Deus nunca poderá ser visto pelos olhos físicos, mesmo estando os bem-aventurados em corpos glorificados. Quanto a isto Turretin argumenta que
as Escrituras enumeram a invisibilidade entre as propriedades essenciais e imutáveis de Deus e negam ao homem não só o ato, mas também o poder de vê-lo. As passagens são: Cl 1:15; 1 Tm 1:17; 6:16; Hb 11:27; Êx 33:20. Deus é um Espírito incórporeo e simples, que consequentemente não pode enquadrar-se à sensação do corpo, porque o poder não vai além de seu próprio objeto. Terceiro, a visão ótica na outra vida sucederá à fé (2 Co 5:7). Ora, esta é mental e intelectual, não sensível. Finalmente, nem a totalidade da essência pode assim ser vista (porque não há proporção entre a faculdade e o objeto, entre o finito e o infinito), nem uma parte dela (porque assim ela viria a ser divisível e mortal).[3]
A expectativa de uma visão de Deus é alimentada pelos crentes no decorrer de ambas as administrações da aliança. Na antiga aliança embora a revelação da consumação estivesse ainda um tanto que obscura, pode-se ler o registro do anseio que membros da aliança nutriam quanto à esperança futura de estarem ante a face de Deus (Sl 17:15; Mt 5:8; 1 Co 13:12; 1 Jo 3:2; Ap 22:3-4).
Quando olhamos para a história da igreja, percebe-se que Agostinho, no período da Patrística, foi quem melhor desenvolveu o conceito da visão beatífica. Alister McGrath nota que Agostinho ensinou que
a visão de Deus possui uma capacidade única de satisfazer o desejo humano, ultrapassando absolutamente a capacidade de todo ser ou toda coisa criada. Tal visão é o summum bonum, o sumo bem, “a luz pela qual a verdade é recebida e a fonte da qual as bênçãos são absorvidas”.[4]
Agostinho pressupondo a transformação do corpo para uma adaptada realidade espiritual, fala do modo como os glorificados verão a Deus. Ele declara que
é possível e muito crível que na outra vida veremos de tal maneira os corpos mundanos do novo céu e da nova terra, que com clareza assombrosa veremos a Deus, que está presente em todas as partes e governa todas as coisas corporais; vê-lo-emos, por intermédio de nossos corpos transformados, e em todos os corpos a que volvermos os olhos. Vê-lo-emos não como agora vemos as coisas invisíveis de Deus, pelas coisas criadas, em espelho, em enigma e em parte, onde vale mais a fé com que cremos que a espécie das coisas corporais que vemos por meio dos olhos corpóreos. [...] Logo, veremos Deus por meio de olhos que em poder se assemelharão ao espírito, o que lhes permitirá ver também a natureza incorpórea, coisa difícil ou impossível de justificar por testemunhos das divinas Escrituras, ou, o que é mais fácil de entender, Deus ser-nos-á tão conhecido e tão visível, que com o espírito o veremos em nós, nos outros, em si mesmo, no novo céu e na nova terra, e em todo ser então subsistente. Vê-lo-emos também, pelo corpo, em todo corpo, aonde quer que os olhos espirituais do corpo espiritual se dirijam. Nossos pensamentos serão patentes a todos e mutuamente.[5]
Agostinho crê que após a transformação do corpo e de toda a criação, a revelação de Deus será imediata, de modo que o conhecimento no estado de glória ocorrerá além do que é físico.[6] Entretanto, ele declara confusamente que “por meio de olhos que em poder se assemelharão ao espírito” que é sua especulação, pois é “coisa difícil ou impossível de justificar por testemunhos das divinas Escrituras.”
A tradição medieval romana ensina que Deus pode ser visto em sua essência. J. Van Engen esclarece que
os teólogos medievais, especialmente Tomás de Aquino e outros, fortemente influenciados pela filosofia aristotélica, definiam a visão de Deus como uma intuição ou percepção direta da Sua própria existência (essentia) como um ato eterno do intelecto e como algo totalmente sobrenatural no seu caráter.[7]
Diferentemente dos escolásticos romanos, os reformados assumiram que o conhecimento de Deus permaneceria limitado. Jacobus Altingius declara que os glorificados verão “a mais clara visão de Deus, que é a intuitiva percepção de Deus; e mental [visão] se a essência espiritual está na visão, e a ocular [visão] no Deus encarnado tal como os anjos têm.”[8] Embora haja desacordo entre os antigos reformados, luteranos e calvinistas, quanto ao modo que ocorrerá a visão beatífica, Antonius Walaeus afirma que “concordamos que a glória de Deus será mais plenamente vista na natureza humana de Cristo – todavia, admitimos que esta verdadeira visão, que é a suprema base da vida eterna, não será do que é corporal, mas com os olhos da alma”.[9] Por vezes, este conhecimento que será adquirido pelos glorificados é chamado de theologia beatorum. Richard A. Muller define a teologia beatífica, na perspectiva dos protestantes escolásticos, como sendo “a teologia que os benditos eleitos são capazes de conhecer no céu, em harmonia com o liber gloriae, o ‘o livro da glória’, e o lumen gloriae, a ‘luz da glória’.”[10] Este conhecimento não será uma visio Dei per essentiam, ou seja, de Deus em si, mas dado por ele através da criação redimida, do que será revelado em Cristo, e do que pode ser conhecido por intuição. O conhecimento dos glorificados será sempre uma theologia ectypa por ser finita e uma reflexão da divina theologia archetypa, que é o perfeito conhecimento de Deus de si mesmo.[11]
Klaas Schilder está correto em refutar a ideia de que poderemos ver a essência de Deus. Ele escreve que “estritamente falando não podemos conceber uma visio per essentiam de Deus. De fato, é uma tolice esperar que o homem possa um dia ver Deus em sua essência.”[12] Embora a revelação na nova terra seja àqueles que estarão num estado glorificado, ausentes de qualquer limitação imposta pelo pecado, ainda serão finitos, isto é, haverá uma incapacidade física, e Deus sempre será infinito. O corpo glorificado estará adaptado para receber o conhecimento que teremos de Deus, mas não será por meio de olhos físicos que veremos o Pai.
Como então conheceremos a Deus face a face, se não seremos capazes de ver a sua essência divina? Resumindo a perspectiva reformada, Herman Bavink declara que
quando olhamos o espelho da revelação de Deus, vemos apenas sua imagem, mas então o veremos face à face e conheceremos como também somos conhecidos. Contemplação (visio), compreensão (comprehensio) e o desfrutar de Deus (fruitio Dei) compõem a essência de nossa bem-aventurança futura. Os redimidos veem Deus – de fato – não com olhos físicos, mas de uma forma que sobrepuja toda a revelação nesta dispensação feita por meio da natureza ou da Escritura. Assim, todos o conhecerão, cada um na medida de sua capacidade mental, com um conhecimento que tem sua imagem e semelhança no conhecimento de Deus – de forma direta, imediata, pura e sem ambiguidade. Então, eles receberão e possuirão tudo o que aguardam aqui, em esperança. Assim, contemplando e possuindo Deus, eles desfrutam dele e são abençoados em sua comunhão: abençoados em corpo e alma, intelecto e vontade.[13]
Assim, embora teremos um conhecimento sobrenatural, e nunca antes experimentado, cremos que não veremos a Deus em essência com os nossos olhos físicos. Por isso, A.A. Hoekema afirma que “existência na nova terra será marcada por um perfeito conhecimento de Deus, perfeito gozo de Deus e perfeito serviço de Deus.”[14] E, teremos um conhecimento que será imediato, intuitivo, e uma percepção da luz da glória da sua presença.
Jesus Cristo continuará como mediador revelacional no futuro. Ele é Deus, e uma manifestação permanente de Deus ao seu povo. Durante a sua humilhação o nosso Redentor disse a Felipe que “há tanto tempo estou convosco, e não me tens conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai” (Jo 14:9). Nele sempre veremos o Pai. Recentemente, dentre os reformados, quem mais escreveu acerca deste assunto foi Jonathan Edwards. Ele declarou que a visio Dei não será alguma coisa vista com os olhos físico, mas, que será uma visão intelectual pela qual Deus será visto. Noutro lugar ele completa que
ver a Deus no corpo glorificado de Cristo é a maneira mais perfeita que existe de se ver a Deus com os olhos do corpo; porque se verá um corpo real, em que uma das pessoas da Trindade assumiu como seu corpo e nele habita para sempre como seu próprio corpo, no que a majestade divina e excelência aparecem tanto como é possível que se manifeste em forma visível ou figura.[16]
Como atualmente no céu esta revelação continua sendo pela sua mediação, do mesmo modo, na nova terra continuará sendo Cristo o revelador da Trindade. Prudentemente pode-se concordar com G.C. Berkouwer que “a visão de Deus não é algo que nos está explicado, mas algo que é-nos prometido neste tempo que vemos somente através de um espelho de enigmas (1 Co 13:12).”[17] Assim, podemos inferir, sem todavia, avançar muito além dos limites da Escritura.
NOTAS:
[1] R.J. Bauckman, “Visão de Deus” in: Sinclair B. Ferguson, D.F. Wright & J.I. Packer, org., Novo Dicionário de Teologia (São Paulo, Editora Hagnos, 2009), p. 1192.
[2] François Turretin, Compêndio de Teologia Apologética (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2011), vol. 4, p. 729.
[3] François Turretin, Compêndio de Teologia Apologética, vol. 4, p. 729.
[4] Alister McGrath, Teologia – os fundamentos (São Paulo, Edições Loyola, 2009), pp. 223-224.
[5] Santo Agostinho, A Cidade de Deus (Bragança Paulista, Editora Universitária São Francisco, 7ª.ed., 2006), pp. 584-585.
[6] Os luteranos entendem a visão beatífica de Deus como não sucedendo meramente por contemplação mental (visio corporalis), mas especialmente pelos olhos físicos glorificados. John Theodore Mueller, Dogmática Cristã (Porto Alegre, Concórdia Editora, 4ª ed. rev., 2004), p. 593.
[7] J. Van Engen, “Visão Beatífica” in: Walter A. Elwell, ed., Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã (São Paulo, Edições Vida Nova, reimpressão em 1 volume, 2009), p. 628.
[8] Jacobus Altingius, Methodus Theologiae Didactiae (Opera, Amsterdam, 1687) citado em Heinrich Heppe, Reformed Dogmatics (London, Wakeman Great Reprints, s./.), p. 707.
[9] Antonius Walaeus, Loci communes s. Theologiae (Leiden, 1640) citado em Heinrich Heppe, Reformed Dogmatics, p. 707.
[10] Richard A. Muller, Dictionary of Latin and Greek Theological Terms (Grand Rapids, Baker Academics, 2006), p. 300.
[11] Richard A. Muller, Dictionary of Latin and Greek Theological Terms, pp. 299-300.
[12] Klaas Schilder, Heaven, What Is It? (Grand Rapids, Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1950), p. 64.
[13] Herman Bavink, Dogmática Reformada (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2011), vol. 4, pp. 721-722.
[14] A.A. Hoekema, A Bíblia e o futuro (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2010), p. 382
[15] Jonahtan Edwards, The works of Jonathan Edwards (Edinburgh, The Banner of Truth, 1997), vol. 2, p. 905-907.
[16] Jonanthan Edwards, The Sermons of Jonathan Edwards: A Reader, ed., Wilson H. Kimmach, Kenneth P. Minkema e Douglas A. Sweeney (New Heaven, Yale University Press, 1999), pp. 74-75 citado por Randon , El Cielo(Tyndale House publishers, 2004), p. 125.
[17] G.C. Berkouwer, The Return of Christ – Studies in Dogmatics (Grand Rapids, Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1972), p. 382.
Um comentário:
Em resumo:
1 a alma tem anseios limitados pelo corpo, mas identificáveis, em parte;
2-llivre do corpo , volta a alma ao criador, Deus
3- os anseios, poucos ou muitos serão inteiramente atendidos e completos em Deus ,
Como Deus eh eterno, esse infinitésimo segundo de felicidade total da alma será eterno também , uma vez que a eternidade prescinde da passagem do tempo.
Este raciocínio livrou-me do medo de morrer e tornou-me feliz!
Lourenco jc Paolini
advogadopaolini@gmail.com
São Paulo. Brasil
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