28 outubro 2009

Ellen G. White falou a verdade? - parte 2

EVIDÊNCIAS HISTÓRICAS ANTERIORES À CONSTANTINO

Sem recorrermos ao Novo Testamento como prova histórica,[1] é possível evidenciar documentalmente que os cristãos observaram o primeiro dia da semana desde os seus primórdios? Devemos recordar que o argumento de Ellen G. White é que o abandono do sétimo dia para a guarda do domingo somente ocorreu em 321 d.C. quando Constantino promulgou a “Lei Dominical”. Leiamos o que registraram os pais da Igreja, nos séculos que antecederam à Constantino, e a nossa conclusão poderá descansar sobre o firme alicerce da verdade.

Didaquê
O mais antigo manual de preparação de batismo e discipulado da Igreja Cristã (80-90 d.C.) conhecido por Didaquê instrui como deveria ser a vida comunitária. A orientação era de que “reúnam-se no dia do Senhor para partir o pão e agradecer, depois de ter confessado os pecados, para que o sacríficio de vocês seja puro.”[2] A expressão Dia do Senhor, em grego kuriakê heméra e, em latim Dies Domini tornou-se o termo para indicar o primeiro dia da semana, a que chamamos de Domingo, o dia em que o Senhor ressuscitou!

Inácio de Antioquia
Inácio de Antioquia em sua Carta aos Magnésios (110 d.C.) declara que
aqueles que viviam na antiga ordem de coisas chegaram à nova esperança, e não observam mais o sábado, mas o dia do Senhor, em que a nossa vida se levantou por meio dele e da sua morte. Alguns negam isso, mas é por meio desse mistério que recebemos a fé e no qual perseveramos para ser discípulos de Jesus Cristo, nosso único Mestre.[3]


A sistematização doutrinária exposta por Inácio aponta para a transição da antiga para a nova aliança. Esclarece que a ressurreição de Cristo é a causa da descontinuidade e acomodação para a nova ordem, e, isto inevitavelmente envolve a mudança do dia de descanso do sétimo para o primeiro dia da semana, inaugurando uma nova era.

Plínio “o jovem”
Conhecido por ser justo em seus julgamentos, Plínio “o jovem”, segundo o seu relato, procurava através de tortura e questionamentos descobrir o grau de culpabilidade do réu. Num período em que o imperador romano Trajano exigia a prisão, tortura, e dependendo do caso a pena de morte dos cristãos, e, neste contexto Plínio escreve uma carta questionando do motivo de prender e executá-los, se neles nenhum motivo de culpa era encontrado. Em 113 d.C., o relator descreve que os cristãos, sob tortura, confessaram que “unânimes em reconhecer que sua culpa se reduzia apenas a isso: em determinados dias, costumavam comer antes da alvorada e rezar responsivamente hinos a Cristo como a um deus...”.[4]

O testemunho do governador pagão expressou admiração com o costume cristão. Não havia nada de absurdo, nem ofensivo naquela religião. A menção de determinados dias confirma que as suas reuniões seguiam uma norma semanal, e que antes do amanhecer se reuniam.

A carta a Diogneto
O desconhecido escritor da Carta a Diogneto afirma que “não creio que tenhas necessidade de que eu te informe sobre o escrúpulo deles a respeito de certos alimentos, a sua superstição sobre os sábados...”.[5] Em 120 d.C., o contraste entre cristãos e judeus estava estabelecido, de modo que a guarda do sétimo dia era visto pelos cristãos como sendo uma superstição judaica, e não como algo normativo para a Igreja.

A carta de Barnabé
Um importante documento histórico apresenta alguns traços do Cristianismo do século II. A “carta de Barnabé” não tem autoria certa, mas pelo seu conteúdo a crítica literária especializada em patrística é de consenso datá-la entre 134-135 d.C.. O autor interpreta o significado do sábado. Ele declara que
vede como ele diz: não são os sábados atuais que me agradam, mas aquele que eu fiz e no qual, depois de ter levado todas as coisas ao repouso, farei o início do oitavo dia, isto é, o começo de outro mundo. Eis por que celebramos como festa alegre o oitavo dia, no qual Jesus ressuscitou dos mortos e, depois de se manifestar, subiu aos céus.[6]


O seu conteúdo é abertamente contrário aos sistemas judaizantes. Nesta interpretação acerca do sábado, o autor contrasta entre o entendimento do Judaísmo e o Cristianismo.

Justino de Roma
O apologista cristão expressou que “no dia que se chama do sol, celebra-se uma reunião de todos os que moram nas cidades ou nos campos, e aí se lêem, enquanto o tempo o permite, as memórias dos apóstolos ou os escritos dos profetas.” Noutro lugar ele continua
celebramos essa reunião geral no dia do sol, porque foi o primeiro dia em que Deus transformando as trevas e a matéria, fez o mundo, e também o dia em que Jesus Cristo, nosso Salvador, ressuscitou dos mortos. Com efeito, sabe-se que o crucificaram um dia antes do dia de Saturno e no dia seguinte ao de Saturno, que é o dia do Sol, ele apareceu a seus apóstolos e discípulos, e nos ensinou essas mesmas doutrinas que estamos expondo para vosso exame.[7]


A preocupação de Justino não era de firmar novas doutrinas, mas apenas de expor aos seus inquisitores o que era crença e prática tradicional dentro do Cristianismo. A sua I Apologia é datada em 155 d.C. apontando para a proximidade da era apostólica, um período de pureza na fé cristã.

Irineu de Lião
Enquanto Justino defendia os cristãos diante dos governadores pagãos, Irineu se dedicava a atacar as heresias que brotavam dentro do Cristianismo. Irineu como apologista analisava os desvios doutrinários que haviam se infiltrado dentre os cristãos. Especificamente para o nosso propósito selecionamos os heréticos que se nomeavam ebionitas,[8] que segundo Irineu eles “praticam a circuncisão e continuam a observar a Lei e os costumes judaicos da vida e até adoram Jerusalém como se fosse a casa de Deus.”[9] Além de negar a salvação somente pela graça e a sua suficiência em Cristo, os ebionitas ensinavam uma redenção por meio da obediência da lei. Dentre os “costumes judaicos da vida” incluíam a prática de guardar o sétimo dia. Eles não entenderam a cessação dos aspectos civis da lei, nem o seu cumprimento cerimonial em Cristo, de modo que, persistiam em exigi-los como complemento da salvação, e nisto consistia a sua heresia. O livro Contra as Heresias é datado entre 180 a 190 d.C..

Tertuliano
No início do século III os cristãos demonstravam desprezo pelos costumes judaizantes. Em seu livro Da Idolatria, escrito entre os anos 200 e 210 d.C., Tertuliano declara que “não temos praticado os Shabbats ou, outras festividades judaicas, do mesmo modo que evitamos as práticas pagãs.”[10] A sua afirmação esclarece que, tanto a idolatria quanto práticas judaicas, eram evitadas no mesmo pé de igualdade. Não há dúvidas de que o descanso cristão no fim do século II era marcadamente o domingo, da mesma forma que o exclusivismo cristão testemunhava contra pagãos e judeus!

Conclusão
As evidências exigem um veredicto! A declaração da senhora Ellen G. White é insustentável por causa da ausência de fontes e de provas. A verdade está contra ela, pois todo testemunho histórico aponta para a celebração do primeiro dia da semana como sendo o santo dia de descanso, de comunhão e de celebração dos cristãos primitivos que antecederam a “Lei Dominical” de Constantino.

Todos os editos e leis foram promulgados para que os seus súditos incentivados por benefícios civis adotassem a religião cristã. O império romano estava se adaptando ao Cristianismo e não o contrário. Assim, o primeiro dia da semana tornou-se descanso civil, por ser tradicionalmente desde o final do primeiro século um dia reservado para o culto cristão.

Evidências históricas apontam para o favorecimento do imperador romano para o Cristianismo. O que vimos foi que a Igreja no período da Patrística não somente evitava a guarda do sétimo dia, mas desprezava-a como sendo superstição, idolatria e heresia judaizante! Não há no puro Cristianismo nenhum grupo, em nenhum lugar e período que celebrasse o sábado como o dia cristão.


NOTAS:
[1] Deixo esclarecido que aceito a plena inerrância e historicidade do Novo Testamento. Apenas não recorrerei a textos do NT para evitar uma discussão exegética, mantendo-me apenas na análise histórica extrabíblica. Aqueles que têm alguma dúvida quanto à historicidade do NT sugiro a leitura de Eta Linnermann, Crítica Histórica da Bíblia (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2009). Talvez, numa outra oportunidade postarei a exposição bíblica dos motivos de se guardar o Domingo como sendo o SHABBATH na Nova Aliança, e não mais o sétimo dia, como o era na Antiga Aliança.
[2] Didaquê in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 1995), vol. 1, pág. 357.
[3] Inácio de Antioquia – Epístola aos Magnésios – Padres Apostólicos in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 1995), vol. 1, pág. 94.
[4] Henry Bettenson, ed., Documentos da Igreja Cristã (São Paulo, ASTE, 4ªed., 2001), págs. 29-30.
[5] Carta a Diogneto – Pais Apologistas in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 1995), vol. 2, pág. 21.
[6] Carta de Barnabé – Pais Apologistas in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 1995), vol. 1, pág. 311.
[7] Justino de Roma, I Apologia in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 2ªed., 1995), vol. 3, págs. 83-84.
[8] Sabe-se que “eram judeus que aceitavam Jesus como o Messias ao mesmo tempo em que continuavam a afirmar que Paulo era um apóstota da lei, negavam o nascimento virginal, praticavam a circuncisão, observavam o Sábado, a Páscoa e outras festividades judaicas”. Robert G. Clouse, et. al., Dois reinos (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2003), pág. 33.
[9] Irineu de Lião, Contra as Heresias in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 2ª ed., 1995), vol. 4, pág. 108.
[10] Tertulian, On Idolatry in: Ante-Nicene Fathers, vol. 3, pág. 70 citado em G.H. Waterman, Sabbath in: The Zondervan Pictorial Encyclopedia of the Bible (Grand Rapids, Zondervan Publishing, 1977), vol. 5, pág. 187. Este pai da Igreja é conhecido por causa da sua ortodoxia trinitária. O termo “Trindade” foi cunhado por ele, e Philip Schaff concede-lhe o título de fundador do Cristianismo Latino.

27 outubro 2009

Ellen G. White falou a verdade? - parte 1

É verdade? Cadê a prova?

Ellen G. White é conhecida como sendo uma das principais expoentes do movimento sabatista moderno. Em seu mais lido livro O Grande Conflito afirma que
o imperador Constantino promulgou um decreto fazendo do domingo uma festividade pública em todo o Império Romano (ver Apêndice). O dia do sol era reverenciado por seus súditos pagãos e honrado pelos cristãos. Foi instado a fazer isto pelos bispos da igreja. Inspirados pela sede de poder, perceberam que, se o mesmo dia fosse observado tanto por cristãos quanto por pagãos, isto resultaria em maior poder e glória para a igreja. Mas, conquanto muitos cristãos tementes a Deus fossem gradualmente levados a considerar o domingo como possuindo certo grau de santidade, ainda mantinham o verdadeiro sábado e o observavam em obediência ao quarto mandamento.
[1]

A declaração da senhora White a respeito deste momento histórico merece algumas considerações. Talvez, alguém questione porque eu dedicaria o meu tempo em refutar tão infundada afirmação. A resposta impulsiona do meu amor pela verdade. O volume que tenho em mãos em sua contracapa declara: “mais de 10 milhões de exemplares vendidos em 65 línguas”; e, a minha edição é de 2004. Alguns volumes a mais foram publicados neste meio tempo até hoje! Isto significa que desde que este livro foi escrito, sendo traduzido e divulgado, o seu conteúdo foi ensinado para milhares de pessoas. Em conversa com sabatistas sempre ouvi que quem mudou a guarda do sétimo dia para o domingo fora o imperador romano Constantino, mas não sabia a fonte de onde procedia esta idéia, até que ganhei um exemplar de O Grande Conflito e pude lê-lo.

Sinto-me constrangido por um segundo motivo a escrever uma resposta à sua declaração. Ellen Gould White (1827-1915)[2] embora tenha origem metodista, a sua família recebeu influência do movimento milenarista e sabatista procedente de William Miller (1782-1849) que profetizou a vinda de Cristo para o dia 22 de Outubro de 1844, fato que nunca ocorreu. Após serem excluídos da Igreja Metodista, por divergência doutrinária, associaram-se ao movimento adventista, sendo que ela tornou-se a sua líder e profetiza,[3] e durante um ministério de aproximadamente setenta anos, alegou ter recebido duas mil visões e sonhos proféticos.[4] Numa de suas profecias ela afirma que a guarda do domingo é a marca da besta.[5] Não perderei tempo analisando tão insana afirmação, visto que não há nada na Escritura Sagrada que autorize interpretar com este significado o texto de Ap 13, como o faz a senhora White.

Passemos imediatamente a analisar o que esta escritora disse em O Grande Conflito. Primeiro ela simplesmente menciona um decreto promulgado por Constantino, e a respeito deste documento, em que nenhuma fonte é citada, nem se afirma com necessária clareza o teor do conteúdo desta lei imperial. Talvez, ela não soubesse que história se escreve com documentos. Entretanto, ela induz o leitor a entender que este texto foi responsável pela mudança da observância do descanso do sábado para o domingo. Conforme a sua interpretação histórica, a senhora White alega que interesses políticos, e até evangelísticos fizeram com que os líderes cristãos, contemporâneos do imperador romano, contribuíssem para a transição da guarda do sétimo para o primeiro dia da semana.

Embora a autora não forneça nenhuma fonte da sua alegação, os editores o fizeram. Contudo, a bibliografia mencionada volta-se contra eles mesmos.[6] O historiador Albert H. Newman argumenta que a suposta conversão de Constantino [cerca de 310 d.C.] favorecia socialmente os cristãos no seu império. O Cristianismo não estava sofrendo mutações para adaptar-se aos romanos, mas o império pagão estava se moldando ao costumes cristãos.[7] Newman menciona uma série de favores que o imperador concedia aos cristãos, por exemplo, como os contidos no Edito de Milão (313 d.C.),[8] a isenção da liderança cristã do serviço militar e de impostos públicos (313 d.C.),[9] aboliu práticas e festividades pagãs que fossem públicas (315 d.C.), concedeu o direito privado às igrejas locais (321 d.C.) e tornou um dever civil o descanso no domingo, conforme era o costume cristão (321 d.C.).[10] Assim, o Dies Domini celebrado no primeiro dia da semana passou a ser descanso estatal.[11] O historiador Philip Schaff esclarece que Constantino
é o fundador, de no mínimo, da observância civil do Domingo, em que somente deste modo a sua observância religiosa na igreja poderia se tornar universal e propriamente assegurada. No ano de 321, ele editou uma lei proibindo o trabalho manual nas cidades e todas as transações judiciais, e posteriormente também o exercício militar no Domingo.[12]


Em outras palavras, o domingo não se tornou obrigatoriamente um dia de descanso para os cristãos por causa da lei de Constantino. Mas, o decreto tornou um dever civil o que por séculos era o costume religioso dos cristãos.


Notas:
[1] Ellen G. White, O Grande Conflito (Tatuí, Casa Publicadora Brasileira, 7ª ed., 2004), pág. 33.
[2] Para maiores detalhes veja A.A. Hoekema, Adventismo del Septimo Dia (Kalamazoo, SLC, 1990).
[3] Em suas CRENÇAS FUNDAMENTAIS DA IGREJA ADVENTISTA DO 7º DIA declara que “18. O Dom de Profecia - Um dos dons do Espírito Santo é a profecia. Este dom é uma característica da Igreja remanescente e foi manifestado no ministério de Ellen G. White. Como a mensageira do Senhor, seus escritos são uma contínua e autorizada fonte de verdade e proporcionam conforto, orientação, instrução e correção à Igreja. (Joel 2:28 e 29; Atos 2:14-21; Heb. 1:1-3; Apoc. 12-17; 19:10)” extraído de http://www.adventistado7dia.org/iasd/crencas-fundamentais acessado em 7/10/2009.
[4] J.D. Douglas, White, Ellen Gould in: Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã (São Paulo, Edições Vida Nova, 1990), vol. 3, pág. 646.
[5] J.K. Van Baalen, O Caos das Seitas (São Paulo, Imprensa Bíblica Regular, 1970), pág. 155.
[6] Os editores no indicado “Apêndice” mencionam a LEI DOMINICAL DE CONSTANTINO apontam para a obra do historiador reformado Philip Schaff, History of the Christian Church, vol. III, cap. 7. Todavia, na mesma seção [75], em seu primeiro parágrafo Schaff diz “a observância do Domingo originou no tempo dos apóstolos, e as formas básicas da adoração pública, com o seu honrar, santificar e exultante influência em todas as terras cristãs”, pág. 300. É estranho que a fonte que os editores citam para favorecer a tese de que a mudança era do período de Constantino (321 d.C.), inicie o texto com esta declaração!
[7] Outra obra citada no “Apêndice” como evidência a favor da tese da senhora White é o livro-texto do batista Albert H. Newman, A Manual of Church History. Mas, a discussão desenvolvida por Newman é contrária à tese sabatista!
[8] O edito encontra-se na sua íntegra transcrito na obra Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 2000), vol. 15, págs. 491-494.
[9] Veja este outro edito em Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica, vol. 15, págs. 499-500.
[10] Kenneth S. Latourette, Historia del Cristianismo (El Paso, Casa Bautista Publicaciones, 1976), vol. 1, págs., 132-133.
[11] Albert H. Newman, A Manual of Church History (Philadelphia, The American Baptist Publication Society, 1953), vol. 1, págs. 306-307.
[12] Philip Schaff, History of the Christian Church (Albany, Ages Software, 1997), vol. III, pág. 301.

Grau de autoridade das afirmações teológicas

A nossa teologia constará de distintos tipos de afirmações teológicas que podem ser classificadas com base em sua derivação. É importante atribuir a cada tipo de afirmação um grau apropriado de autoridade.

1. As afirmações diretas das Escrituras deve-se conceder o maior peso. Á medida que representam corretamente o que ensina a Bíblia, tem o status de palavra de Deus. Assim, há que assegurar de que se está trabalhando com o que realmente está ensinando as Escrituras, e não com uma interpretação imposta.

2. Para as implicações diretas das Escrituras também se deve dar um grau de prioridade. Entretanto, tem-se que considerar como sendo um pouco menos autoritativas que as afirmações diretas, porque a introdução de um passo adicional (inferência lógica) leva consigo a possibilidade de erro interpretativo.

3. As implicações prováveis das Escrituras, isto é, as inferências que se extraem nos casos em que uma das pressuposições ou premissas é somente provável, tem menos autoridade que as implicações diretas. Ainda que mereçam respeito, estas afirmações deveriam ser tomadas com certa provisionalidade.

4. As conclusões indutivas das Escrituras variam em seu grau de autoridade. A investigação indutiva, por suposto, somente oferece probabilidades. A certeza de suas conclusões aumenta em proporção ao que aumenta o número de referências realmente consideradas e o número total de referências pertinentes que poderiam ser consideradas.

5. As conclusões que se inferem da revelação geral, que é menos particular e menos implícita que a revelação especial, devem estar sempre sujeitas às informações mais claras e explícitas da Bíblia.

6. As especulações precisas, que com freqüência incluem hipóteses baseadas numa só afirmação ou insinuação das Escrituras, ou que deviram de alguma parte obscura ou pouco clara da Bíblia, também podem ser expostas e utilizadas pelos teólogos. Não existe nenhum perigo desde que o teólogo seja consciente e advirta o leitor, ou ao ouvinte do que está fazendo. Surge um sério problema se estas especulações se apresentam com o mesmo grau de autoridade que se atribuem às afirmações da primeira categoria.

O teólogo empregará todos estes materiais legítimos que estão a sua disposição, dando em cada caso nem maior ou menor crédito do que seja conveniente, segundo a natureza das fontes.

Extraído de Millard Erickson, Teología Sistemática (Barcelona, CLIE, 2008, 2a.edição), págs. 83-84

Traduzido por Rev. Ewerton B. Tokashiki

19 setembro 2009

Resenha: A Cabana

Já faz tempo que o liberalismo teológico tem assediado e invadido uma boa parte do campo evangélico brasileiro. Os prejuízos para a pregação do evangelho têm sido enormes. A decadência doutrinária aumenta com rapidez e muitos crentes estão cada vez mais confusos.

Por várias décadas, o liberalismo teológico vem ganhando espaço nas denominações históricas e em seus seminários. Nos últimos anos, porém, alguns segmentos pentecostais foram atingidos por essa corrente de pensamento, algo inimaginável até então, pois, ser pentecostal significa crer no poder e na Palavra de Deus.

A exemplo dos liberais, alguns pentecostais se julgam espertos o suficiente para duvidar de Deus e da sua Palavra. Hostilizar o cristianismo, exaltar a dúvida e questionar a Bíblia Sagrada tornou-se para muitos um sinal de academicismo e inteligência.

É o que vemos hoje através das igrejas emergentes, que pregam uma ortodoxia generosa,¹ onde as verdades e temas vitais da fé cristã perdem sua importância. Tudo indica que há uma apostasia se instalando em muitas igrejas evangélicas, algo já predito na Palavra de Deus e que aponta para a volta de Cristo (2 Ts 2.3; 2 Tm 4.1; 2 Tm 4.1-4; 2 Pe 2.1).

É num solo assim, fértil para a semeadura e crescimento de distorções das doutrinas centrais da fé cristã que surge o livro A Cabana² promovendo o liberalismo teológico e fazendo sucesso entre os evangélicos e a sociedade em geral.

Este artigo apresenta uma breve análise, à luz da Bíblia, sobre esse best-seller a fim de responder algumas indagações de muitos cristãos.

I – Definições

Liberalismo teológico: Movimento da teologia protestante que surgiu no século XIX com o objetivo de modificar o cristianismo a fim de adaptá-lo à cultura e à ciência modernas.

O liberalismo rejeita o conceito tradicional das Escrituras Sagradas como revelação divina proposital e detentora de autoridade, preferindo o conceito de que a revelação é o registro das experiências religiosas evolutivas da humanidade. Apregoa também um Jesus mestre e modelo de ética, e não um redentor e Salvador divino.

Pluralismo religioso: A crença de que há muitos caminhos que levam a Deus, que há diversas expressões da verdade sobre ele, e que existem vários meios válidos para a salvação.

Relativismo: Negação de quaisquer padrões objetivos ou absolutos, especialmente em relação à ética. O relativismo propala que a verdade depende do indivíduo ou da cultura.

Teologia relacional (teísmo aberto): Conceito teológico segundo o qual alguns atributos tradicionalmente ligados a Deus devem ser rejeitados ou reinterpretados. Segundo seus proponentes, Deus não é onisciente e nem onipotente. A presciência divina é limitada pelo fato de Deus ter concedido livre-arbítrio aos seres humanos.

II – O livro A cabana

A história do livro

Durante uma viagem que deveria ser repleta de diversão e alegria, uma tragédia marca para sempre a vida da família de Mack Allens: sua filha mais nova, Missy, desaparece misteriosamente. Depois de exaustivas investigações, indícios de que ela teria sido assassinada são encontrados numa velha cabana.

Imerso numa dor profunda e paralisante, Mack entrega-se à Grande Tristeza, um estado de torpor, ausência e raiva que, mesmo após quatro anos de desaparecimento da menina, insiste em não diminuir.

Um dia, porém, ele recebe um bilhete, assinado por Deus, convidando-o para um encontro na cabana abandonada. Cheio de dúvidas, mas procurando um meio de aplacar seu sofrimento, Mack atende ao chamado e volta ao cenário de seu pesadelo.

Chegando lá, sua vida dá uma nova reviravolta. Deus, Jesus e o Espírito Santo estão à sua espera para um “acerto de contas” e, com imensa benevolência, travam com Mack surpreendentes conversas sobre vida, morte, dor, perdão, fé, amor e redenção, fazendo-o compreender alguns dos episódios mais tristes de sua história (Informações extraídas da orelha do livro).

O livro é uma ficção cristã, um gênero que cresce muito na cultura cristã contemporânea e comunica sua mensagem de uma forma leve e fácil de se ler. O autor, William P. Young trata de temas vitais para a fé cristã tais como: Quem é Deus? Quem é Jesus? Quem é o Espírito Santo? O que é a Trindade? O que é salvação? Jesus é o único caminho para Deus?

III – Pontos principais do livro³

1. Hostilidade ao Cristianismo

“As orações e os hinos dos domingos não serviam mais, se é que já haviam servido... A espiritualidade do Claustro não parecia mudar nada na vida das pessoas que ele conhecia... Mack estava farto de Deus e da religião...” (p. 59).

“Nada do que estudara na escola dominical da igreja estava ajudando. Sentia-se subitamente sem palavras e todas as suas perguntas pareciam tê-lo abandonado” (81).

Resposta bíblica: Jesus disse que as portas do inferno não prevaleceriam contra a sua Igreja (Mt 16.18).

2. Experiência acima da revelação
As soluções para os probemas da vida surgem de experiência extrabíblicas e não da Palavra de Deus. As alegadas revelações da “Trindade” são a base de todo o enredo do livro. Mesmo fazendo alusões às verdades bíblicas, elas não são a base autoritativa da mensagem.

3. A rejeição de Sola Scriptura

A Cabana rejeita a autoridade da Bíblia como o único instrumento para decidir as questões de fé e prática. Para ouvir Deus, Mack é convidado a ouvir Deus numa cabana através de experiências e não através da leitura e meditação da Bíblia Sagrada.

Resposta bíblica: Rm 15.4: “Pois tudo quanto, outrora, foi escrito para o nosso ensino foi escrito, a fim de que, pela paciência e pela consolação das Escrituras, tenhamos esperança”.

2 Tm 3.16, 17: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a coreção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra”.

A igreja não precisa de uma nova revelação, mas de iluminação para entender o que foi revelado nas Escrituras.

4. Uma visão antibíblica da natureza e triunidade de Deus

Além de errar sobre a Bíblia, A Cabana apresenta uma visão distorcida sobre a Trindade. Deus aparece como três pessoas separadas, o que pode ser chamado de triteísmo.

O autor tenta negar isso ao escrever: “Não somos três deuses e não estamos falando de um deus com três atitudes, como um homem que é marido, pai e trabalhador. Sou um só Deus e sou três pessoas, e cada uma das três é total e inteiramente o um” (p. 91).

Young parece endossar uma pluralidade de Deus em três pessoas separadas: duas mulheres e um homem (p. 77). Deus o pai é apresentado como uma negra enorme, gorda (p. 73, 74, 75, 76, 79), governanta e cozinheira, chamada Elousia (p.76).

Jesus aparece como um homem do Oriente Médio, vestido de operário, com cinto de ferramentas e luvas, usando jeans cobertos de serragem e uma camisa xadrez com mangas enroladas acima dos cotovelos, mostrando os antebraços musculosos. Não era bonito (p. 75).

O Espírito Santo é apresentado como uma mulher asiática e pequena (p. 74), chamada Sarayu (p. 77, 101).

Resposta bíblica: Dentro da natureza do único Deus verdadeiro há três pessoas distintas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. São três pessoas distintas, mas, não separadas como o livro apresenta. Além disso, o Pai e o Espírito Santo não possuem um corpo físico. Veja Jó 10.4; João 4.24 e Lucas 24.39.

5. A punição do pecado

O livro apregoa que Deus não castiga os pecados: “Mas o Deus que me ensinaram derramou grandes doses de fúria, mandou o dilúvio e lançou pessoas num lago de fogo. — Mack podia sentir sua raiva profunda emergindo de novo, fazendo brotar as perguntas, e se chateou um pouco com sua falta de controle. Mas perguntou mesmo assim: — Honestamente, você não gosta de castigar aqueles que a desapontam? Diante disso, Papai interrompeu suas ocupações e virou-se para Mack. Ele pôde ver uma tristeza profunda nos olhos dela. — Não sou quem você pensa, Mackenzie. Não preciso castigar as pessoas pelos pecados. O pecado é o próprio castigo, pois devora as pessoas por dentro. Meu objetivo não é castigar. Minha alegria é curar. — Não entendo...”

Resposta bíblica:

A Cabana mostra um Deus apenas de amor e não de justiça. Apesar da Bíblia ensinar que Deus é amor, não falha em apresentá-lo como um Deus de justiça que pune o pecado:

“A alma que pecar, essa morrerá” (Ezequiel 18.4).

“Semelhantemente, os homens também, deixando o contato natural da mulher, se inflamaram mutuamente em sua sensualidade, cometendo torpeza, homens com homens, e recebendo, em si mesmos, a merecida punição do seu erro” (Rm 1.27).

“porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm 6.23).

“E a vós outros, que sois atribulados, alívio juntamente conosco, quando do céu se manifestar o Senhor Jesus com os anjos do seu poder, em chama de fogo, tomando vingança contra os que não conhecem a Deus e contra os que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus” (2 Ts 1.7, 8). Cristo morreu pelos nossos pecados (1Co 15.3).

6. O milagre da encarnação

O livro apresenta uma visão errada da encarnação de Jesus Cristo: “Quando nós três penetramos na existência humana sob a forma do Filho de Deus, nos tornamos totalmente humanos. Também optamos por abraçar todas as limitações que isso implicava. Mesmo que tenhamos estado sempre presentes nesse universo criado, então nos tornamos carne e sangue” (p. 89).

Resposta bíblica:

De acordo com a Bíblia, somente o verbo encarnou (Jo 1.14). Veja ainda Gl 4.4; Cl 2.9 e 1Tm 2.5.

7. Jesus, o melhor ou único caminho para o Pai?
No livro, Jesus é apresentado como o melhor e não o único caminho para Deus: “Eu sou o melhor modo que qualquer humano pode ter de se relacionar com Papai ou com Sarayu” (p. 101).

Resposta bíblica:

A Bíblia é muito clara ao afirmar que Cristo é o único que pode salvar: Is 43.11; Jo 6.68; Jo 14.6; At 4.12 e 1 Tm 2.5.

8. Patripassionismo

O livro promove uma antiga heresia denominada patripassionismo, que é o sofrimento do Pai na cruz: “O olhar de Mack seguiu o dela, e pela primeira vez ele notou as cicatrizes nos punhos da negra, como as que agora presumia que Jesus também tinha nos dele. Ela permitiu que ele tocasse com ternura as cicatrizes, marcas de furos fundos” (p. 86). “Olhou para cima e notou novamente as cicatrizes nos pulsos dela” (p. 92). “Você não viu os ferimento em Papai também”? (p. 151).

Resposta bíblica

A Bíblia mostra que foi Jesus quem sofreu na cruz e recebeu as marcas dos cravos e não o Pai ou o Espírito Santo. Veja João 20.20, 25, 28.

9. Universalismo

A Cabana promove o universalismo, isto é, que todas as pessoas serão salvas, não importa a sua religião ou sistema de crença. “Os que me amam estão em todos os sistemas que existem. São budistas ou mórmons, batistas ou muçulmanos, democratas, republicanos e muitos que não votam nem fazem parte de qualquer instituição religiosa. Tenho seguidores que foram assassinos e muitos que eram hipócritas. Há banqueiros, jogadores, americanos e iraquianos, judeus e palestinos” (p. 168, 169).

“Não tenho desejo de torná-los cristãos, mas quero me juntar a eles em seu processo para se transformarem em filhos e filhas do Papai, em irmãos e irmãs, em meus amados” (p. 169).
Jesus afirma: “A maioria das estradas não leva a lugar nenhum. O que isso significa é que eu viajarei por qualquer estrada para encontrar vocês” (p. 169).

Resposta bíblica

Não há base bíblica para tais afirmações. A Palavra de Deus ensina que não existe salvação fora de Jesus Cristo. Apesar de o universalismo ser uma doutrina agradável, popular e que reflete a política da boa vizinhança, a Bíblia afirma que nem todos serão salvos: Veja Mt 7. 13, 14; 25.31-46; 2 Ts 3.2.


Escrito por Dr. Paulo Romero

NOTAS

* Pastor presidente da ICT - Igreja Cristã da Trindade; Presidente da Agir - Agência de Informações Religiosas
¹ Brian McLaren, Uma ortodoxia generosa (Brasília, Editora Palavra, 2007). Este livro promove muitas das propostas denunciadas neste estudo.
² YOUNG, William P., A cabana (Rio de Janeiro, Editora Sextante, 2008).
³ Algumas idéias foram extraídas de um trabalho publicado por Norman Geisler: “Norm Geisler Takes “The Shack”to the Wood Shed. Acessado em 18 de dezembro de 2008. www.thechristianworldview.com

BIBLIOGRAFIA

EVANS, C. Stephen, Dicionário de apologética e filosofia da religião (São Paulo, Editora Vida, 2004).
NICODEMUS, Augustus, O que estão fazendo com a Igreja (São Paulo, Editora Mundo Cristão, 2008).
PIPER, John et alli, Teísmo aberto: uma teologia além dos limites bíblicos (São Paulo, Editora Vida, 2006.
WILSON, Douglas (org.), Eu não sei mais em quem eu tenho crido: confrontando a teologia relacional (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2006).
YOUNG, William P., A cabana (Rio de Janeiro, Editora Sextante, 2008).

15 setembro 2009

Línguas e profecias hoje? - algumas proposições

É possível concluir lendo os textos bíblicos que cessou o dom de línguas conforme o ensino do Novo Testamento. Pensemos nos seguintes motivos:

1. Em todas as ocorrências são idiomas ou dialétos inteligíveis que eram falados por algum grupo étnico.

2. O seu caráter sempre era homilético-revelacional ao lado do dom de profecia.

3. A natureza SOBRENATURAL do dom aponta para o fato de que os que usufruiam dele não haviam APRENDIDO, nem sido CONDICIONADOS, nem mesmo SUGESTIONADOS por comportamento ou, qualquer outro motivo artificial.

4. Como qualquer outro dom, todos têm a finalidade de edificar o CORPO e não somente o indivíduo. Na Escritura a edificação ordinariamente ocorre pelo ENTENDIMENTO inteligível da Palavra de Deus, e não pelo estímulo sensorial.

5. Dentro da Igreja de Corinto [a mais problemática do NT] haviam crentes que realmente tinham recebido o dom de línguas, e outros que imitavam por motivo de orgulho. Paulo nos capítulos 12-14 orienta os verdadeiros, ironiza o falso, e organiza a bagunça que se encontrava naquela comunidade.


CONCLUINDO:
1. Há uma diferença copérnica entre o verdadeiro dom de línguas como ocorria no NT e estas estranhas [e quase bizarras] manifestações ininteligíveis e emocionalistas que ocorrem contemporaneamente.

2. O que temos hoje, e isto pode ser verificado por qualquer lingüista, é que não existe mais o "dom de línguas" como no NT. Qualquer um pode chegar a esta conclusão mesmo sem um conhecimento técnico ou teórico de linguística. A moderna prática de "línguas" nas igrejas é a emissão de sons inarticulados, ininteligíveis, grunidos, rosnados, cacarecos, zunidos e toda sorte de sonorização que são qualquer coisa, menos que uma comunicação proposicional que é composta por pronomes, substantivos, verbos, adjetivos, sujeito e predicado e, etc.. É possível categorizar estes sons ininteligíveis de qualquer coisa menos do que uma língua.

3. Estes estranhos sons nada comunicam à alma, porque nada passa pela mente. As palavras nada mais são do que idéias vestidas de símbolos sonoros. A mente perfeita e infinitamente sábia do Espírito não produziria tão desordenada ação visando a edificação pela confusão de sons desarticulados. A Palavra de Deus comunica através de palavras humanas, produzindo no homem uma disposição divina, e isto em momento algum dispensa o uso do entendimento.

4. Em toda a história da redenção sabemos que a revelação, comunicada e inspirada pelo Espírito Santo, é normativamente chamada de PALAVRA DE DEUS. O dom de línguas no NT era um meio revelacional, de modo que, a sua manifestação se dava pela comunicação de palavras reveladas (falavam das grandesas de Deus) aos ouvintes que entendiam em sua própria língua materna. As línguas do NT não eram sons inarticulados, de modo que somente os sentimentos, ou uma forma generalizada de sensações santas eram comunicadas à percepção do indivíduo, deixando-o decifrar qual era a "intenção" do Espírito. De fato, neste dom "a Palavra de Deus" era revelada num idioma não aprendido, mas sobrenaturalmente dotado.

13 setembro 2009

Amigos

Tenho a alegria de trabalhar com dois colegas que são realmente meus amigos! O da esquerda é o Rev. Mauro Pereira da Silva, recém chegado aqui em Porto Velho, e está nos auxiliando como pastor da Congregação Presbiteriana de Eldorado. Homem de convicções firmes e transparente em suas opiniões. Um servo que veio somar conosco.

À direita está o Rev. Rogério Bernini Jr, saiu do Seminário Presbiteriano Brasil Central - extensão JiParaná, e foi convidado para ser pastor auxiliar na IP Central de Porto Velho. Um exímio músico e apreciador da boa liturgia reformada. O seu amadurecimento tem nos surpreendido e muito nos alegrado, e a sua dedicação pastoral é notória em nossa igreja.

Louvo ao nosso Senhor que nos uniu neste valoroso trabalho que é o ministério pastoral. Tenho vivido dias de alegria e edificação de ter colegas, pastores e verdadeiros amigos.

P.S.* Este do meio aí sou eu.

11 setembro 2009

Tradição e calvinistas

A palavra tradição procede do latim traditione que sob influência do vocábulo grego parádosis significa “entregar” ou “transmitir”. O Novo Testamento quando se refere à tradição cristã usando o verbo grego paradidômi consiste basicamente da “fé que uma vez por todas foi entregue aos santos” (Jd vs.3). O substantivo é usado pelo menos com significados diferentes:[1]
1. Ao reprovado o ensino dos mestres da Lei (Mt 15:2-3, 6; Mc 7:3, 5, 8-9, 13; Gl 1:14). Cristo julgava distorções, ou até mesmo contradições a interpretação que os rabinos faziam do Antigo Testamento.
2. Indica a permanente instrução dos apóstolos quanto à autoridade e ordem no culto (1 Co 11:2), a participação da Ceia do Senhor (1 Co 11:23), a doutrina em geral (2 Ts 2:15), em questões de conduta diária (2 Ts 3:6).


Repetir e transmitir são atos que exigem que o conteúdo esteja intacto, ou seja, que não seja uma mensagem mutatis mutantis. Por isso, as igrejas reformadas sustentam o lema ecclesia reformata semper reformanda est mas, não fides reformata et semper reformanda est. Alterar o conteúdo do ensino bíblico não é reforma, mas corrupção doutrinária (Veja a Confissão de Fé de Westminster I.6 e 10).

A tradição precisa ser ouvida e consultada como contexto e não como conteúdo. Noutro lugar G.J. Spykman defende a importância da tradição comentando que ela “é o canal histórico-cultural por meio do que os teólogos cristãos respondem aos requerimentos da Palavra de Deus em seus empreendimentos dogmáticos.”[2]O contexto histórico possibilita o nosso entendimento de como a doutrina teve progresso e como foi usada no decorrer dos séculos. Segundo a concepção reformada da tradição ela deve preservar a fidelidade aos ensinamentos da Escritura Sagrada contra qualquer inovação que corrompa ou distorça.


Notas:
[1] Walter Bauer, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature (Chicago, The University of Chicago Press, 2ªed., 1979), págs. 615-616.
[2] Gordon J. Spykman, Teologia Reformacional - un nuevo paradigma para hacer la Dogmatica(Grand Rapids, TELL, 1996), pág. 5.

09 setembro 2009

Carta aberta: línguas e profecias hoje?

Amados irmãos em Cristo

Como presbiterianos subscrevemos os Padrões de Westminster. Todos os membros ao serem recebidos, ou os oficiais da nossa denominação ao serem ordenados ou instalados em seu exercício de mandato, é requerido em seus votos de ordenação crêr na suficiência das Escrituras Sagradas [sola scriptura - única regra de fé e prática, ou seja, não submissão a tradição, à leis humanas ou qualquer espécie de novas revelações] e, subscrever os documentos doutrinários de Westminster. Todos verbalmente se comprometem, e publicamente assumem o solene compromisso de ensinar, defender e viver a nossa herança Reformada. Todavia, a ética é evidenciada com incoerência. Não poucos desdizem na prática, quando não pelo ensino cousas contrárias ao que cremos e confessamos. Isto é triste, vergonhoso e motivo de confusão em nosso arraial presbiteriano. Por isso, não vejo verdadeira paz neste contexto disseminado em várias regiões de nossa pátria.

Uma doutrina claramente ensinada na Confissão de Fé de Westminster é a da cessação dos "dons revelacionais", isto é, os dons de línguas e profecias. Cremos que os dons de serviço destinam-se à edificação da Igreja, e são para hoje. Todavia, os meios revelacionais cessaram com o fechamento do cânon das Escrituras. Ao consumar a escrita do livro de Apocalipse, Deus cessa a continuidade da comunicação da revelação verbal que iniciou a escrever em Moisés (Ap 22:18-19). Ele não mais concede outras revelações além daquela que se encontra na Escritura. Os meios revelacionais alcançam o seu propósito e findam a sua utilidade. Leiamos o que declara a Confissão de Fé de Westminster no capítulo I, no parágrafo 1 que

Ainda que a luz da natureza e as obras da criação e da providência de tal modo manifestem a bondade, a sabedoria e o poder de Deus, que os homens ficam inescusáveis, contudo não são suficientes para dar aquele conhecimento de Deus e da sua vontade necessário para a salvação; por isso foi o Senhor servido, em diversos tempos e diferentes modos, revelar-se e declarar à sua Igreja aquela sua vontade; e depois, para melhor preservação e propagação da verdade, para o mais seguro estabelecimento e conforto da Igreja contra a corrupção da carne e malícia de Satanás e do mundo, foi igualmente servido fazê-la escrever toda. Isto torna indispensável a Escritura Sagrada, tendo cessado aqueles antigos modos de Deus revelar a sua vontade ao seu povo (Ref. - Sl 19:1-4; Rm 1:32 e 2:1, e 1:19-20 e 2:14-15; 1 Co 1:21 e 2:13-14; Hb 1:1-2; Lc 1:3-4; Rm 15:4; Mt 4:4, 7, 10; Is 8:20; 1 Tm 3:I5; 2 Pe 1:19).


Temos a Escritura Sagrada e ela é suficiente para nos revelar, salvar, orientar, determinar, corrigir, educar segundo o santo propósito de Deus (2 Tm 3:16-17). Não necessitamos de nada além das Escrituras. Também não podemos submeter a nossa consciência a nada que além, contrário ou intencionando substituir a Escritura Sagrada, como inequívoca PALAVRA DE DEUS. Somente a Escritura é a Palavra de Deus. Isto significa sola scriptura!

Negar a obra do Espírito Santo é algo perigoso, mas atribuir à Ele o que não Lhe pertence é gravíssimo, porque é colocar mentira na boca do Senhor! (Jr 23:9-40; Ez 13:1-16; Gl 1:6-9). Por isso, temo e tremo agir contra o Senhor Deus. É fato que o falso não pode anular o que é verdadeiro, mas, o falso mesmo tendo aparência de verdade continuará sempre sendo mentira (2 Ts 2:7-12).

Esta carta não se dirige a um destinatário especifíco. Ela é uma carta aberta. Mas tenciona somente recordar o nosso compromisso, identidade e fidelidade aos votos realizados em nossa aceitação como membros, e duplamente por aqueles que se tornaram oficiais da IPB. Assim, não desejo provocar contenda, mas esclarecimento, paz e edificação contra toda confusão que seja causada em nosso arraial presbiteriano. Espero não errar em lembrar aos irmãos no que cremos.

Por isso, declaro sola scriptura, sola gratia, sola fide, solo christos, soli Deo gloria, aqui permaneço e firmo a minha consciência, levando-a cativa sob a autoridade exclusiva da Escritura Sagrada, a única revelação da Palavra de Deus preservada para o nosso conforto eterno.

Seu servo, em Cristo o Senhor da Igreja.
Rev. Ewerton B. Tokashiki,
Pastor da Igreja Presbiteriana de Porto Velho - Porto Velho/RO.
Professor de Teologia Sistemática do SPBC - Extensão Ji Paraná/RO.

12 junho 2009

Bispos ou presbíteros?

Há alguma diferença quantos aos termos “bispo” e “presbítero”? O Novo Testamento ou os pais da Igreja nos primeiros séculos do Cristianismo faziam uma distinção hierárquica, ou entendiam estes dois termos como sendo intercambiáveis? Há evidência bíblica e histórica apontam para o fato de que estas palavras são consideradas sinônimas, apresentando diferente nuança de função, mas não em grau de autoridade. O historiador T.M. Lindsay observa que o termo bispo “não é, durante o primeiro século, o termo técnico de um oficial; antes, ela é a palavra que descreve o ofício, isto é, o que o ancião realiza.”[1]

Clemente de Roma menciona os termos gregos episcopos, geralmente traduzido por bispo ou supervisor, e presbyteros, como sendo sinônimos. Ele afirma que "os nossos apóstolos conheciam, da parte do Senhor Jesus Cristo, que haveria disputas por causa da função episcopal. Por esse motivo, prevendo exatamente o futuro, instituíram aqueles de quem falávamos antes, e ordenaram que, por ocasião da morte desses, outros homens provados lhes sucedessem no ministério. Os que foram estabelecidos por eles ou por outros homens eminentes, com a aprovação de toda a igreja, e que serviram irrepreensivelmente ao rebanho de Cristo, com humildade, calma e dignidade, e que durante muito tempo receberam o testemunho de todos, achamos que não é justo demiti-los de suas funções. Para nós, não seria culpa leve se exonerássemos do episcopado aqueles que apresentaram os dons de maneira irrepreensível e santa. Felizes os presbíteros que percorreram seu caminho e cuja vida terminou de modo fecundo e perfeito. Eles não precisam temer que alguém os afaste do lugar que lhes foi designado."[2]

O mais antigo manual de catecúmenos, conhecido como Didaquê, instrui que “escolham para vocês bispos e diáconos dignos do Senhor. Eles devem ser homens mansos, desprendidos do dinheiro, verazes e provados, porque eles também exercem para vocês o ministério de profetas e mestres.”[3] Novamente, usa-se o título de bispo em lugar de presbíteros para se referir ao mesmo oficial. Não é ao sistema episcopal que os autores da Didaquê fazem menção, pois estes bispos eram eleitos pela igreja, e não por um colégio episcopal. Podemos aceitar a conclusão do anglicano J.B. Lightfoot ao reconhecer que “na linguagem do Novo Testamento o mesmo ofício na Igreja é chamada indistintamente tanto por ‘bispo’ (episkopos) e ‘ancião’ ou ‘presbítero’ (presbyteros).”[4] É possível comparar as evidências em algumas passagens bíblicas (At 14:23; 20:17, 28; Fp 1:1; Tt 1:5-7; 1 Pe 1-2).

Notas:
[1] T.M. Lindsay, The Church and Ministry in the Early Centuries (London, Hodder and Stoughton Publishing, 1903), p. 155.
[2] Clemente de Roma in: Padres Apostólicos (São Paulo, Ed. Paulus, 1995), vol. 1, p. 54-55.
[3] Didaquê in: Padres Apostólicos (São Paulo, Ed. Paulus, 1995), vol. 1, p. 358.
[4] J.B. Lightfoot, Saint Paul’s Epistle to the Philippians (Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1956), p. 95.

21 maio 2009

A Confissão de Fé da Guanabara

Escrita por Jean de Bourdel, Matthieu Verneuil, Pierre Bourdon e André la Fon

No dia 7 de março de 1557 chegou a Guanabara um grupo de huguenotes (calvinistas franceses) com o propósito de ajudar a estabelecer um refúgio para os calvinistas perseguidos na França. Perseguidos também na Guanabara em virtude de sua fé reformada, alguns conseguiram escapar; outros, foram condenados à morte por Villegaignon, foram enforcados e seus corpos atirados de um despenhadeiro, em 1558. Antes de morrer, entretanto, foram obrigados a professar por escrito sua fé, no prazo de doze horas, respondendo uma série de perguntas que lhes foram entregues. Eles assim o fizeram, e escreveram a primeira confissão de fé na América (ver Apêndice 2), sabendo que com ela estavam assinando a própria sentença de morte. [1]

TEXTO DA CONFISSÃO [2]
Segundo a doutrina de S. Pedro Apóstolo, em sua primeira epístola, todos os cristãos devem estar sempre prontos para dar razão da esperança que neles há, e isso com toda a doçura e benignidade, nós abaixo assinados, Senhor de Villegaignon, unanimemente (segundo a medida de graça que o Senhor nos tem concedido) damos razão, a cada ponto, como nos haveis apontado e ordenado, e começando no primeiro artigo:

I. Cremos em um só Deus, imortal, invisível, criador do céu e da terra, e de todas as coisas, tanto visíveis como invisíveis, o qual é distinto em três pessoas: o Pai, o Filho e o Santo Espírito, que não constituem senão uma mesma substância em essência eterna e uma mesma vontade; o Pai, fonte e começo de todo o bem; o Filho, eternamente gerado do Pai, o qual, cumprida a plenitude do tempo, se manifestou em carne ao mundo, sendo concebido do Santo Espírito, nasceu da virgem Maria, feito sob a lei para resgatar os que sob ela estavam, a fim de que recebêssemos a adoção de próprios filhos; o Santo Espírito, procedente do Pai e do Filho, mestre de toda a verdade, falando pela boca dos profetas, sugerindo as coisas que foram ditas por nosso Senhor Jesus Cristo aos apóstolos. Este é o único Consolador em aflição, dando constância e perseverança em todo bem. Cremos que é mister somente adorar e perfeitamente amar, rogar e invocar a majestade de Deus em fé ou particularmente.

II. Adorando nosso Senhor Jesus Cristo, não separamos uma natureza da outra, confessando as duas naturezas, a saber, divina e humana nele inseparáveis.

III. Cremos, quanto ao Filho de Deus e ao Santo Espírito, o que a Palavra de Deus e a doutrina apostólica, e o símbolo,[3] nos ensinam.

IV. Cremos que nosso Senhor Jesus Cristo virá julgar os vivos e os mortos, em forma visível e humana como subiu ao céu, executando tal juízo na forma em que nos predisse no capítulo vinte e cinco de Mateus, tendo todo o poder de julgar, a Ele dado pelo Pai, sendo homem. E, quanto ao que dizemos em nossas orações, que o Pai aparecerá enfim na pessoa do Filho, entendemos por isso que o poder do Pai, dado ao Filho, será manifestado no dito juízo, não todavia que queiramos confundir as pessoas, sabendo que elas são realmente distintas uma da outra.

V. Cremos que no santíssimo sacramento da ceia, com as figuras corporais do pão e do vinho, as almas fiéis são realmente e de fato alimentadas com a própria substância do nosso Senhor Jesus, como nossos corpos são alimentados de alimentos, e assim não entendemos dizer que o pão e o vinho sejam transformados ou transubstanciados no seu corpo, porque o pão continua em sua natureza e substância, semelhantemente ao vinho, e não há mudança ou alteração. Distinguimos todavia este pão e vinho do outro pão que é dedicado ao uso comum, sendo que este nos é um sinal sacramental, sob o qual a verdade é infalivelmente recebida. Ora, esta recepção não se faz senão por meio da fé e nela não convém imaginar nada de carnal, nem preparar os dentes para comer, como santo Agostinho nos ensina, dizendo: “Porque preparas tu os dentes e o ventre? Crê, e tu o comeste.” O sinal, pois, nem nos dá a verdade, nem a coisa significada; mas Nosso Senhor Jesus Cristo, por seu poder, virtude e bondade, alimenta e preserva nossas almas, e as faz participantes da sua carne, e de seu sangue, e de todos os seus benefícios. Vejamos a interpretação das palavras de Jesus Cristo: “Este pão é meu corpo.” Tertuliano, no livro quarto contra Marcião, explica estas palavras assim: “este é o sinal e a figura do meu corpo.” Santo Agostinho diz: “O Senhor não evitou dizer: — Este é o meu corpo, quando dava apenas o sinal de seu corpo.” Portanto, (como é ordenado no primeiro cânon do Concílio de Nicéia), neste santo sacramento não devemos imaginar nada de carnal e nem nos distrair no pão e no vinho, que nos são neles propostos por sinais, mas levantar nossos espíritos ao céu para contemplar pela fé o Filho de Deus, nosso Senhor Jesus, sentado à destra de Deus, seu Pai. Neste sentido podíamos jurar o artigo da Ascensão, com muitas outras sentenças de Santo Agostinho, que omitimos, temendo ser longas.

VI. Cremos que, se fosse necessário pôr água no vinho, os evangelistas e São Paulo não teriam omitido uma coisa de tão grande conseqüência. E, quanto ao que os doutores antigos têm observado (fundamen¬tando-se sobre o sangue misturado com água que saiu do lado de Jesus Cristo, desde que tal observância não tem fundamento na Palavra de Deus, visto mesmo que depois da instituição da Santa Ceia isso aconteceu), nós não podemos hoje admitir necessariamente.

VII. Cremos que não há outra consagração senão a que se faz pelo ministro, quando se celebra a ceia, recitando o ministro ao povo, em linguagem conhecida, a instituição desta ceia literalmente, segundo a forma que nosso Senhor Jesus Cristo nos prescreveu, admoestando o povo quanto à morte e paixão do nosso Senhor. E mesmo, como diz santo Agostinho, a consagração é a palavra de fé que é pregada e recebida em fé. Pelo que, segue-se que as palavras secretamente pronunciadas sobre os sinais não podem ser a consagração como aparece da instituição que nosso Senhor Jesus Cristo deixou aos seus apóstolos, dirigindo suas palavras aos seus discípulos presentes, aos quais ordenou tomar e comer.

VIII. O santo sacramento da ceia não é alimento para o corpo como para as almas (porque nós não imaginamos nada de carnal, como declaramos no artigo quinto) recebendo-o por fé, a qual não é carnal.

IX. Cremos que o batismo é sacramento de penitência, e como uma entrada na igreja de Deus, para sermos incorporados em Jesus Cristo. Representa-nos a remissão de nossos pecados passados e futuros, a qual é adquirida plenamente, só pela morte de nosso Senhor Jesus. De mais, a mortificação de nossa carne aí nos é representada, e a lavagem, representada pela água lançada sobre a criança, é sinal e selo do sangue de nosso Senhor Jesus, que é a verdadeira purificação de nossas almas. A sua instituição nos é ensinada na Palavra de Deus, a qual os santos apóstolos observaram, usando de água em nome do Pai, do Filho e do Santo Espírito. Quanto aos exorcismos, abjurações de Satanás, crisma, saliva e sal, nós os registramos como tradições dos homens, contentando-nos só com a forma e instituição deixada por nosso Senhor Jesus.

X. Quanto ao livre arbítrio, cremos que, se o primeiro homem, criado à imagem de Deus, teve liberdade e vontade, tanto para bem como para mal, só ele conheceu o que era livre arbítrio, estando em sua integridade. Ora, ele nem apenas guardou este dom de Deus, assim como dele foi privado por seu pecado, e todos os que descendem dele, de sorte que nenhum da semente de Adão tem uma centelha do bem. Por esta causa, diz São Paulo, o homem natural não entende as coisas que são de Deus. E Oséias clama aos filho de Israel: “Tua perdição é de ti, ó Israel.” Ora isto entendemos do homem que não é regenerado pelo Santo Espírito. Quanto ao homem cristão, batizado no sangue de Jesus Cristo, o qual caminha em novidade de vida, nosso Senhor Jesus Cristo restitui nele o livre arbítrio, e reforma a vontade para todas as boas obras, não todavia em perfeição, porque a execução de boa vontade não está em seu poder, mas vem de Deus, como amplamente este santo apóstolo declara, no sétimo capítulo aos Romanos, dizendo: “Tenho o querer, mas em mim não acho o realizar.” O homem predestinado para a vida eterna, embora peque por fragilidade humana, todavia não pode cair em impenitência. A este propósito, S. João diz que ele não peca, porque a eleição permanece nele.

XI. Cremos que pertence só à Palavra de Deus perdoar os pecados, da qual, como diz santo Ambrósio, o homem é apenas o ministro; portanto, se ele condena ou absolve, não é ele, mas a Palavra de Deus que ele anuncia. Santo Agostinho, neste lugar diz que não é pelo mérito dos homens que os pecados são perdoados, mas pela virtude do Santo Espírito. Porque o Senhor dissera aos seus apóstolos: “recebei o Santo Espírito;” depois acrescenta: “Se perdoardes a alguém os seus pecados,” etc.
Cipriano diz que o servo não pode perdoar a ofensa contra o Senhor.

XII. Quanto à imposição das mãos, essa serviu em seu tempo, e não há necessidade de conservá-la agora, porque pela imposição das mãos não se pode dar o Santo Espírito, porquanto isto só a Deus pertence. No tocante à ordem eclesiástica, cremos no que S. Paulo dela escreveu na primeira epístola a Timóteo, e em outros lugares.
XIII. A separação entre o homem e a mulher legitimamente unidos por casamento não se pode fazer senão por causa de adultério, como nosso Senhor ensina (Mateus 19:5). E não somente se pode fazer a separação por essa causa, mas também, bem examinada a causa perante o magistrado, a parte não culpada, se não podendo conter-se, deve casar-se, como São Ambrósio diz sobre o capítulo sete da Primeira Epístola aos Coríntios. O magistrado, todavia, deve nisso proceder com madureza de conselho.
XIV. São Paulo, ensinando que o bispo deve ser marido de uma só mulher, não diz que não lhe seja lícito tornar a casar, mas o santo apóstolo condena a bigamia a que os homens daqueles tempos eram muito afeitos; todavia, nisso deixamos o julgamento aos mais versados nas Santas Escrituras, não se fundando a nossa fé sobre esse ponto.

XV. Não é lícito votar a Deus, senão o que ele aprova. Ora, é assim que os votos monásticos só tendem à corrupção do verdadeiro serviço de Deus. É também grande temeridade e presunção do homem fazer votos além da medida de sua vocação, visto que a santa Escritura nos ensina que a continência é um dom especial (Mateus 15 e 1 Coríntios 7). Portanto, segue-se que os que se impõem esta necessidade, renunciando ao matrimônio toda a sua vida, não podem ser desculpados de extrema temeridade e confiança excessiva e insolente em si mesmos. E, por este meio tentam a Deus, visto que o dom da continência é em alguns apenas temporal, e o que o teve por algum tempo não o terá pelo resto da vida. Por isso, pois, os monges, padres e outros tais que se obrigam e prometem viver em castidade, tentam contra Deus, por isso que não está neles o cumprir o que prometem. São Cipriano, no capítulo onze, diz assim: “Se as virgens se dedicam de boa vontade a Cristo, perseverem em castidade sem defeito; sendo assim fortes e constantes, esperem o galardão preparado para a sua virgindade; se não querem ou não podem perseverar nos votos, é melhor que se casem do que serem precipitadas no fogo da lascívia por seus prazeres e delícias.” Quanto à passagem do apóstolo S. Paulo, é verdade que as viúvas tomadas para servir à igreja, se submetiam a não mais casar, enquanto estivessem sujeitas ao dito cargo, não que por isso se lhes reputasse ou atribuísse alguma santidade, mas porque não podiam bem desempenhar os deveres, sendo casadas; e, querendo casar, renunciassem à vocação para a qual Deus as tinha chamado, contudo que cumprissem as promessas feitas na igreja, sem violar a promessa feita no batismo, na qual está contido este ponto: “Que cada um deve servir a Deus na vocação em que foi chamado.” As viúvas, pois, não faziam voto de continência, senão porque o casamento não convinha ao ofício para que se apresentavam, e não tinha outra consideração que cumpri-lo. Não eram tão constrangidas que não lhes fosse antes permitido casar que se abrasar e cair em alguma infâmia ou desonestidade. Mas, para evitar tal inconveniência, o apóstolo São Paulo, no capítulo citado, proíbe que sejam recebidas para fazer tais votos sem que tenham a idade de sessenta anos, que é uma idade normalmente fora da incontinência. Acrescenta que os eleitos só devem ter sido casados uma vez, a fim de que por essa forma, tenham já uma aprovação de continência.

XVI. Cremos que Jesus Cristo é o nosso único Mediador, intercessor e advogado, pelo qual temos acesso ao Pai, e que, justificados no seu sangue, seremos livres da morte, e por ele já reconciliados teremos plena vitória contra a morte.
Quanto aos santos mortos, dizemos que desejam a nossa salvação e o cumprimento do Reino de Deus, e que o número dos eleitos se complete; todavia, não nos devemos dirigir a eles como intercessores para obterem alguma coisa, porque desobedeceríamos o mandamento de Deus. Quanto a nós, ainda vivos, enquanto estamos unidos como membros de um corpo, devemos orar uns pelos outros, como nos ensinam muitas passagens das Santas Escrituras.

XVII. Quanto aos mortos, São Paulo, na Primeira Epístola aos Tessalonicenses, no capítulo quatro, nos proíbe entristecer-nos por eles, porque isto convém aos pagãos, que não têm esperança alguma de ressuscitar. O apóstolo não manda e nem ensina orar por eles, o que não teria esquecido se fosse conveniente. S. Agostinho, sobre o Salmo 48, diz que os espíritos dos mortos recebem conforme o que tiverem feito durante a vida; que se nada fizeram, estando vivos, nada recebem, estando mortos.

Esta é a resposta que damos aos artigos por vós enviados, segundo a medida e porção da fé, que Deus nos deu, suplicando que lhe praza fazer que em nós não seja morta, antes produza frutos dignos de seus filhos, e assim, fazendo-nos crescer e perseverar nela, lhe rendamos graças e louvores para sempre. Assim seja.

Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil, Pierre Bourdon, André la Fon.

--------------------------------------------------------------------------------
* Extraído de Paulo R. B. Anglada, Sola Scriptura: A Doutrina Reformada das Escrituras (São Paulo: Editora Os Puritanos, 1998), 190-197.

[1] O relato da história dos mártires huguenotes no Brasil, bem como a Confissão de Fé que escreveram, encontra-se no livro A Tragédia da Guanabara: História dos Protomartyres do Christianismo no Brasil, traduzido por Domingos Ribeiro; de um capítulo intitulado On the Church of the Believers in the Country of Brazil, part of Austral America: Its Affliction and Dispersion, do livro de Jean Crespin: l’ Histoire des Martyres, originalmente publicado em 1564. Este livro, por sua vez, é uma tradução de um pequeno livro: Histoire des choses mémorables survenues en le terre de Brésil, partie de l’ Amérique australe, sous le governement de N. de Villegaignon, depuis l’ an 1558, publicado em 1561, cuja autoria é atribuída a Jean Lery, um dos huguenotes que vieram para o Brasil em 1557, o qual também publicou outro livro sobre sua viagem ao Brasil: Histoire d’an voyage fait en la terre du Brésil.

[2] O texto foi transcrito de Jean Crespin, A Tragédia da Guanabara; História dos Protomartyres do Christianismo no Brasil, 65-71. O português antigo de Domingos Ribeiro (o tradutor) foi atualizado.

[3] Uma referência ao Credo Apostólico.

20 maio 2009

O caráter irrepreensível do presbítero

O presbítero é um episcopos, isto é, um supervisor do rebanho de Deus. Ele tem a responsabilidade de supervisionar interna e externamente a comunidade que está sob os seus cuidados. A sua supervisão tem uma natureza interna porque ele precisa olhar entre as ovelhas como elas estão, e como se comportam, e se estão saudáveis espiritual, moral e doutrinariamente. Ele deve se informar se as famílias sob o seu pastoreio estão vivendo de acordo com a Palavra de Deus. Ao mesmo tempo, ele tem o dever de supervisionar externamente contra os lobos, os falsos mestres e alertar o rebanho contra todo falso profeta, bem como os ventos de doutrina que se aproximam do seu redil. Para exercer o seu chamado, o presbítero necessita de autoridade, senão, as ovelhas sob o seu cuidado não lhe darão ouvidos e correrão o risco de dispersar ou de serem dissipadas pelo perigo externo. Por não terem uma referência saudável, elas tenderão ao mundanismo.

Esta sublime tarefa exige que o supervisor seja de caráter irrepreensível, ele precisa ser livre de acusações dos seus adversários. A palavra no grego é anepílémptos que significa não exposto ao ataque, ou seja, ele não pode ser merecedor de censura. O presbítero não pode armar os seus inimigos com argumentos que venham usar contra ele. Como supervisor, ele deve primeiramente ser vigilante com os seus impulsos pecaminosos, para que não seja reprovado, no que precisa ser referência.

Isto não significa que ele seja perfeito, ou infalível, ou que não peque mais. Ele ainda luta contra a sua velha natureza, e é consciente de suas limitações. Mas o que está em evidência em sua vida é o seu compromisso com Cristo, a sua maturidade, uma vida de transformação, o seu amor pelo Redentor está em relevo. Ele é padrão para os jovens e novos convertidos, de modo que todo o rebanho o tenha como referência ética e firmeza doutrinária. A sua vida não pode de modo algum ser caracterizada pela necessidade de contínuas repreensões, de modo que todos percebam que ele não pode ser exemplo, nem representante do rebanho de Cristo. Se nele não está em evidência as virtudes de Cristo, então, ele não pode conduzir, nem supervisionar as ovelhas do Senhor, pois o seu comportamento é vazio de autoridade para exortar, confrontar e liderar. Em outras palavras, ele simplesmente não tem autoridade.

19 maio 2009

Implicações do Livre Arbítrio

De acordo com e esquema do livre-arbítrio, o Senhor tem boas intenções, mas precisa aguardar como um servo, a iniciativa de sua criatura, para saber qual é a intenção dela. Deus quer o bem e o faria, mas não pode, por causa de um homem indisposto, o qual não deseja que sejam realizadas as boas coisas de Deus.

O que os senhores fazem, senão destronar o Eterno e colocar em seu lugar a criatura caída, o homem? Pois, de acordo com essa teoria, o homem aprova, e o que ele aprova torna-se destino. Tem de existir um destino em algum lugar; ou é Deus ou é o homem quem decide. Se for Deus Quem decide, então Jeová se assenta soberano em seu trono de glória, e todas as hostes Lhe obedecem, e o mundo está seguro. Em caso contrário, os senhores colocam o homem em posição de dizer: “eu quero” ou “eu não quero”. “Se eu quiser, entro no céu; se eu quiser, desprezarei a graça de Deus. Se quiser, conquistarei o Espírito Santo, pois sou mais sou mais forte do que Deus e mais forte que a onipotência. Se eu decidir, tornarei ineficaz o sangue de Cristo, pois sou mais poderoso que o sangue, o sangue do próprio filho de Deus. Embora Deus estipule seu propósito, me rirei desse propósito; será o meu propósito que fará o dEle realizar-se ou não” Senhores, se isso não é ateísmo é idolatria; é colocar o homem onde Deus deveria estar.

Eu me retraio, com solene temor e horror diante dessa doutrina que faz a maior das obras de Deus – a salvação do homem - depender da vontade da criatura, para que se realize ou não. Posso e hei de me gloria neste texto da palavra, em seu mais amplo sentido: “Assim, pois, não depende de quem quer ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericórdia”(Rm 9.16).

Charles H. Spurgeon