30 maio 2024

As duas novidades na doutrina da eucaristia segundo a Igreja Católica Romana

           A novidade da transubstanciação

A Igreja Católica Romana crê na doutrina eucarística da transubstanciação. Isso significa que a hóstia após o ato da consagração se transforma verdadeira, real e substancialmente no corpo e sangue de Cristo. Os papistas definiram a sua doutrina no Concílio de Trento (1545-1563). Esse concílio declarou que

disse Jesus Cristo nosso Redentor, que era verdadeiramente seu corpo que o oferecia sob a espécie do pão, a igreja de Deus acreditou perpetuamente e, também, declara novamente o santo concílio que pela consagração do pão e do vinho, são convertidas: a substância total do pão no corpo de nosso Senhor, e a substância total do vinho no sangue de nosso Senhor Jesus Cristo, e essa transformação é oportuna e propriamente chamada de transubstanciação pela igreja católica.[1]

Quanto à doutrina da presença real de Jesus Cristo nosso Senhor na eucaristia, o concílio decretou que

claramente, e sinceramente confessa que depois da consagração do pão e do vinho, fica contido no saudável sacramento da santa eucaristia, verdadeira, real e substancialmente nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Deus e homem, sob as espécies daqueles materiais sensíveis, pois não existe com efeito, incompatibilidade que o mesmo Cristo nosso salvador esteja sempre sentado, no céu, à direita do Pai, segundo o modo natural de existir e que ao mesmo tempo nos assista sacramentalmente com Sua presença, e em sua própria substância em outros lugares, com existência que ainda que apenas o possamos expressar com palavras, poderemos, não obstante, alcançar com nosso pensamento ilustrado pela fé, que é possível a Deus, e devemos firmemente acreditar. Assim pois, professaram clarissimamente todos os nossos antepassados que viveram a verdadeira Igreja de Cristo, e trataram deste santíssimo e admirável sacramento, a saber: que nosso Redentor o instituiu na última ceia, quando depois de ter benzido o pão e o vinho, atestou a seus apóstolos, com claras e enérgicas palavras que lhes dava seu próprio corpo e seu próprio sangue. E sendo fato consumado que as ditas palavras mencionadas pelos mesmos santos evangelistas e repetidas depois pelo apóstolo são Paulo, incluem em si mesmas aquele próprio e patentíssimo significado, segundo as entenderam os santos pais, é sem dúvida execrável a maldade com que certos homens pretensiosos e corruptos as distorcem, violentam e tentam explicar em sentido figurado, fictício ou imaginário, negando a realidade da carne e sangue de Jesus Cristo contra a inteligência unânime da Igreja, que sendo coluna e apoio da verdade, sempre detestou por serem diabólicas estas ficções expressas por homens ímpios e sempre conservou indelével a memória e gratidão deste tão sobressalente benefício que nos fez Jesus Cristo.[2]

A novidade de dar apenas a hóstia

O rito papista prescreve que somente a hóstia seja dada aos participantes.[3]  O Concílio de Trento, na sessão XXI, realizada sob o papado de Pio IV, em 16 de julho de 1562, ratificou a decisão do Concílio de Constança, declarando que

tendo presente o sacrossanto, ecumênico e geral Concílio de Trento, reunido legitimamente no Espírito Santo e presidido pelos mesmos legados da Sé Apostólica, os vários e monstruosos erros que pelos malignos artifícios do demônio aparecem em diversos lugares acerca do imenso e santíssimo sacramento da eucaristia, pelos quais, parece que em algumas províncias, muitos se apartaram da fé e obediência à Igreja Católica, teve por bem expor agora a doutrina respectiva da comunhão em ambas as espécies e a comunhão das crianças. [...] Em continuidade, o mesmo Santo concílio, ensinado pelo Espírito Santo, que é o Espírito de sabedoria, inteligência, conselho e piedade, e seguindo o ditame do costume da Igreja, declara e ensina que os leigos e os clérigos que não celebram a missa, não estão obrigados, por preceito divino algum, a receber o sacramento da eucaristia sob as duas espécies, e que não cabe, absolutamente, dúvida nenhuma, sem faltar à fé, que lhes basta, para conseguir a salvação, a comunhão de apenas uma das espécies. Pois, ainda que Cristo, nosso Senhor, tenha instituído na última ceia este venerável sacramento nas espécies do pão e do vinho, e o tenha dado a seus apóstolos, sem dúvida, não tem por finalidade aquela instituição e comunhão estabelecer a obrigação de que todos os fiéis cristãos devam receber devido a esse estabelecimento de Jesus Cristo, uma e outra espécie. [...] Portanto, reconhecendo a santa mãe igreja essa autoridade que tem na administração dos sacramentos, mesmo tendo sido frequente o uso de comungar sob as duas espécies, desde o princípio da religião cristã, porém verificando, em muitos lugares, com o passar do tempo, a mudança nesse costume, aprovou, movida por muitas graves e justas causas, a comunhão sob uma só espécie, decretando que isso fosse observado como lei, a qual não é permitido mudar ou reprovar arbitrariamente sem a autorização expressa da igreja. [...] Declara o santo concílio depois disto, que ainda que nosso Redentor, como já disse antes, instituiu na última ceia este Sacramento nas duas espécies, e o deu a seus apóstolos, se deve confessar, porém, que também se recebe em cada uma única espécie a Cristo todo e inteiro e verdadeiro sacramento. E, que, por conseguinte, as pessoas que recebem uma única espécie, não ficam prejudicadas a respeito do fruto de nenhuma graça necessária para conseguir a salvação.[4]

 A igreja romana ratificou em seus concílios posteriores a sua compreensão dogmática acerca da eucaristia. Nenhuma mudança significativa ocorreu nos concílios Vaticano e Vaticano II que mereça referência.

         Todos os reformadores rejeitaram a doutrina papista. Eles foram unânimes em reprovar o ensino da Igreja Romana, pois não encontraram nela fundamento bíblico, nem respaldo na própria tradição da igreja e ainda porque ela resulta em superstição. O dogma eucarístico nem sempre foi ensinado pelo critério adotado pelos próprios papistas, pois segundo a regra proposta por Vicent de Lérins[5] um dogma é estabelecido se teneamus quod ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est,[6] não consegue ser provada no caso desta doutrina. O tríplice critério universitatem, antiquitatem, consensionem reprova a transubstanciação, porque antes do Concílio de Trento não havia universalidade, antiguidade nem consenso quanto ao ensino desta doutrina no cristianismo ocidental até o século XII e continuou sendo questionada até o século XVI.[7] Assim, a Igreja Romana ensina e pratica uma novidade eucaristica que não era aceita universalmente no final da Idade Média e que somente foi dogmatizada num concílio de Contrarreforma.

 

Notas:

[1] Canones et Decretal Dogmatica Concilii Tridentini in: Philip Schaff, ed., The Creeds Christendom – with a history and critical notes, vol. 2, p. 130. Thomas A. Baima comenta que “os teólogos católicos explicam a conversão por meio de um tecnicismo chamado adução. Adução significa que Cristo vem ao sacramento sem deixar o céu, e sua presença se faz efetiva em milhares de lugares. Esta explicação responde a um número de objeções à doutrina da transubstanciação. Isso é muito importante para a compreensão católica do sacramento. Um sacramento é um sinal que dá lugar ao que significa. Isso significa que os acidentes não são acidentais. O sinal de comer e beber – sinais de alimentação – e a unidade dos elementos com nossos corpos dá lugar ao significado: o alimento espiritual e a unidade com Cristo”. Thomas A. Baima, “El punto de vista católico romano” in: John H. Armstrong, ed., Cuatro puntos de vista sobre la santa cena, p. 129.

[2] Canones et Decretal Dogmatica Concilii Tridentini in: Philip Schaff, ed., The Creeds Christendom – with a history and critical notes, vol. 2, pp. 126-127. Ludwig Ott observa que “as três expressões veré, realiter, substantialiter são dirigidas especialmente contra as teorias de Zwingli, Oecolampadio e Calvino, e excluem todas as interpretações metafóricas que pudessem ser dadas às palavras da instituição.” Ludwig Ott, Manual de Teología Dogmática, p. 555.

[3] A decisão ocorreu no Concílio de Constança, que é o 16º ecumênico, de 5 novembro de 1414 a 22 abril de 1418, na sessão 13ª, de 15 junho de 1415, no Decreto Cum in nonnullis, confirmado pelo Papa Martinho V, em 1 setembro de 1425. Este decreto é repetido nas constituições de In eminentis de 1 setembro de 1425 (BarAE, ao ano de 1425, n. 18 / Theiner 28,27) e Apostolicae sedis praecellens de 25 de janeiro de 1426, declarando que “em algumas partes do mundo, alguns ousam temerariamente afirmar que o povo cristão deve receber o santo sacramento da Eucaristia sob as duas espécies do pão e do vinho e fazem comungar em geral a assembleia dos leigos não só com a espécie do pão, mas também com a do vinho, inclusive depois da refeição ou doutro modo sem jejum. Eles sustentam obstinadamente que este é o modo de se comungar, opondo-se ao louvável costume da Igreja, justificado também racionalmente, que de modo condenável procuram reprovar como sacrílego: por isso, este Concílio … declara, decreta e define que, se bem que Cristo tenha instituído e administrado depois da refeição aos apóstolos este venerando sacramento sob ambas as espécies do pão do vinho, não obstante isso, a admirável autoridade dos sagrados cânones e o autorizado costume da Igreja têm declarado e declaram que este sacramento não deve ser administrado depois da refeição nem a fiéis que não estão em jejum, salvo no caso de doença ou de outra necessidade, concedido ou admitido pelo direito ou pela Igreja. E como este costume foi introduzido, com razão, para evitar perigos e escândalos, com análoga ou maior razão foi introduzido e observado este outro: se bem que na Igreja primitiva este sacramento era recebido pelos fiéis sob ambas as espécies, mais tarde, porém, era recebido pelos consagrantes sob ambas as espécies, mas pelos leigos somente sob a espécie do pão, pois é preciso crer com toda a firmeza e sem sombra de dúvida que o corpo e o sangue de Cristo estão verdadeiramente contidos, na sua integridade, tanto sob a espécie do pão, como sob a do vinho. Portanto, visto que foi introduzido com boa razão pela Igreja e pelos santos Padres e observada durante muitíssimo tempo, este costume deve ser considerado como uma lei que não pode ser reprovada nem modificada arbitrariamente, sem o consentimento da Igreja. É errôneo sustentar que a observância deste costume ou lei é sacrílega ou ilícita; e os que se obstinam em sustentar o contrário devem ser tratados como hereges ...”. Heinrich Denzinger & Petrus Hünermann, Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral, pp. 347-348. A igreja oriental, em distinção da igreja romana, distribui ambos os elementos a todos os participantes na realização da eucaristia. Veja E.H. Klotsche, Christian Symbolic, p. 47.

[4] Canones et Decretal Dogmatica Concilii Tridentini in: Philip Schaff, The Creeds of Christendom - with a history and critical notes, vol. 2, pp. 170-176.

[5] Ele faleceu em 445 d.C..

[6] Ou seja: asseguremos que seja crido em outros locais, sempre e por todos. Reginald Stewart Moxon, ed., The Commonitorium of Vincentius of Lerins, p. xxxii.

[7] O teólogo romano Ludwig Ott explica que “a palavra transsubstantiatio, resp. transsubstantiare, foi criada pela teologia do século XII (Mestre Rolando [que mais tarde foi papa com o nome de Alexandre III] até 1150, Estevan de Tournai até 1160, Pedro Comestor 1160-1170), e é usada oficialmente pela vez primeira em um decreto (1202) de Inocêncio III e no Caput Firmiter do Concílio IV de Latrão.” Ludwig Ott, Manual de Teología Dogmática, p. 562. A transubstanciação somente foi aprovada definitivamente no Concílio de Trento, na sessão XIII, realizada sob o papado de Júlio III, em 11 de outubro de 1551. Bem como é recente o rito em que ambos os elementos, pão e vinho, são comidos pelo clero, enquanto o fiel católico comum recebe apenas a hóstia. Esta prática é estranha ao cristianismo oriental e outros grupos cristãos no mundo, tendo iniciado pela igreja ocidental no século XV, e sendo rejeitada pelos pré-reformadores e reformadores.


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