19 outubro 2019

A História do Saltério de Genebra - Parte 2

Dr. Pierre Pidoux


Guillaume Franc é o único precentor de Genebra mencionado como ensinando as crianças “a cantar os salmos de Davi na igreja” naquela época. Como compositor de muitas melodias para a Coleção de Lausanne de 1565, parece provável que deveríamos atribuir a ele as novas melodias de La Forme des Prières. O fato de terem sido mantidas tantas melodias do repertório de 1543 atesta os talentos de seu compositor. No final do outono de 1542, Clement Marot, que foi perseguido na França, fugiu para Genebra, onde ficou por um ano. A prova de que Marot, Franc e Calvino se conheceram e cooperaram no projeto de um Saltério pode ser concluída pelos seguintes fatos:

Fizeram-se melhorias no texto dos primeiros trinta salmos, algumas revisões importantes foram feitas nas melodias recém-publicadas, Guillaume Franc recebeu um contrato oficial com um aumento considerável nos salários e, finalmente, a publicação de um novo Saltério em 1543, contendo CINQUANTE PSAUMES (Cinquenta Salmos), em que 20 deles eram novos. Todos os 50 até então eram de Marot e cada um tinha a sua própria melodia.

A carta de Calvino anexa, escrita em 1542, era duas vezes maior do que o Saltério. Ele expõe extensivamente acerca do valor e da função dos cânticos no culto. Outra carta datada em 10 de Junho de 1543, em Genebra, por algum tempo foi publicada nas reedições do Saltério de Genebra.

Desta coleção somente a edição do texto foi preservada. Ela foi impressa em Genebra por Jean Gerard. A edição musical [ainda] não foi encontrada. O conteúdo, no entanto, é conhecido pelas reimpressões dos irmãos Beringen em Lyon, em 1548 e 1549. Desde 1543, o canto pelos fiéis reunidos (e não somente pelas crianças) era a regra. Num programa de canto todos os 50 Salmos foram divididos em dezessete semanas.

Durante os cultos de Domingo e os cultos de oração na quarta-feira, todos os Salmos em sua totalidade eram cantados por vez, cada salmo em sua própria melodia. O ministro teria que manter esse cronograma. Esse foi um motivo a mais para que as editoras reproduzissem os livros de salmos a fim de prontamente vendê-los.

Das novas melodias de 1543 que provavelmente foram compostas por Guillaume Franc, encontramos dezesseis salmos na edição de 1562, na sua forma original ou ligeiramente melhorados. Dentre eles estavam os salmos 18, 23, 32, 33, 37, 43, 50, 72, 79, 86, 91, 107, 118, 128, 138, a melodia dos Dez Mandamentos e o Cântico de Simeão. A probabilidade ainda não é provada; portanto, devemos deixar em aberto o problema de atribuição dessas melodias a Franc.

O que aconteceu com os salmos de Calvino quando eles apareceram em La Forme des Prières? Todos foram substituídos por versos escritos por Marot. Isso só poderia ser feito por incentivo de Calvino e, certamente, com a permissão do reformador. Certas semelhanças na versificação só podem ser coincidentes.

Para provar que Marot tinha em mente a metrificação de Calvino, a primeira linha do Salmo 91, cuja forma é a mesma nos dois rimados, é frequentemente apresentada. Desde a publicação do monumental livro Clement Marot et le Psautier Huguenot (Paris, 1878-1879) por Orentin Douen, tornou-se habitual retratar Marot como o “homem gracioso do mundo” como vítima de Calvino, o “recluso sombrio”. Nada disso aparece nos documentos contemporâneos. O fato de Calvino permanecer entre Marot e o Conselho, do qual ele pediu “que lhe produzisse algo de bom”, em troca de que Marot “se esforçasse com todo a sua competência para completar os salmos de Davi”, mostra implicitamente os elogios aos talentos de Marot e o seu consentimento. O Conselho respondeu: “que ele tivesse paciência”. Isso mostra apenas que a cidade estava em apuros financeiros, e não que houvesse alguma animosidade em relação ao poeta. É significativo que Calvino tenha decidido confiar todos os 150 salmos a Marot.

Marot deixa Genebra no final de 1545. E também Guillaume Franc em seguida, porque ele não poderia viver com seu escasso salário. Nesse momento, encontramos pela primeira vez o nome LOYS BOURGEOY, DE PARIS, CHANTRES (Louis Bourgeois, de Paris, precentor). O cargo ocupado anteriormente por Franc é assumido pelos recém-chegados Guillaume Fabri e Loys Bourgeois para que “ensinem as crianças como cantar os salmos na igreja”. Vendo que o trabalho de Fabri não era satisfatório, Bourgeois “que era mais adequado que ele” tornou-se responsável por esta tarefa a partir de 3 de Agosto.

Ele cumpriu o seu dever com habilidade e regularidade a partir dessa data, o que pode ser concluído a partir da ausência de queixas nos registros do Conselho. Durante seus anos em Genebra, Bourgeois compôs estruturas dos salmos para amadores. Eles foram publicados em Lyon pelos irmãos Beringen (1547) que estavam equipados para fazer essa impressão, e não como se argumentou, para escapar do anátema de Calvino! Bourgeois projetou para os seus alunos uma cartilha musical intitulada Le droict chemin de musique (O caminho certo para a música, de 1550).

Com a chegada de Theodore de Beza, em outubro de 1548, inicia uma nova fase na conclusão do Saltério. Embora não saibamos a data exata, a oração fúnebre de Caspar Laurent deixa claro que a data acima está correta. Por acaso, diz-se, Calvino descobriu uma rima do Salmo 16 na mesa de Beza - o primeiro salmo que Marot que ainda não tinha terminado o arranjo. O próprio Beza confirma a tarefa que Calvino o designou: “Por insistência do grande Mestre João Calvino, concluí a rima do salmo em versos franceses iniciada por Clement Marot, príncipe indiscutível dos poetas franceses de sua época”. As primeiras informações sobre datas que podemos encontrar no prefácio de Abraham Sacrifiant (O sacrifício de Abraão), fixado em 1 de Outubro de 1550, em que Beza anuncia que após seu drama “espera continuar com a rima dos salmos que no momento estou trabalhando”.

Desconhecemos o quão rápido ou lento Beza trabalhou. O que sabemos é que Calvino ficou impaciente e insistiu que os salmos lhe fossem enviados, de modo que pudessem ser tocados. No que diz respeito a Bourgeois, ele pediu ao Conselho “um pouco de trigo para melhorar o canto do salmo”. Podemos ler entre as linhas da vaga reação do secretário do concílio que o pedido dizia respeito à criação de novas melodias para cada salmo. Pois havia 34 salmos, com um número igual de novos padrões que Beza acrescenta aos 49 de Marot. A nova coleção é publicada por Jean Crispin no Outono de 1551, com o título PSEAUMES OCTANTE TROIS (Oitenta e Três Salmos).

A expansão do repertório dividida em 25 semanas (em vez de 17) torna inúteis as coleções anteriores. Com o (silencioso) acordo do Conselho e a bênção dos ministros (?), Bourgeois aproveita a oportunidade para corrigir erros de impressão e alterar certas frases melódicas para facilitar o canto e impedir que a congregação os entoasse erroneamente. Ele traz mais unidade às notas musicais mantendo apenas dois valores de notas com seus respectivos descansos e ainda fez pequenas melhorias no layout. Por fim, ele não conseguiu resistir à tentação de substituir algumas das melodias nas quais os salmos de Marot eram definidas por novas de seu próprio projeto. Assim que os 83 saíram da editora comunicou as alterações ao Conselho.

Isso ficou mais fácil pois Bougeois faz um relato detalhado das mudanças da melodia em seu “Aviso” (Advertência), que assinou e adicionou ao final do Saltério sem consultar as autoridades civis. Isso explica a sentença de 24 horas de prisão que lhe foi dada pelo Conselho e a proposta de Calvino de uma mera repreensão pelo Conselho, quando Calvino intercedeu à favor de Bourgeois. Que o trabalho de Bourgeois - tanto as revisões, melhorias e as novas composições - foi realizado com a permissão de Calvino e seus colegas, pode ser concluído pela ausência de advertências no registro da igreja, mas principalmente pela inclusão das mudanças de Bourgeois nas edições seguintes. Nós os encontramos novamente inalterados no Saltério de 1562.

O Conselho ficou irritado com as mudanças feitas nas melodias que acompanhavam os salmos de Marot. No entanto, não criticaram as novas melodias que ele escreveu para os salmos de Beza. Não foi surpreendente, nem ofensivo ao Conselho, que seu precentor em sua composição se inspirasse por “alguns hinos que anteriormente usamos mal, isso não deve perturbá-los, pois o som dos sinos e outras coisas que antes eram usadas incorretamente, mas que foram corrigidas”. De fato, as melodias do repertório romano podem ser encontradas nos salmos 17, 20, 31, 39, 121, 124 e 129. Um maior conhecimento do canto gregoriano, talvez, nos daria a oportunidade de aumentar esse número.

Dez anos se passariam entre os 83 salmos e a conclusão do Saltério. Antes que qualquer pensamento seja dado à conclusão dos demais 67 salmos, os 83 deveriam se tornar familiares da igreja. A rima dos salmos prosseguiria num ritmo mais lento. Nas reedições (em especial a de 1554) a editora acrescentou "seis salmos recentemente traduzidos" e um sétimo foi adicionado em 1557. Esses textos impressos após os 83 salmos não tinham melodia própria, nem música com notas.

Beza recorre, pela primeira vez, a uma forma estrófica usada anteriormente e remete o leitor à melodia correspondente. Consequentemente, dois salmos, às vezes mais, eram cantados com a mesma melodia. Um exame da coleção de 1562 mostra que toda uma série de salmos semelhantes eram executados da mesma maneira, e assim, eram cantados por uma melodia de outro salmo: por exemplo, os salmos 62 a 71, 76-78, 82, 95, 98, 100 108, 109, 111, 117, 139, 140, 142 e 144; contando ao todo uns 25 salmos.

Beza não fantasiava construir novas formas de estrofes, nem temia sobrecarregar a escola e os fiéis com muitas melodias novas? A explicação dessa mudança fundamental poderia ser o resultado da partida dos Bourgeois. Em 21 de Março de 1551, o salário de Bourgeois, juntamente com o da maioria das autoridades cívicas, foi reduzido pela metade devido as condições financeiras de Genebra. Ao contrário do que foi escrito, esta medida, que afetou o precentor, não teve nenhuma conexão com o “Anúncio” de 15 de Dezembro daquele ano.

Bourgeois deixou Genebra em 1552, por falta de dinheiro, para nunca mais voltar. Beza teria que continuar sem a cooperação de um compositor que tivesse o entendimento real para fornecer a cada salmo uma melodia adequada. Embora o trabalho de rimas tivesse estagnado, o mesmo não pode ser dito das impressoras de Genebra. As editoras competiam habilmente por clientes e licenças. Em 1539, o Conselho concedeu ao precentor Pierre Callette uma licença por três anos para imprimir música da maneira que ele havia inventado. Esta foi a licença que Callette entregou no dia seguinte a Jean Bonnefoy, Michel Blanchier e Etienne Coret e todos os impressores de Genebra.

Pierre Davantes conhecido pelo apelido de Antesignamus, em 1560, obteve uma licença de três anos para um “novo tipo de impressão musical”. Em 19 de Junho, Antoine Reboul e Emery Bernhardt tiveram a autorização para imprimir os salmos “com um novo tipo de impressão musical”. No dia 24 de junho “Jean Rivery solicitou permissão para imprimir os salmos com os nomes das notas e escalas no início”.

Em 24 de março do mesmo ano foi negado um pedido de Jean Rivery com data de 12 de Novembro, no qual ele solicitou imprimir os salmos “com anotações no texto não rimado e com uma oração no final de cada salmo”. O motive foi apenas porque “o sr. Beza terá o Saltério Francês completo impresso”.

A partir desse momento os eventos ocorrem em rápida sucessão. Em 30 de junho de 1561, os diáconos que eram “encarregados do cuidado dos estrangeiros necessitados, solicitam ao conselho que lhes deem a licença para imprimir os salmos pelos quais Beza lhes concedeu os direitos autorais. Por recomendação de Calvino, eles recebem a licença em 8 de Julho, por um período de dez anos, e assim, Calvino completou o Saltério dois anos antes de sua morte. O empreendimento que ele havia iniciado demorou 22 anos para ser concluído.


Pierre Pidoux, “History of the Genevan Psalter – Part 2” in: Reformed Music Journal Volume 1, No. 1 January, 1989. Acessado em https://spindleworks.com/library/Pidoux/History_Genevan_Psalter.html em 12/10/2019.

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