoa vive inevitavelmente a sua vida cotidiana.

O problema de “Cristo e cultura” somente se entende como a relação entre os cristãos e a cultura em que vivem. Mas esta ênfase obscurece uma importante questão: inclusive quando os cristãos rejeitam a cultura que os cerca, esta continua sendo o meio de sua existência, enquanto criam uma subcultura cristã. O Cristianismo acultural não existe.


AS POSTURAS HISTÓRICAS

O clássico livro de H. Richard Niebuhr com o título Christ and Culture[1] relata as cinco atitudes que os cristãos adotam historicamente frente à questão da cultura. Tanto na história como na vida individual do cristão, não existe uma resposta única frente à cultura.

A postura mais radical sustenta que Cristo está contra a cultura. Aqui se entende a cultura como um elemento hostil ao Cristianismo, tanto em teoria como na prática. Independentemente da sociedade em que se encontrem imersos os cristãos, são chamados a opor-se aos costumes e traços desta. A entrega a Cristo requer uma decisão entre ambas as coisas.

Uma segunda postura é a atitude de ver a Cristo na cultura, que permite a harmonia fundamental entre Cristo e a cultura. O próprio Cristo é considerado como um herói supremo da cultura. A sua vida e ensino é o maior benefício humano da história. Portanto, os seguidores de Cristo podem confiar que a cultural é essencialmente congruente com os seus próprios ideais, e não tem porque renunciar àquela em que se estão imersos.

Uma terceira possibilidade é a de que Cristo está por cima da cultura. Esta postura de síntese afirma tanto a Cristo como a cultura, mas mantendo a distinção entre eles. Cristo é algo mais que um simples herói cultural. Ele é superior e maior que a cultural e digno de uma fidelidade maior. Ma a cultura também exige a participação cristã. Como cidadãos de dois reinos, os cristãos podem viver com uma consciência limpa em ambos os mundos, do mesmo modo que fez Jesus, o Deus Homem.

Em quarto lugar, os teólogos como o apóstolo Paulo, ou Lutero enfatizaram a Cristo e a cultura de mundo paradoxo. Esta postura se baseia na dualidade que aceita a autoridade tanto de Cristo como da cultura. Consequentemente, os cristãos vivem experimentando uma desagradável tensão, tentando satisfazer as exigências de ambas autoridades, e desejando uma salvação eventual e meta-histórica que resolva essa situação.

Por último, se pode entender a Cristo como o transformador da cultura. A tradição de Agostinho e Calvino afirma que, considerando a condição da queda da cultura humana, o compromisso com Cristo permite à pessoa converter a cultura num objetivo santo. Devido ao fato de que Cristo converte as pessoas e as instituições sociais, os cristãos podem seguir com a obra de Deus mediante as suas atividades culturais ordinárias.


FUNDAMENTOS DOUTRINÁRIOS

O respaldo cristão da cultura começa com a doutrina da criação. Isto obriga aos cristãos a reivindicar o mundo para Deus, e fomenta a sua ira ao ver o grau em que o mundo de Deus foi dominado por Satanás e o mal. Os cristãos têm um chamado criacional e outro missionário.

Uma segunda doutrina chave é a Queda e o mal consequente que incide na natureza humana e as instituições sociais. Para um cristão a cultura é sempre uma prova, com tendências para a depravação (se bem que com mais em certas épocas e lugares que em outros). Como tudo o mais dentro de um mundo caído a cultura possui uma tendência permanente de cruzar a linha entre o bem e o mal.

Todavia, a Bíblia não localiza o mal em algumas formas externas per si. O mundo e a cultura humana são capazes de ser usados bem ou mal. O abuso que se faz de algo, não o invalida. O resultado é a necessidade da responsabilidade moral na busca da cultura.

O aforismo de Cristo que ordenou aos seus seguidores a “dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22:21), resume o tema bíblico que diz que as instituições da sociedade formam parte do design que Deus fez da vida humana e, como tal são dignas de sua sinceridade legítima. Mas no centro do Cristianismo achamos a convicção de que o “que é de Deus” merece um maior respeito que o que é de César. A cultura é sempre um bem secundário.

A doutrina da vocação (crença de que Deus chama as pessoas para desempenhar trabalhos específicos e lhes concede a capacidade necessária para realizá-las) contribui igualmente para a afirmação cristã da cultura. A Bíblia aceita como fato (por exemplo: Gn 4:20-22) que Deus chama a certas pessoas a serem agricultores, outros para serem músicos, outras a serem arquitetos, chamamentos que todos eles tem conexões culturais.

A convicção cristã de que para uma pessoa redimida toda a vida pertence a Deus permanece resumida na frase do NT que diz: “assim, pois, quer comais ou bebais, ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus” (1 Co 10:31). Para um cristão, inclusive o projeto cultural mais corrente pode formar parte de uma vida centrada em Deus.


NOTA:
[1] H. Richard Niebuhr, Christ and Culture (New York, 1951).

Extraído de David J. Atkinson & David H. Field, orgs., Diccionario de ética Cristiana y teologia pastoral (Terrassa, CLIE, 2004), pp. 403-405.

Traduzido por Rev. Ewerton B. Tokashiki
6 de Abril de 2012.