22 outubro 2024

A Igreja primitiva guardava o sétimo dia da semana?

 por Ewerton B. Tokashiki

 

A igreja primitiva guardava o sétimo dia?

 Há abundantes provas de que a Igreja sempre guardou o primeiro dia da semana. No entanto, desde o movimento sabatista do sétimo dia, é proposta uma nova interpretação. Ellen G. White é conhecida como sendo uma das principais expoentes deste sabatismo moderno. Em seu mais lido livro O Grande Conflito afirma que

o imperador Constantino promulgou um decreto fazendo do domingo uma festividade pública em todo o Império Romano (ver Apêndice). O dia do sol era reverenciado por seus súditos pagãos e honrado pelos cristãos. Foi instado a fazer isto pelos bispos da igreja. Inspirados pela sede de poder, perceberam que, se o mesmo dia fosse observado tanto por cristãos quanto por pagãos, isto resultaria em maior poder e glória para a igreja. Mas, conquanto muitos cristãos tementes a Deus fossem, gradualmente, levados a considerar o domingo como possuindo certo grau de santidade, ainda mantinham o verdadeiro sábado e o observavam em obediência ao quarto mandamento.[1]

 Em conversa com sabatistas sempre ouvi que o imperador romano Constantino foi quem mudou a guarda do sétimo dia para o domingo, mas não sabia a fonte nem de onde procedia essa ideia, até que ganhei um exemplar de O Grande Conflito e pude lê-lo.

Ellen White simplesmente menciona um decreto promulgado por Constantino sem citar a fonte. Talvez, ela não soubesse que história se escreve com documentos. Entretanto, ela induz o leitor a crer que este texto foi responsável pela mudança da observância do descanso do sábado para o domingo. Conforme a sua interpretação histórica, a senhora White alega que interesses políticos e até evangelísticos fizeram com que os líderes cristãos contemporâneos do imperador romano, contribuíssem para a transição da guarda do sétimo para o primeiro dia da semana. Embora a autora não forneça nenhuma fonte da sua alegação, recentemente os editores do seu livro adicionaram o suposto documento. Contudo, a bibliografia que mencionada volta-se contra eles mesmos.[2] O historiador Albert H. Newman argumenta que a suposta conversão de Constantino [cerca de 310 d.C.] favorecia socialmente os cristãos no seu império. O Cristianismo não estava sofrendo mutações para adaptar-se aos romanos, mas o império pagão estava se moldando ao costumes cristãos.[3] Newman menciona uma série de favores que o imperador concedia aos cristãos, por exemplo, como os contidos no Edito de Milão (313 d.C.),[4] a isenção da liderança cristã do serviço militar e de impostos públicos (313 d.C.),[5] aboliu práticas e festividades pagãs que fossem públicas (315 d.C.), concedeu o direito privado às igrejas locais (321 d.C.) e tornou um dever civil o descanso no domingo, conforme era o costume cristão (321 d.C.).[6] Assim, o Dies Domini celebrado no primeiro dia da semana passou a ser descanso estatal.[7] O historiador Philip Schaff esclarece que Constantino

é o fundador, de no mínimo, da observância civil do Domingo, em que somente deste modo a sua observância religiosa na igreja poderia se tornar universal e propriamente assegurada. No ano de 321, ele editou uma lei proibindo o trabalho manual nas cidades e todas as transações judiciais, e posteriormente também o exercício militar no Domingo.[8]

 Em outras palavras, o domingo não se tornou obrigatoriamente um dia de descanso para os cristãos por causa da lei de Constantino. Mas, o decreto tornou um dever civil o que por séculos era o costume religioso dos cristãos.

Embora tenha origem metodista, Ellen G. White (1827-1915) recebeu influência do movimento milenarista e sabatista procedente de William Miller (1782-1849). Ele atraiu muitos seguidores ao profetizar a vinda de Cristo para o dia 22 de outubro de 1844, fato que nunca ocorreu. Após a família White ser excluída da Igreja Metodista, por divergência doutrinária, associaram-se ao grupo adventista, sendo que ela se tornou uma  das principais líderes e a profetiza do movimento.[9] Assim, durante um ministério de aproximadamente setenta anos, alegou ter recebido cerca de duas mil visões e sonhos proféticos.[10] Numa de suas profecias ela afirma que a guarda do domingo é a marca da besta.[11] Não perderei tempo analisando esse seu erro, visto que não há nada na Escritura Sagrada que autorize interpretar com este significado o texto de Ap 13, como o faz Ellen White e o movimento adventista.[12]

 

Evidências históricas anteriores à Constantino

É possível provar documentalmente que os cristãos guardaram o primeiro dia da semana desde os seus primórdios? Recordemos que o argumento de Ellen G. White é que o abandono do sétimo dia para a guarda do domingo somente ocorreu em 321 d.C. quando Constantino promulgou a “Lei Dominical”. Leiamos o que registraram os pais da Igreja, nos séculos que antecederam ao imperador romano, e a nossa conclusão poderá descansar sobre o firme alicerce da verdade.

 

Didaquê

O mais antigo manual de preparação de batismo e discipulado da Igreja Cristã (80-90 d.C.) conhecido por Didaquê instrui como deveria ser a vida comunitária. A orientação era de que “reúnam-se no dia do Senhor para partir o pão e agradecer, depois de ter confessado os pecados, para que o sacrifício de vocês seja puro.”[13] A expressão dia do Senhor, em grego kuriakê heméra e, em latim Dies Domini tornou-se o termo para indicar o primeiro dia da semana, a que chamamos de Domingo, o dia em que o Senhor ressuscitou!

 

Inácio de Antioquia

Inácio de Antioquia em sua Carta aos Magnésios (110 d.C.) declara que

aqueles que viviam na antiga ordem de coisas chegaram à nova esperança, e não observam mais o sábado, mas o dia do Senhor, em que a nossa vida se levantou por meio dele e da sua morte. Alguns negam isso, mas é por meio desse mistério que recebemos a fé e no qual perseveramos para ser discípulos de Jesus Cristo, nosso único Mestre.[14]

 A sistematização doutrinária exposta por Inácio aponta para a transição da antiga para a nova aliança. Esclarece que a ressurreição de Cristo é a causa da descontinuidade e acomodação para a nova ordem, e, isto inevitavelmente envolve a mudança do dia de descanso do sétimo para o primeiro dia da semana, inaugurando uma nova era.

 

A carta a Diogneto

O desconhecido escritor da Carta a Diogneto afirma que “não creio que tenhas necessidade de que eu te informe sobre o escrúpulo deles a respeito de certos alimentos, a sua superstição sobre os sábados...”.[15] Em 120 d.C., o contraste entre cristãos e judeus estava estabelecido, de modo que a guarda do sétimo dia era visto pelos cristãos como sendo uma superstição judaica e não como algo normativo para a Igreja.

 

A carta de Barnabé

Um importante documento histórico apresenta alguns traços do Cristianismo do século II. A “carta de Barnabé” não tem autoria certa, mas pelo seu conteúdo a crítica literária especializada em patrística é de consenso datá-la entre 134-135 d.C. O autor interpreta o significado do sábado. Ele declara que

vede como ele diz: não são os sábados atuais que me agradam, mas aquele que eu fiz e no qual, depois de ter levado todas as coisas ao repouso, farei o início do oitavo dia, isto é, o começo de outro mundo. Eis por que celebramos como festa alegre o oitavo dia, no qual Jesus ressuscitou dos mortos e, depois de se manifestar, subiu aos céus.[16]

 O seu conteúdo é abertamente contrário aos sistemas judaizantes. Nesta interpretação acerca do sábado, o autor contrasta entre o entendimento do Judaísmo e o Cristianismo.

 

Justino de Roma

O apologista cristão expressou que “no dia que se chama do sol, celebra-se uma reunião de todos os que moram nas cidades ou nos campos, e aí se leem, enquanto o tempo o permite, as memórias dos apóstolos ou os escritos dos profetas.” Em outro lugar ele continua

celebramos essa reunião geral no dia do sol, porque foi o primeiro dia em que Deus transformando as trevas e a matéria, fez o mundo e, também, o dia em que Jesus Cristo, nosso Salvador, ressuscitou dos mortos. Com efeito, sabe-se que o crucificaram um dia antes do dia de Saturno e no dia seguinte ao de Saturno, que é o dia do Sol, ele apareceu a seus apóstolos e discípulos, e nos ensinou essas mesmas doutrinas que estamos expondo para vosso exame.[17]

 A preocupação de Justino não era de firmar novas doutrinas, mas apenas de expor aos seus inquisitores o que era crença e prática tradicional dentro do Cristianismo. A sua I Apologia é datada em 155 d.C. apontando para a proximidade da era apostólica, um período de pureza na fé cristã.

 

Irineu de Lião

Enquanto Justino defendia os cristãos diante dos governadores pagãos, Irineu se dedicava a atacar as heresias que brotavam dentro do cristianismo. Irineu como apologista analisava os desvios doutrinários que haviam se infiltrado dentre os cristãos. Especificamente para o nosso propósito selecionamos os heréticos que se nomeavam ebionitas,[18] que segundo Irineu eles “praticam a circuncisão e continuam a observar a Lei e os costumes judaicos da vida e até adoram Jerusalém como se fosse a casa de Deus.”[19] Além de negar a salvação somente pela graça e a sua suficiência em Cristo, os ebionitas ensinavam uma redenção por meio da obediência da lei. Dentre os “costumes judaicos da vida” incluíam a prática de guardar o sétimo dia. Eles não entenderam a cessação dos aspectos civis da lei, nem o seu cumprimento cerimonial em Cristo, de modo que, persistiam em exigi-los como complemento da salvação, e nisto consistia a sua heresia. O livro Contra as Heresias é datado entre 180 à 190 d.C.

 

Tertuliano

No início do século III os cristãos demonstravam desprezo pelos costumes judaizantes. Em seu livro Da Idolatria, escrito entre os anos 200 e 210 d.C., Tertuliano declara que “não temos praticado os sabbath ou, outras festividades judaicas, do mesmo modo que evitamos as práticas pagãs.”[20] A sua afirmação esclarece que, tanto a idolatria quanto práticas judaicas, eram evitadas no mesmo pé de igualdade. Não há dúvidas de que o descanso cristão no fim do século III era marcadamente o domingo, da mesma forma que o exclusivismo cristão testemunhava contra pagãos e judeus!

 

As leis promulgadas por Constantino incentivavam os cidadãos a adotarem a religião cristã. O império romano estava se adaptando ao Cristianismo e não o contrário. Assim, o primeiro dia da semana tornou-se descanso civil, por ser tradicionalmente desde o primeiro século um dia reservado para o culto cristão. Evidências históricas apontam ações do imperador favoráveis ao Cristianismo. O testemunho da Igreja nos primeiros séculos não somente evitava a guarda do sétimo dia, mas desprezava-a como sendo superstição, idolatria e heresia judaizante! Não há no puro Cristianismo nenhum grupo, em nenhum lugar e período que celebrasse o sábado como o dia de descanso entre os cristãos.

  

NOTAS:

[1] Ellen G. White, O Grande Conflito (Tatuí, Casa Publicadora Brasileira, 7ª ed., 2004), p. 33.

[2] Os editores no indicado “Apêndice” mencionam a Lei Dominical de Constantino apontam para a obra do historiador reformado Philip Schaff, History of the Christian Church, vol. III, cap. 7. Todavia, na mesma seção [75], em seu primeiro parágrafo Schaff diz “a observância do domingo originou no tempo dos apóstolos, e as formas básicas da adoração pública, com o seu honrar, santificar e exultante influência em todas as terras cristãs”, p. 300. É estranho que a fonte que os editores citam para favorecer a tese de que a mudança era do período de Constantino (321 d.C.), inicie o texto com esta declaração!

[3] Outra obra citada no “Apêndice” como evidência a favor da tese da senhora White é o livro-texto do batista Albert H. Newman, A Manual of Church History. Mas, a discussão desenvolvida por Newman é contrária à tese sabatista!

[4] O édito encontra-se na sua íntegra transcrito na obra Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 2000), vol. 15, pp. 491-494.

[5] Veja esse outro edito em Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica, vol. 15, pp. 499-500.

[6] Kenneth S. Latourette, Historia del Cristianismo (El Paso, Casa Bautista Publicaciones, 1976), vol. 1, pp., 132-133.

[7] Albert H. Newman, A Manual of Church History (Philadelphia, The American Baptist Publication Society, 1953), vol. 1, pp. 306-307.

[8] Philip Schaff, History of the Christian Church (Albany, Ages Software, 1997), vol. 3, p. 301.

[9] No livro Crenças Fundamentais da Igreja Adventista do 7º Dia declara: “18. O Dom de Profecia - Um dos dons do Espírito Santo é a profecia. Este dom é uma característica da Igreja remanescente e foi manifestado no ministério de Ellen G. White. Como a mensageira do Senhor, seus escritos são uma contínua e autorizada fonte de verdade e proporcionam conforto, orientação, instrução e correção à Igreja. (Jl 2.28 e 29; At 2.14-21; Hb 1.1-3; Ap 12-17; 19.10)” extraído de http://www.adventistado7dia.org/iasd/crencas-fundamentais acessado em 7/10/2009.

[10] J.D. Douglas, White, Ellen Gould in: Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã (São Paulo, Edições Vida Nova, 1990), vol. 3, p. 646.

[11] J.K. Van Baalen, O Caos das Seitas (São Paulo, Imprensa Bíblica Regular, 1970), p. 155.

[12] Para maiores detalhes veja A.A. Hoekema, Adventismo del Septimo Dia (Kalamazoo, SLC, 1990).

[13] Didaquê in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 1995), vol. 1, p. 357.

[14] Inácio de Antioquia – Epístola aos Magnésios – Padres Apostólicos in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 1995), vol. 1, p. 94.

[15] Carta a Diogneto – Pais Apologistas in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 1995), vol. 2, p. 21.

[16] Carta de Barnabé – Pais Apologistas in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 1995), vol. 1, p. 311.

[17] Justino de Roma, I Apologia in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 2ª ed., 1995), vol. 3, pp. 83-84.

[18] Sabe-se que “eram judeus que aceitavam Jesus como o Messias ao mesmo tempo em que continuavam a afirmar que Paulo era um apóstata da lei, negavam o nascimento virginal, praticavam a circuncisão, observavam o Sábado, a Páscoa e outras festividades judaicas”. Robert G. Clouse, et. al., Dois reinos (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2003), p. 33.

[19] Irineu de Lião, Contra as Heresias in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 2ª ed., 1995), vol. 4, p. 108.

[20] Tertulian, On Idolatry in: Ante-Nicene Fathers, vol. 3, p. 70 citado em G.H. Waterman, Sabbath in: The Zondervan Pictorial Encyclopedia of the Bible (Grand Rapids, Zondervan Publishing, 1977), vol. 5, p. 187. Este pai da Igreja é conhecido por causa da sua ortodoxia trinitária. O termo “Trindade” foi cunhado por ele, e Philip Schaff concede-lhe o título de fundador do Cristianismo Latino.

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