A igreja de Corinto estava quebrando uma solene tradição cristã. No início de 1 Co 11 Paulo louva os coríntios por estarem fielmente guardando “as tradições assim como vo-las entreguei (vs. 2).” Porém, encontramos o contraste no verso 22 quando num triste e enfático tom Paulo declara que “certamente, não vos louvo”. Não era apenas uma questão de usos, ou costumes, mas uma cerimônia que celebrava a Aliança com o próprio Senhor Jesus, e necessitava ser preservada diligentemente. F.F. Bruce explica que a Ceia foi algo que Paulo “o recebeu ‘do Senhor’, no sentido de que toda tradição cristã tem sua fonte no Senhor crucificado e exaltado, assim como nele, ela é validada para sempre.”[1] A citação de Kistemaker pode reforçar esta idéia quando diz “Paulo revela que a comunhão também é o ato repetido de se receber e entregar o sacramento até que o Senhor volte (vs. 26).”[2]
A participação indigna consiste em desprezar a mútua comunhão que Cristo pelo seu sacrifício expiatório une a Sua Igreja. Os coríntios estavam numa reunião que deveria ter o propósito de celebrar a unidade do Corpo do Senhor.[3] Entretanto, usavam daquele momento para desprezar uns aos outros. Gordon Fee observa que “tal conduta é indigna da Mesa onde está sendo proclamada a morte de Jesus até que ele venha.”[4] F.F. Bruce sumariza todo o problema ao dizer que "quando eles partiam o pão que era o símbolo do corpo de Cristo, eles relembravam seu auto-sacrifício na cruz, mas também declaravam participar todos juntos do seu corpo coletivo. Por isso, se eles, na prática, negavam a unidade que professavam simbolicamente na Ceia, estavam comendo e bebendo de modo indigno, profanando, assim, o corpo e o sangue do Senhor; se eles comiam e bebiam 'sem discernir o corpo', estavam comendo e bebendo condenação para si mesmos. Comer e beber “sem discernir o corpo” significa simplesmente tomar o pão e o cálice, ao mesmo tempo que tratavam seus irmãos cristãos sem amor, em pensamento ou ação."[5]
Nos escritos paulinos o conceito de “estar em Cristo” não admite uma comunhão que não seja recíproca com os que são salvos por Ele. A ênfase na koinonia é perene nos escritos do apóstolo. F.F. Bruce observa que “a contribuição diferente que Paulo faz à doutrina eucarística está em sua ênfase na refeição como uma ocasião de comunhão (koinonia) e em sua interpretação da palavra pão, ‘este o meu corpo’, fazendo-a englobar o corpo coletivo de Cristo.”[6] Esta comunhão é apenas um reflexo da relação que o Corpo tem com a Cabeça (1 Co 10:16-17; Cl 1:18-20; Jo 17:20-26).
A santidade da comunhão deveria ser manifesta na Ceia da Comunhão. Herman Ridderbos comenta que "a palavra ‘indignamente’ a duras penas reproduz o sentido da expressão; porque se deve excluir toda idéia que insinue que por mérito pessoal, ou algum reclamo legal alguém possa fazer-se ‘digno’. A imagem é melhor se expressa em comer e beber de um modo inadequado, impróprio e incoerente com o seu significado. É uma questão de respeito pelo verdadeiro caráter do que aqui se chama o pão e o cálice do Senhor; isto é, respeito pela santidade desta comunhão (cf. 1 Co 10:21)."[7]
A participação da Ceia envolvia a responsabilidade de avaliar o que era aquele singular momento. As pessoas envolvidas deveriam ter consciência da seriedade daquela cerimônia. O que era representado nos elementos. A espécie de relacionamento que ela estabelecia tanto com Cristo, o seu anfitrião, quanto com os demais membros participantes da Igreja do Senhor. Kistemaker comenta que “os coríntios devem saber que não podem participar da Comunhão com o coração cheio de desprezo nem de frivolidade. Depois do devido auto-exame, devem se aproximar da mesa do Senhor com amor genuíno para com seu Senhor e para com o seu próximo.”[8] A ordenança ao exame pessoal é o remédio contra a indignidade. Não era para julgarem uns aos outros. Mas cada um a si mesmos sobre o modo de como estavam se portando na Ceia. Gordon Fee sugere que "provavelmente isto não seja tanto uma ameaça quanto um chamado a uma conduta verdadeiramente cristã na Ceia. Neste sentido exorta os coríntios a examinarem-se. Sua conduta desmente o evangelho ao qual asseguram compromisso. Antes de participar no banquete, devem examinar-se acerca de suas atitudes para com o corpo, como estão tratando aos demais, sendo que o próprio banquete é um lugar de proclamação do evangelho."[9]
Parte da celebração apropriada da Ceia envolvia o discernir o que significava o “corpo”(vs. 29). Algumas sugestões tem sido dadas para interpretar o que Paulo quis realmente dizer com “discernir o corpo”. Leon Morris afirma que se refere a “distinguir a ceia do Senhor de outras refeições, isto é, não considerá-la como qualquer outra refeição.”[10] Kistemaker segue o mesmo raciocínio dizendo que “os participantes devem fazer uma distinção clara entre o pão que eles comem na festa da fraternidade para o nutrimento do corpo físico e o pão da Ceia do Senhor em benefício do corpo de crentes.”[11] Uma segunda opinião sugerida por alguns intérpretes seria de que os coríntios não refletiam sobre o significado expiatório da Ceia. Isto é, que a ceia representa a satisfação vicária de Cristo oferecida ao Pai.
Todavia, uma terceira opinião parece merecer crédito: o conceito de que “corpo” refere-se à comunhão da Igreja de Cristo.[12] Algumas evidências favorecem esta última interpretação. Primeiro, é ilusório pensar que os versos 27 e 29 são paralelos. O verso 29 não contém no original a variante “indignamente”. Segundo, Paulo já havia fornecido uma definição do que ele entendia por “corpo” em 10:16-17. Neste caso o verso 27 seria uma das comuns digressões do apóstolo. Gordon Fee observa que “o ‘significado’ desse ‘corpo’ nesta Mesa é aqueles que comem do único pão que são eles mesmos o único corpo.”[13] Terceiro, deve ser observado a ênfase da palavra sinercomai (reunir, vs. 17, 18, 33, 34). Quarto, Paulo mantém na perícope seguinte (12:1-31) o uso do termo “corpo” para referir-se a unidade da Igreja, e não para o pão da Ceia. Então, “discernir o corpo” presume uma exigência de participar da Ceia entendendo a comunhão, uns com os outros, forjada na união com Cristo.
A declaração do apóstolo no verso 30 não se trata de uma ameaça, mas de uma constatação. Gordon Fee comenta que “isto não é uma exortação nem uma advertência; é uma reflexão ad hoc sobre a situação deles.”[14] Os que estão em Cristo não precisam temer o juízo condenatório (Rm 8:1). Todavia, estes tristes efeitos dos abusos cometidos pelos cristãos coríntios testemunhavam do seu comportamento impróprio uns com os outros na Ceia do Senhor. Na Bíblia de Estudo de Genebra encontra-se o seguinte comentário “visto que alguns dos crentes de Corinto estavam celebrando a Ceia de uma maneira que destruía a unidade que ela representa, Deus tinha imposto julgamentos contra a comunidade. O propósito de Deus ao julgar aqueles crentes, porém, era de impedi-los de serem ‘condenados com o mundo’ (vs.32).”[15]
Paulo considera necessário informar aos cristãos coríntios que o sofrimento estava relacionado com a observância inapropriada da Ceia do Senhor. A menção das enfermidades e morte é no seu sentido literal. Charles Hodge afirma que “visto que não há nada no contexto que indique que estes termos devem ser usados no sentido figurado de enfermidades morais e decadência espiritual, devem ser tomadas em seu sentido literal.”[16] G.G. Findlay sugere que “a mera coincidência de tais aflições com a profanação da Eucaristia poderia não justificar Paulo em fazer tal declaração; necessitaria estar consciente de alguma revelação específica para esta conseqüência.”[17] Paulo não justifica a fonte da sua afirmação. Não é possível saber se ele diagnostica a situação dos cristãos coríntios pela informação vinda alguém da própria igreja, ou por uma revelação especial vinda do próprio juiz, o Senhor Jesus.
Notas:
[1] F.F. Bruce, Paulo o Apóstolo da Graça (São Paulo, Shedd Publicações, 2003), p. 275.
[2] Simon Kistemaker, 1 Coríntios (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2004), p. 547.
[3] Raymond Bryan Brown, Comentário Bíblico Broadman Atos-1 Coríntios (Rio de Janeiro, JUERP, 1984), vol. 10. Brown adota uma definição mais ampla “a pessoa come de maneira indigna quando não age por amor, em favor da comunhão da igreja, e também quando é insensível para com a presença de Cristo, ingrata para com a sua morte sacrificial, e irresponsável quanto ao significado de sua redenção”p. 419.
[4] Gordon Fee, Primera Epistola a los Corintios (Bueno Aires, Nueva Creación, 1994), p. 634.
[5] F.F. Bruce, Paulo o Apóstolo da Graça, pp. 276-277.
[6] F.F. Bruce, Paulo o Apóstolo da Graça, pp. 276.
[7] Herman Ridderbos, El Pensamiento del Apóstol Pablo (Grand Rapids, Libros Desafío, 2000), pp. 552-553.
[8] Simon Kistemaker, 1 Coríntios, p. 558.
[9] Gordon Fee, Primera Epistola a los Corintios, p. 636.
[10] Leon Morris, 1 Coríntios Introdução e Comentário (São Paulo, Edições Vida Nova, 1991), p. 131.
[11] Simon Kistemaker, 1 Coríntios, pp. 559-560.
[12] Gordon Fee, Primera Epistola a los Corintios, p. 637.
[13] Gordon Fee, op.cit., p. 638.
[14] Gordon Fee, op.cit., p. 639.
[15] R.C. Sproul, ed., Bíblia de Estudo de Genebra (São Paulo, Ed. Cultura Cristã, 1999), p.1359.
[16] Charles Hodge, Comentário de 1 Coríntios (Edinburgh, El Estandarte de la Verdad, 1996), p. 215.
[17] G.G. Findlay, St. Paul’s First Epistle to the Corinthians in:The Expositor’s Greek Testament (Grand Rapids, Wm. B. Eerdmans Publishing Company, 1961), vol. 2, p. 883.
Rev. Ewerton B. Tokashiki
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