29 setembro 2006

"Decaídos da graça"?

Exegese de Gl 5:4

Os teólogos e exegetas arminianos apreciam usar distorcidamente o texto de Gl 5:4. Por uma questão de fidelidade à um princípio básico de hermenêutica devemos primeiramente observar que no contexto Paulo neste versículo não está discutindo a respeito da doutrina Perseverança dos Santos. Mas é necessário analisa-lo, pois, nele encontramos a tão debatida expressão da graça decaístes (ARA). Os arminianos extraem a expressão do seu contexto, e a enchem de seus tolos pressupostos, para ensinar falaciosamente que um verdadeiro crente pode perder a sua salvação. Para interpretar este texto com propriedade devemos perguntar: o que realmente o autor quis dizer com “decair da graça”?

Se for aceito a interpretação arminiana de que esta passagem refere-se a perda da salvação, então, seria necessário verificar a causa de tal queda. Não há menção de Paulo, neste texto, que exista alguma causa da queda da graça que seja motivado por algum pecado. A. T. Robertson comenta que Paulo “naturalmente, não se refere aqui a pecados ocasionais, mas que tem em mente uma questão muito mais importante: a de colocar a lei no lugar de Cristo como agente da salvação.”[1]

O respeitado William Hendriksen é infeliz em seu comentário deste texto. O comentarista, embora seja calvinista, abandona o contexto e adota uma interpretação arminiana. Ele simplesmente diz "se os gálatas, sejam todos ou apenas alguns deles, buscavam justificar-se pela obediência da lei, e se persistiam até ao fim neste erro, o laço que os unia a Cristo não poderia resistir tão grande tensão. Romper-se-ia! Cairiam, pois, do domínio da graça, perderiam sua ligação à graça. Seriam como as flores murchas que caem ao chão e desaparecem."[2]

A interpretação oferecida por Hendriksen envolve uma contradição real na seqüência da salvação conforme Paulo desenvolve em seu argumento em toda a epístola. Se os gálatas estavam buscando receber a salvação pelas obras da lei, como poderiam perder a salvação que ainda não haviam obtido? Se eles procuravam justificar-se pelos próprios méritos, como poderiam perder a graça, se não a tinham? Simplesmente é uma inconsistência de termos. Hendriksen desejando ser fiel ao literalismo da expressão “decaístes da graça” tornou-se infiel a toda Escritura.[3] Discordo deste admirável comentarista, pois não é aceitável crer que Paulo esteja sustentando conscientemente uma contradição real entre os seus escritos! Porque não é possível ser verdade que um crente seja seguramente salvo, e que ainda lhe seja possível perder a salvação! O apóstolo não está meramente enfatizando a responsabilidade humana.

Quando se lê o contexto de toda a carta não há dúvida que a central preocupação de Paulo é combater a teologia judaizante. A situação histórica era de que os crentes da Galácia estavam recebendo um ensino diferente do que o apóstolo lhes havia dado (1:9; 5:7-12). Judaizantes haviam se infiltrado nas igrejas daquela região, e estavam ensinando uma salvação pela guarda da lei do Antigo Testamento, negando não a messianidade de Jesus, mas minimizando a suficiência da salvação, pela graça, em Cristo. J.Gresham Machen observa que "Paulo conclui a seção central da Epístola enfatizando a gravidade da crise, Gl 5:1-12. Não se iluda. Circuncisão, como os Judaizantes advogavam-na, não é uma coisa inocente; ela significa a aceitação de uma religião legalista. Você precisa escolher entre a lei e a graça, não é possível que seja ambas." [4]

O apóstolo está declarando que é impossível alguém obter a salvação pelo caminho da lei. Para isto usa uma metáfora para reforçar o seu argumento de alguém que se perde do caminho da graça. Não significa que este que deixa o caminho da graça já seja salvo! Mas, que ele desprezou a única causa e meio de salvação, que é pela graça somente (Ef 2:1-10), preferindo conquistar a salvação pela guarda da lei (Tg 2:10). Mas este meio é reprovado pela enfermidade do coração humano. John Murray, em seu comentário de Rm 8:3 observa que "a lei não podia vencer o poder do pecado, porque “estava enferma pela carne”. Na natureza humana, a carne é pecaminosa. A incapacidade da lei reflete-se no fato de que ela não possui qualidade ou eficiência redentora. Portanto, em confronto com o pecado, a lei nada pode fazer para satisfazer as exigências criadas pela carne."[5]

Paulo não está discutindo sobre a possibilidade de se perder a salvação, ou, de se permanecer salvo. A sua artilharia se concentra no tema da salvação pela graça de Cristo, e não pelas obras da lei. O que realmente está reprovando é a possibilidade dos pecadores alcançarem a sua salvação através dos seus méritos pessoais. De forma simples, podemos resumir que a expressão “decaístes da graça” é usada por Paulo para indicar a inútil tentativa de se obter a salvação pela justificação das obras da lei. John Murray analisando Gl 5:4 concluí que "Paulo não está aqui tratando acerca da questão se um crente pode cair do favor de Deus, e finalmente perecer; antes, ele está falando acerca do distanciamento da pura doutrina da justificação da graça em contraste com a justificação pelas obras da lei. O que Paulo está dizendo na realidade é que se tratamos de nos justificar pelas obras da lei em qualquer modo ou grau, temos abandonado a justificação pela graça, ou caído dela totalmente. Não podemos admitir uma mistura de graça e obras de justificação, é uma ou outra. Se incluírmos as obras em qualquer grau, então temos abandonado a graça e somos obrigados a praticar toda a lei (Gl 5:4)." [6]

Considerações finais

É simplesmente estranho declarar que Paulo não cria na permanência total e final dos redimidos. Se arminianos desejam rechaçar tal ensino, que o façam! Se quiserem podem até mesmo discordar de Paulo. Mas, não poderão provar que este inspirado teólogo não cria com todo o coração e coerência na doutrina de que os crentes são preservados na graça, pelo poder de Deus, com o propósito imutável de uma salvação completa. A minha oração é que firmemos o nosso zelo em interpretar fielmente as Escrituras, para que cheguemos a compreensão da unidade da verdade (Fp 3:12-16).

Se aceitarmos que o inspirado apóstolo realmente aceita e ensina que um verdadeiro crente pode decair definitivamente de seu estado de graça e perder a sua salvação, então teremos que redefinir a nossa concepção de inspiração bíblica! O autor errou voluntariamente ao entrar numa real contradição? Esta pergunta somente seria válida se não crêssemos na inspiração bíblica. Todavia, ao sustentarmos a inspiração divina cremos que o Espírito conduziu consistentemente o autor revelando-lhe toda a verdade (Jo 16:12-13).

Judith M.G. Volf, em sua tese de doutorado, após fazer um estudo detalhado em várias passagens das epístolas do apóstolo, conclui que "Paulo, basicamente, ensina uma espécie de permanência dos cristãos escolhidos por Deus, e chamados pela fé em Jesus Cristo, com base em sua eleição. Paulo está seguro de que o mesmo Deus que é o autor e doador da salvação, deseja também em amor onipotente, e ininterrupta fidelidade, completar até o fim a salvação daqueles que foram eleitos e chamados por Ele, e que em Cristo pela fé, demonstram o seu comportamento fundamental. (...) A coragem e a consistência das epístolas de Paulo caracterizam a sua visão de permanência na salvação em sua própria vida, e não há nenhum resultado claro ou importante que evidencie o contrário." [7]

Podemos concluir que, é principalmente nas epístolas paulinas que se encontram as afirmações mais expressivas em favor da preservação dos santos no estado de graça para a salvação total e final. Mesmo o texto de Gl 5:4 não nega a doutrina da Perseverança dos Santos.

Notas:
[1] A. T. Robertson, Imágenes Verbales en el Nuevo Testamento - Las Epístolas de Pablo (Terrssa, CLIE, 1989), vol. 4, p. 418.
[2] William Hendriksen, Comentário do Novo Testamento – Gálatas (São Paulo, Ed. Cultura Cristã, 1999), p. 283.
[3] Mais adiante ele diz “não devemos tentar enfraquecer a força destas palavras em favor desta ou daquela pressuposição teológica.” Após tão estranha afirmação conclui “tenhamos em mente que Paulo, aqui, fala do ponto de vista da responsabilidade humana.” Gálatas, p. 283.
[4] J. Gresham Machen, The New Testament an Introduction to its Literature and History (Edinburgh, The Banner of Truth, 1997), p. 129.
[5] John Murray, Romanos (São José dos Campos, Editora Fiel, 2003), p. 306.
[6] John Murray, La Redención Consumada y Aplicada (Terrassa, CLIE, 1993), p. 166.
[7] Judith M. Gundry Volf, Paul & Perseverance: Stayind In and Falling Away (Louisville, Westminste/ John Knox, 1990), pp. 286-287.

Rev. Ewerton B. Tokashiki

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