18 outubro 2013

Resenha: Trindade e Reino de Deus de Jürgen Moltmann

O livro é dividido em seis capítulos, apresentando uma clara divisão de subtemas na sua argumentação. O autor justifica que o subtítulo “Uma contribuição para a teologia” não se refere a uma inovação, mesmo porque falar de Trindade se faz com vínculo com a tradição. Entretanto, desde o início do livro, ele deixa claro que não considera a Trindade um dogma inalterável, o que de fato, evidencia-se em seu livro. Isto porque autor entende que “’tradição’ não é nenhum baú de verdades cristalizadas e utilizáveis, mas sim o diálogo teológico vivo, necessário e permanente, que mantemos com o passado, atravessando os tempos, e estendendo-se ao futuro comum” (p. 13). Uma das propostas inovadoras que anuncia é a de superar o conflito Filioque ocorrido em 1054, entre as alas Ocidental e Oriental da igreja cristã, bem como da separação, mas paralela relação mantida entre judaísmo e cristianismo, numa tentativa de promover uma compreensão social da teologia trinitária. Todavia, ele não demonstra essa solução em nenhuma parte do livro. A sua interpretação trinitária se revelará inovadora rompendo com o Teísmo clássico.

A sua tese de uma história trinitária de Deus é desdobrado neste livro. Primeiramente apresentada em seu livro “O Deus Crucificado” (1972), Moltmann afirma que a cruz é a ocasião em que Deus se constitui como Trindade dentro da História. Em outras palavras, a Trindade seria uma versão resumida da narrativa da paixão de Cristo.

A sua leitura trinitária tem um forte tom social. É sua premissa básica que “na história da teologia cristã, o caráter aberto de todos os conhecimentos e de todas as explicações e estrutural, pois pelo fato de estarem em aberto revelam a força da sua esperança escatológica no futuro” (p. 13). Assim, neste intuito de formular uma doutrina social da Trindade ele deseja evitar que a doutrina da Trindade se desintegre no que ele denomina de monoteísmo abstrato. A negação da distinção feita pelo teísmo clássico da Trindade econômica e da imanência, faz com que o pensamento trinitário de Moltmann se torne num panenteísmo de Deus na história, ou até mesmo parece colocar a história dentro do ser de Deus. A sua declaração de que a doutrina tradicional da Trindade foi uma forma de justificar as formas políticas de totalitarismo não tem relação causal que possa ser evidenciada. A dúvida que se levanta aqui é se a sua teologia trinitária possuí bases bíblicas ou padece influência meramente políticas e sociais marxista?

A sua proposta de uma escatologia da esperança, embora seja tema central do seu pensamento, não é completamente explicada. Não há em seu sistema doutrinário lugar para doutrinas de um evento final, manifestando o juízo divino, estabelecendo a restauração da criação, a formação de novo céu, ou, do tormento eterno. A sua teologia propõe ser escatológica sem tratar ou correlacionar com os eventos que envolvem as últimas coisas da história da redenção. Moltmann não foge as falhas comuns de teólogos neo-ortodoxos que se propõe fazer leituras revisionistas de doutrinas clássicas e apresentam sistemas incompletos, cheios de lacunas, reutilizando terminologia do teísmo clássico com definições personalizadas.

Ele propõe expor as três concepções de Deus que se desenvolveram na história ocidental. Moltmann analisando quanto ao método de se conhecer (caminho da experiência, ou caminho da práxis) e de falar em Deus como substância suprema, como sujeito absoluto ou como Deus trino e uno, apresenta na história da teologia como teólogos e filósofos, quer contestando, ou formulando, abordaram os argumentos da existência de Deus. Estranha é a sua depreciação da fórmula trinitária tradicional, ou seja, Deus é uno em essência e trino em pessoas, alegando que ela involuntária e inevitavelmente reduziria “à resolução da doutrina trinitária em um monoteísmo abstrato” (p. 32). Então, a sua conclusão é de que “uma reformulação da doutrina trinitária, hoje, somente poderá ocorrer a partir de uma confrontação crítica com essas tradições filosóficas e teológicas” (p. 32), o que será a sua proposta de desenvolver uma doutrina trinitária social.

Moltmann ao escrever sobre “a paixão de Deus” aborda o tema de modo controverso. Ele levanta a discussão da impassibilidade de Deus alegando que ela tem suas raízes na filosofia grega. Essa conclusão é questionável. A sua argumentação se baseia em alguns casos raros e heterodoxos, ou seja, na doutrina cabalística rabínica da Shekinah; também numa teologia anglicana do “sacrifício do eterno amor”; ainda numa mística espanhola da “dor de Deus”; e, por fim, de uma filosofia religiosa russo-ortodoxa da “tragédia divina”. A doutrina da impassibilidade não pode ser usada para negar que Deus tenha emoções, ou negar que Deus o Filho sofreu real injuria e morte sobre a cruz. O que não se pode admitir é a afirmação de que Deus pode ser influenciado ou afetado emocionalmente por alguma coisa da criação. Porque, Deus em sua natureza transcendental não pode ser prejudicado, nem sofrer danos em seu ser. Entretanto, Moltmann insiste em negar a doutrina da impassibilidade de Deus interpretando de modo duvidoso este mistério trinitário, ou seja, alegando que Deus sendo livre, sofre metafisicamente danos na morte de Cristo.

Moltmann é feliz em sua crítica à esterilidade teológica produzida pelo protestantismo liberal, alegando que desde Kant não se pode extrair nada de prático da doutrina da Trindade. Todavia, aponta Karl Barth como quem resgata uma interpretação bíblica da Trindade e torna possível, pelo seu conceito de Palavra de Deus, aplica-la a todos os aspectos da vida. A premissa de Moltmann é que “o Novo Testamento fala de Deus, na medida em que narra e anuncia as relações comunitárias, extensivas ao mundo, entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo” (p. 78). O envio do Filho revela a Trindade e a instituição do seu reino. A história desse relacionamento não pode ser entendida a partir da unicidade de Deus, mas no fato dele ser trino e nessa relação entre o Pai e o Filho, ele envolve os homens, os aflitos e os sobrecarregados. Cristo em sua comunhão com o Pai reside o mistério do reino que ele anuncia aos pobres. Inovadora é a sua abordagem do futuro do Filho em que entregará o reino ao Pai, em que ele apresenta o ordenamento trinitário distinto ao modelo ocidental: Pai – Filho – Espírito, propondo em termos de consumação escatológica e da glorificação a seguinte ordem trinitária: Espírito – Filho – Pai. Moltmann revela parte de seu panenteísmo trinitário nas afirmações “a história do reino é essa história de Deus, trinitariamente aberta e invitativa” e ainda “a união da Trindade divina está aberta à unificação de toda a criação com ela e nela. A unidade da Trindade una e trina, portanto, não é apenas um conceito teológico, mas também, no seu cerne, uma concepção soteriológica” (p. 107).

Mais claro se torna a sua postura panenteísta ao criticar o teísmo clássico e o panteísmo e, propor um meio termo entre “os elementos de verdade do teísmo cristão e do panteísmo crístico” (p. 118). O argumento é uma sequência de premissas que partem do amor de Deus por si, e de cada pessoa da Trindade mantendo uma relação íntima com a criação. E a pergunta a seguir é: existe uma criação para dentro, ou só uma criação para fora de Deus. Moltmann afirma que “a criação, enquanto ação de Deus em Deus, e para fora dele, deve ser designada, antes, como uma representação feminina: Deus cria o mundo enquanto permite que um mundo se forme ‘dentro dele’ e apareça” (p. 120).

No capítulo 5 o autor reconhece nas antigas heresias do arianismo e do sabelianismo não foram superadas, e que como perigo presente, carecem de contestação. Moltmann retomando em parte uma abordagem histórica, analisa ambas heresias. Por ser um teólogo em evidência, Karl Barth é analisado e denunciado como adotando uma Monarquia trinitária. O teólogo católico Karl Rahner desenvolveu sua doutrina trinitária numa abordagem muito similar a de Barth. Este é um capítulo cansativo de se ler, e pouco proveitoso em termos de reflexão teológica. Mesmo quando aborda o tema Trindade doxológica, ele sugere algumas distinções que não existem entre Trindade econômica e imanente, e que evidencia infundadas.

O último capítulo é onde Moltmann expressa a sua interpretação social da Trindade. Segundo ele o monoteísmo político-religioso sempre foi usado como legitimação da dominação social, e consequentemente, a teologia trinitária que se “desenvolve como doutrina teológica da liberdade, deve por sua vez apontar para uma comunidade humana sem prepotência e sem servidões” (p. 197). A sua argumentação aponta seletivamente para momentos da história, em que acusa protestantes de apoiarem a monarquia, sem contudo, demonstrar a relação causal efetiva de como a teologia trinitária poderia favorecer a legitimação da dominação social. Em seguida critica que o episcopado monárquico também é resultado do monoteísmo monárquico, analisando a estrutura episcopal da Igreja Católica Romana, no final do século XIX, criou o dogma da infalibilidade papal. Entretanto, a crítica parece ser fortuita, sem relação causal. Moltmann assume a doutrina trinitária do reino a partir do pensamento de Joaquim de Fiore no intento de desenvolver uma teologia trinitária capaz de superar o dualismo da doutrina eclesiástica do duplo reino da natureza e da graça.

Moltmann adere várias perspectivas teológicas. Embora claras ao esboçar partido pela Teologia da Libertação em sua intenção de contribuir para que a voz dos oprimidos seja ouvida, mantendo um diálogo libertador, que segundo Moltmann “ela é hoje a melhor teologia ética e política, porque, nas indigências dos oprimidos, ela procura fazer o que é imediatamente necessário, e ensina a fazê-lo” (p. 22). Obviamente que como europeu o seu discurso não se assemelha às temáticas, nem ao tom agressivo como as de Leonardo Boff, Clodovis Boff, Frei Honório Rito, J.B. Libânio, e outros teólogos da Teologia da Libertação. Todavia, Moltmann se mantém afinado o suficiente para atrair pesquisadores e adeptos do movimento. Entretanto, deve-se notar que ele não deve ser categorizado como um teólogo da libertação. Em seu bojo teológico alguns conceitos de Karl Barth, Karl Rahner e Paul Tillich podem ser encontrados em sua releitura da doutrina da Trindade.

Dificulta a leitura do livro o fato de alguns termos teológicos sofrerem redefinições no pensamento de Moltmann. Ele não oferece de modo explícito o que realmente quer dizer com palavras como Trindade, História, Reino e ainda apresenta termos e declarações dialéticas como “paixão de Deus”. Outra fraqueza em sua teologia pode ser identificada em que ele enfatiza a imanência em detrimento da transcendência de Deus. Ainda deixa sem explicação algumas de suas declarações em que retrata Deus do futuro escatológico, do Deus da história que sofre, do Deus trinitário que a unidade é futura para ele. Deve-se pontuar aqui que estas declarações abstratas e ininteligíveis não são resultado de profundidade intelectual, mas sim, falta de clareza acadêmica e textual. A leitura do livro é desafiadora, pois, constantemente o autor mescla a ortodoxia, com propostas neo-ortodoxas, bem como uma versão revisionista na doutrina da Trindade. Todavia, não vejo neste livro uma relevante contribuição para a doutrina da Trindade.

Resenha: MOLTMANN, Jürgen, Trindade e reino de Deus – uma contribuição para a teologia (Petrópolis, Editora Vozes, 2000).

17 outubro 2013

Uma palavra de advertência acerca de Tim Keller

Tim Keller é uma pessoa muito complicada teologicamente, assim, por favor, preste atenção enquanto explico. Sou um grande admirador do Cristocentrismo de Keller e sua clara explicação do evangelho. De fato, a apresentação do evangelho por parte de Keller é uma das melhores que jamais escutei. Seu entendimento da somente a graça em Cristo somente numa perspectiva Reformada é verdadeiramente magnífico... até mesmo profundo. Proclama em voz alta que "o evangelho NÃO é o que fazemos para Cristo, senão acerca do que Cristo fez por nós" o que é algo que se acha longe da RCC e do Movimento Emergente como se possa imaginar. Pessoalmente sou grandemente abençoado por seu ministério. Promovemos-lhe porque o seu ensino, em geral, é MUITO bom.

Mas, sempre fui um admirador crítico de Tim Keller. Permita-me explicar. Por um lado, ele ama a Jonathan Edwards e aos Puritanos, bem como o experiencialismo Calvinista e o evangelho de somente a graça em Cristo somente. Por outro lado, integra algumas ideias de fora da tradição reformada. E isso nem sempre é algo ruim, pois podemos aprender de outras tradições. Todavia, neste caso, discordo profundamente de algumas de suas posições. 1) É um evolucionista teísta. 2) Às vezes, tende a ter uma ênfase desequilibrada em temas como a justiça social e a renovação cultural (o que tem levado a muitas igrejas locais influenciadas por ele a se envolver nas políticas de esquerda ou direita, cuja "ala" dependendo da localização da igreja), e (3) recentemente tem chamado minha atenção que sua igreja pratica a oração contemplativa, ou o misticismo católico, o que potencialmente poderia conduzir as pessoas a abraçar os perigosos ensinos da Contrarreforma de Ignácio de Loyola, San Juan de la Cruz, Santa Teresa de Ávila (místicos católicos) que ensinam (entre outras coisas) as ideias extra-bíblicas da perfeição cristã, visões e guia mística divina. Em minha opinião, algumas destas acomodações tendem a ser inconsistentes com o evangelho que de outra forma comunica tão poderosamente.

De modo que, uma palavra de precaução aos jovens cristãos que se emocionam demasiadamente com o seu material. Quase há um culto entre os ministros de a RUF e outros jovens que recentemente estão entrando na PCA. Isto poderia ser, potencialmente, algo pouco saudável. Somente quero que os leitores deem um passo à atrás por um segundo, e tomem em consideração estas coisas antes de sinceramente submergirem. Uma vez mais, seus livros sobre a idolatria, o matrimônio, a apologética, e especialmente seus livros sobre o evangelho, etc., são geralmente muito úteis, e essa é a razão pela qual os vendemos sem reservas. Amo seu Cristocentrismo, a sua ênfase na experiência e penso que comunica coisas de uma maneira muito útil, mas aponto com aguda exceção a sua evolução teísta, o seu ecumenismo e sua desequilibrada ênfase na justiça social. E jamais venderíamos, ou promoveríamos conscientemente nenhum recurso que promovesse especificamente estas ideias ou práticas errôneas.

Podemos estar em desacordo com um homem em muitas coisas e ainda assim pensar que as pessoas podem se beneficiar de seu ministério do evangelho. Sei que há um grupo de pessoas que preferiria que o retirássemos totalmente de nossa venda. Eu lhes agradeço por chamar a minha atenção para algumas destas coisas. Mas, depois de buscar conselho sobre isto da parte de outros pastores, sinto que uma advertência deste tipo é a melhor maneira de seguir adiante. Se estas advertências forem consideradas, então, creio que vocês serão abençoados pelo útil ministério do Dr. Tim Keller.

John Hendryx
Monergism Books

Extraído DAQUI em 17/10/2013.

15 outubro 2013

Maldição hereditária, ou consequência de pecados pessoais?

Há alguns anos o meio evangélico têm se contaminado com uma perniciosa doutrina. Este ensino diz que: "apesar de você ter Jesus como o seu Salvador, e ser salvo, é possível que existam maldições hereditárias, ou seja, maldições por causa dos pecados de algum antepassado que não tenham sido perdoados, e que conseqüentemente, ainda recaem sobre a sua vida". Então, com esta doutrina se conclui que "por isso, você não é abençoado, não prosperá, e por causa disso você tem doenças e males que não consegue se livrar, apesar de ser salvo". Usam como base bíblica, geralmente, a passagem em que Deus declara que "visito a iniquidade dos pais nos filhos até à terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem" (Êx 20:5). A Bíblia mal interpretada é a mãe das heresias! Esta ameaça pronunciada por Deus se refere aos que não eram salvos, e permaneciam na idolatria, desprezando ao único Deus vivo e verdadeiro. O Senhor não está declarando que apesar de convertidos Ele ainda assim persistirá em amaldiçoar por causa dos pecados dos pais! A maldição é para aqueles que aborrecem ao Senhor, e não sobre os que o amam; porque sobre os que amam o Senhor, a misericórdia perdurará até mil gerações! (Keil & Delitzsch, Biblical Commentary on the Old Testament, pp. 117-118).

É verdade que alguns textos nas Escrituras declaram que o pecado dos pais têm influência sobre a vida dos seus filhos (Lv 26:39; Is 55:7; Jr 16:11; Dn 9:16; Am 7:17). Mas, isto deve ser bem entendido, pois não é uma referência à maldição hereditária, mas à persistência dos filhos de não abandonar os pecados dos pais. Sendo fiéis ao contexto histórico de toda a narrativa, perceberemos que estas passagens são exortações ao arrependimento, porque a punição era por pecados que tiveram origem nos pais, ou antepassados mais remotos, mas eram pecados ainda perpetuados e praticados por eles mesmos. Nisto percebemos que o cultivo duma cultura familiar corrompida por vícios, idolatria e imoralidades, pecados que são cometidos em família, ensinados pelos pais aos filhos trará a ausência das bençãos pactuais de Deus, mas, cada um será responsável por si, e enquanto não houver verdadeiro arrependimento não haverá transformação.

Desde o Antigo Testamento esta ideia se fazia presente no meio do povo de Israel. O profeta Ezequiel denuncia o pecado do povo por acreditar "que tendes vós, vós que, acerca da terra de Israel, proferis este provérbio, dizendo: os pais comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos é que se embotaram?" (Ez 18:2). Entretanto, após a repreensão segue a instrução do Senhor dizendo: "tão certo como eu vivo, diz o SENHOR Deus, jamais direis este provérbio em Israel. Eis que todas as almas são minhas; como a alma do pai, também a alma do filho é minha; a alma que pecar, essa morrerá (Ez 18:3-4). A argumentação do profeta continua em todo o contexto posterior, deixando bem claro que cada um é responsável pelos seus próprios pecados, e não será o filho punido por causa do pai, nem o pai por causa do filho (versos 5-22).

Os discípulos de Cristo necessitaram ser corrigidos deste erro. Numa certa ocasião encontraram um jovem cego de nascença, e questionaram: "mestre, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?" (Jo 9:2). A redundante resposta de Jesus fechou o assunto, ao dizer que: "nem ele pecou, nem os seus pais; mas foi para que se manifestem nele as obras de Deus" (vs. 3). Os males físicos e temporais são instrumentos da providência de Deus, para que a Sua glória se manifeste no meio do Seu povo escolhido, e assim, a Sua vontade se torne conhecida (Jo 9:35-39; Rm 8:28).

Quando os verdadeiros crentes caem em pecado, mesmo pecados graves e escandalosos, eles não são abandonados por Deus. Deus nunca desiste deles (Rm 8:31-39). Como um Pai restaura os seus filhos, os disciplina “porque o Senhor corrige a quem ama e açoita a todo filho a quem recebe. É para disciplina que perseverais (Deus vos trata como filhos); pois que filho há que o pai não corrige? Mas, se estais sem correção, de que todos se têm tornado participantes, logo, sois bastardos e não filhos”(Hb 12:6, ARA). O apóstolo Paulo afirma esta mesma verdade dizendo que “quando, porém, somos julgados pelo Senhor, estamos sendo disciplinados para que não sejamos condenados com o mundo” (1 Co 11:32). É possível cair em pecado, mas é impossível cair da graça de Deus. O teólogo inglês J.I. Packer declara que "às vezes, os regenerados apostatam e caem em grave pecado. Mas nisto eles agem fora de seu caráter, violentam sua própria nova natureza e fazem-se profundamente miseráveis, até que finalmente buscam e encontram sua restauração à vida de retidão. Ao rever sua falta, ela lhes parece ter sido loucura."[Teologia Concisa, p. 224]. O pecado é corrigido individualmente.

Como individualmente pecamos, também somos chamados ao arrependimento! Não posso me arrepender por outra pessoa; entretanto, devo interceder por ela, se ela estiver viva. Não é possível pedir perdão pelos pecados dos meus filhos, nem irmãos, pais, avós ou qualquer outro antepassado. Pecado é confessado, e somente é perdoado pessoalmente. A Bíblia diz que as bençãos da Aliança acompanharão os nossos filhos, pois eles são filhos da promessa. Se você é filho de Deus, você é co-herdeiro com Cristo Jesus do amor de Deus (Rm 8:16-17), e esta é uma promessa para os seus filhos (At 2:39). Mas a Palavra de Deus não ensina que os nossos pecados serão cobrados dos nossos descendentes. Deus haveria de puni-los por uma irresponsabilidade nossa? A doutrina da maldição hereditária nega tanto a suficiência de Cristo, em perdoar graciosamente os nossos pecados, como a fidelidade de Deus em cumprir as Suas promessas.

Recomendo para uma leitura posterior:
1. David Powlison, Confrontos de Poder (Editora Cultura Cristã).
2. Augustus Nicodemus Lopes, Batalha Espiritual (Editora Cultura Cristã).

05 outubro 2013

Ellen G. White falou a verdade? O testemunho dos Pais da Igreja.

Evidências históricas anteriores à Constantino

Sem recorrermos ao Novo Testamento como prova histórica,[1] é possível evidenciar documentalmente que os cristãos observaram o primeiro dia da semana desde os seus primórdios? Devemos recordar que o argumento de Ellen G. White é que o abandono do sétimo dia para a guarda do domingo somente ocorreu em 321 d.C. quando Constantino promulgou a “Lei Dominical”. Leiamos o que registraram os pais da Igreja, nos séculos que antecederam à Constantino, e a nossa conclusão poderá descansar sobre o firme alicerce da verdade.

Didaquê
O mais antigo manual de preparação de batismo e discipulado da Igreja Cristã (80-90 d.C.) conhecido por Didaquê instrui como deveria ser a vida comunitária. A orientação era de que “reúnam-se no dia do Senhor para partir o pão e agradecer, depois de ter confessado os pecados, para que o sacríficio de vocês seja puro.”[2] A expressão dia do Senhor, em grego kuriakê heméra e, em latim Dies Domini tornou-se o termo para indicar o primeiro dia da semana, a que chamamos de Domingo, o dia em que o Senhor ressuscitou!

Inácio de Antioquia
Inácio de Antioquia em sua Carta aos Magnésios (110 d.C.) declara que
aqueles que viviam na antiga ordem de coisas chegaram à nova esperança, e não observam mais o sábado, mas o dia do Senhor, em que a nossa vida se levantou por meio dele e da sua morte. Alguns negam isso, mas é por meio desse mistério que recebemos a fé e no qual perseveramos para ser discípulos de Jesus Cristo, nosso único Mestre.[3]


A sistematização doutrinária exposta por Inácio aponta para a transição da antiga para a nova aliança. Esclarece que a ressurreição de Cristo é a causa da descontinuidade e acomodação para a nova ordem, e, isto inevitavelmente envolve a mudança do dia de descanso do sétimo para o primeiro dia da semana, inaugurando uma nova era.

Plínio “o jovem”
Conhecido por ser justo em seus julgamentos, Plínio “o jovem”, segundo o seu relato, procurava através de tortura e questionamentos descobrir o grau de culpabilidade do réu. Num período em que o imperador romano Trajano exigia a prisão, tortura, e dependendo do caso a pena de morte dos cristãos, e, neste contexto Plínio escreve uma carta questionando do motivo de prender e executá-los, se neles nenhum motivo de culpa era encontrado. Em 113 d.C., o relator descreve que os cristãos, sob tortura, confessaram que “unânimes em reconhecer que sua culpa se reduzia apenas a isso: em determinados dias, costumavam comer antes da alvorada e rezar responsivamente hinos a Cristo como a um deus...”.[4]

O testemunho do governador pagão expressou admiração com o costume cristão. Não havia nada de absurdo, nem ofensivo naquela religião. A menção de determinados dias confirma que as suas reuniões seguiam uma norma semanal, e que antes do amanhecer se reuniam.

A carta a Diogneto
O desconhecido escritor da Carta a Diogneto afirma que “não creio que tenhas necessidade de que eu te informe sobre o escrúpulo deles a respeito de certos alimentos, a sua superstição sobre os sábados...”.[5] Em 120 d.C., o contraste entre cristãos e judeus estava estabelecido, de modo que a guarda do sétimo dia era visto pelos cristãos como sendo uma superstição judaica, e não como algo normativo para a Igreja.

A carta de Bárnabé
Um importante documento histórico apresenta alguns traços do Cristianismo do século II. A “carta de Barnabé” não tem autoria certa, mas pelo seu conteúdo a crítica literária especializada em patrística é de consenso datá-la entre 134-135 d.C.. O autor interpreta o significado do sábado. Ele declara que
vede como ele diz: não são os sábados atuais que me agradam, mas aquele que eu fiz e no qual, depois de ter levado todas as coisas ao repouso, farei o início do oitavo dia, isto é, o começo de outro mundo. Eis por que celebramos como festa alegre o oitavo dia, no qual Jesus ressuscitou dos mortos e, depois de se manifestar, subiu aos céus.[6]


O seu conteúdo é abertamente contrário aos sistemas judaizantes. Nesta interpretação acerca do sábado, o autor contrasta entre o entendimento do Judaísmo e o Cristianismo.

Justino de Roma
O apologista cristão expressou que “no dia que se chama do sol, celebra-se uma reunião de todos os que moram nas cidades ou nos campos, e aí se lêem, enquanto o tempo o permite, as memórias dos apóstolos ou os escritos dos profetas.” Noutro lugar ele continua
celebramos essa reunião geral no dia do sol, porque foi o primeiro dia em que Deus transformando as trevas e a matéria, fez o mundo, e também o dia em que Jesus Cristo, nosso Salvador, ressuscitou dos mortos. Com efeito, sabe-se que o crucificaram um dia antes do dia de Saturno e no dia seguinte ao de Saturno, que é o dia do Sol, ele apareceu a seus apóstolos e discípulos, e nos ensinou essas mesmas doutrinas que estamos expondo para vosso exame.[7]


A preocupação de Justino não era de firmar novas doutrinas, mas apenas de expor aos seus inquisitores o que era crença e prática tradional dentro do Cristianismo. A sua I Apologia é datada em 155 d.C. apontando para a proximidade da era apostólica, um período de pureza na fé cristã.

Irineu de Lião
Enquanto Justino defendia os cristãos diante dos governadores pagãos, Irineu se dedicava a atacar as heresias que brotavam dentro do Cristianismo. Irineu como apologista analisava os desvios doutrinários que haviam se infiltrado dentre os cristãos. Especificamente para o nosso propósito selecionamos os heréticos que se nomeavam ebionitas,[8] que segundo Irineu eles “praticam a circuncisão e continuam a observar a Lei e os costumes judaicos da vida e até adoram Jerusalém como se fosse a casa de Deus.”[9] Além de negar a salvação somente pela graça e a sua suficiência em Cristo, os ebionitas ensinavam uma redenção por meio da obediência da lei. Dentre os “costumes judaicos da vida” incluíam a prática de guardar o sétimo dia. Eles não entenderam a cessação dos aspectos civis da lei, nem o seu cumprimento cerimonial em Cristo, de modo que, persistiam em exigi-los como complemento da salvação, e nisto consistia a sua heresia. O livro Contra as Heresias é datado entre 180 a 190 d.C..

Tertuliano
No início do século III os cristãos demonstravam desprezo pelos costumes judaizantes. Em seu livro Da Idolatria, escrito entre os anos 200 e 210 d.C., Tertuliano declara que “não temos praticado os Shabbats ou, outras festividades judaicas, do mesmo modo que evitamos as práticas pagãs.”[10] A sua afirmação esclarece que, tanto a idolatria quanto práticas judaicas, eram evitadas no mesmo pé de igualdade. Não há dúvidas de que o descanso cristão no fim do século II era marcadamente o domingo, da mesma forma que o exclusivismo cristão testemunhava contra pagãos e judeus!

Conclusão
As evidências exigem um veredicto! A declaração da senhora Ellen G. White é insustentável por causa da ausência de fontes e de provas. A verdade está contra ela, pois todo testemunho histórico aponta para a celebração do primeiro dia da semana como sendo o santo dia de descanso, de comunhão e de celebração dos cristãos primitivos que antecederam a “Lei Dominical” de Constantino.

Todos os editos e leis foram promulgados para que os seus súditos incentivados por benefícios civis adotassem a religião cristã. O império romano estava se adaptando ao Cristianismo e não o contrário. Assim, o primeiro dia da semana tornou-se descanso civil, por ser tradicionalmente desde o final do primeiro século um dia reservado para o culto cristão.

Evidências históricas apontam para o favorecimento do imperador romano para o Cristianismo. O que vimos foi que a Igreja no período da Patrística não somente evitava a guarda do sétimo dia, mas desprezava-a como sendo superstição, idolatria e heresia judaizante! Não há no puro Cristianismo nenhum grupo, em nenhum lugar e período que celebrasse o sábado como o dia cristão.


Notas:
[1] Deixo esclarecido que aceito a plena inerrância e historicidade do Novo Testamento. Apenas não recorrerei a textos do NT para evitar uma discussão exegética, mantendo-me apenas na análise histórica extrabíblica. Aqueles que têm alguma dúvida quanto à historicidade do NT sugiro a leitura de Eta Linnermann, Crítica Histórica da Bíblia (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2009). Embora tenha pronto a argumentação bíblica, aqui será exposto apenas as evidências históricas.
[2] Didaquê in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 1995), vol. 1, pág. 357.
[3] Inácio de Antioquia – Epístola aos Magnésios – Padres Apostólicos in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 1995), vol. 1, pág. 94.
[4] Henry Bettenson, ed., Documentos da Igreja Cristã (São Paulo, ASTE, 4ªed., 2001), págs. 29-30.
[5] Carta a Diogneto – Pais Apologistas in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 1995), vol. 2, pág. 21.
[6] Carta de Barnabé – Pais Apologistas in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 1995), vol. 1, pág. 311.
[7] Justino de Roma, I Apologia in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 2ªed., 1995), vol. 3, págs. 83-84.
[8] Sabe-se que “eram judeus que aceitavam Jesus como o Messias ao mesmo tempo em que continuavam a afirmar que Paulo era um apóstota da lei, negavam o nascimento virginal, praticavam a circuncisão, observavam o Sábado, a Páscoa e outras festividades judaicas”. Robert G. Clouse, et. al., Dois reinos (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2003), pág. 33.
[9] Irineu de Lião, Contra as Heresias in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 2ª ed., 1995), vol. 4, pág. 108.
[10] Tertulian, On Idolatry in: Ante-Nicene Fathers, vol. 3, pág. 70 citado em G.H. Waterman, Sabbath in: The Zondervan Pictorial Encyclopedia of the Bible (Grand Rapids, Zondervan Publishing, 1977), vol. 5, pág. 187. Este pai da Igreja é conhecido por causa da sua ortodoxia trinitária. O termo “Trindade” foi cunhado por ele, e Philip Schaff concede-lhe o título de fundador do Cristianismo Latino.

04 outubro 2013

Visio Dei - a visão beatífica de Deus no Novo Céu

Os teólogos reformados falam da visão beatífica de Deus referindo-se àquele conhecimento que fará os glorificados plenamente felizes. R.J. Bauckman ainda nota que esta visão de Deus também tem “um contraste entre o conhecimento de Deus indireto, fragmentário e obscuro, que temos nesta vida, e a apreensão clara e direta de Deus, como ele é, a que aspiramos (1 Co 13:12).”[1] A ideia é de que na glorificação ao ver a Deus atingirão o ápice da satisfação celestial por ser ele o bem supremo. François Turretin a define como sendo “o perfeitíssimo e claro conhecimento de Deus e das coisas divinas, tais como podem pertencer a uma criatura finita, oposto ao conhecimento imperfeito e obscuro que é possuído aqui mediante a fé”.[2] No estado glorificado os salvos não precisarão mais da fé, porque eles verão a Deus sem a mediação da Escritura Sagrada. Assim, o futuro conhecimento de Deus será perfeito, sem interpretações errôneas, nem obscuras, porque eles receberão uma imediata revelação.

Deus nunca poderá ser visto pelos olhos físicos, mesmo estando os bem-aventurados em corpos glorificados. Quanto a isto Turretin argumenta que
as Escrituras enumeram a invisibilidade entre as propriedades essenciais e imutáveis de Deus e negam ao homem não só o ato, mas também o poder de vê-lo. As passagens são: Cl 1:15; 1 Tm 1:17; 6:16; Hb 11:27; Êx 33:20. Deus é um Espírito incórporeo e simples, que consequentemente não pode enquadrar-se à sensação do corpo, porque o poder não vai além de seu próprio objeto. Terceiro, a visão ótica na outra vida sucederá à fé (2 Co 5:7). Ora, esta é mental e intelectual, não sensível. Finalmente, nem a totalidade da essência pode assim ser vista (porque não há proporção entre a faculdade e o objeto, entre o finito e o infinito), nem uma parte dela (porque assim ela viria a ser divisível e mortal).[3]

A expectativa de uma visão de Deus é alimentada pelos crentes no decorrer de ambas as administrações da aliança. Na antiga aliança embora a revelação da consumação estivesse ainda um tanto que obscura, pode-se ler o registro do anseio que membros da aliança nutriam quanto à esperança futura de estarem ante a face de Deus (Sl 17:15; Mt 5:8; 1 Co 13:12; 1 Jo 3:2; Ap 22:3-4).

Quando olhamos para a história da igreja, percebe-se que Agostinho, no período da Patrística, foi quem melhor desenvolveu o conceito da visão beatífica. Alister McGrath nota que Agostinho ensinou que
a visão de Deus possui uma capacidade única de satisfazer o desejo humano, ultrapassando absolutamente a capacidade de todo ser ou toda coisa criada. Tal visão é o summum bonum, o sumo bem, “a luz pela qual a verdade é recebida e a fonte da qual as bênçãos são absorvidas”.[4]

Agostinho pressupondo a transformação do corpo para uma adaptada realidade espiritual, fala do modo como os glorificados verão a Deus. Ele declara que
é possível e muito crível que na outra vida veremos de tal maneira os corpos mundanos do novo céu e da nova terra, que com clareza assombrosa veremos a Deus, que está presente em todas as partes e governa todas as coisas corporais; vê-lo-emos, por intermédio de nossos corpos transformados, e em todos os corpos a que volvermos os olhos. Vê-lo-emos não como agora vemos as coisas invisíveis de Deus, pelas coisas criadas, em espelho, em enigma e em parte, onde vale mais a fé com que cremos que a espécie das coisas corporais que vemos por meio dos olhos corpóreos. [...] Logo, veremos Deus por meio de olhos que em poder se assemelharão ao espírito, o que lhes permitirá ver também a natureza incorpórea, coisa difícil ou impossível de justificar por testemunhos das divinas Escrituras, ou, o que é mais fácil de entender, Deus ser-nos-á tão conhecido e tão visível, que com o espírito o veremos em nós, nos outros, em si mesmo, no novo céu e na nova terra, e em todo ser então subsistente. Vê-lo-emos também, pelo corpo, em todo corpo, aonde quer que os olhos espirituais do corpo espiritual se dirijam. Nossos pensamentos serão patentes a todos e mutuamente.[5]

Agostinho crê que após a transformação do corpo e de toda a criação, a revelação de Deus será imediata, de modo que o conhecimento no estado de glória ocorrerá além do que é físico.[6] Entretanto, ele declara confusamente que “por meio de olhos que em poder se assemelharão ao espírito” que é sua especulação, pois é “coisa difícil ou impossível de justificar por testemunhos das divinas Escrituras.”

A tradição medieval romana ensina que Deus pode ser visto em sua essência. J. Van Engen esclarece que
os teólogos medievais, especialmente Tomás de Aquino e outros, fortemente influenciados pela filosofia aristotélica, definiam a visão de Deus como uma intuição ou percepção direta da Sua própria existência (essentia) como um ato eterno do intelecto e como algo totalmente sobrenatural no seu caráter.[7]

Diferentemente dos escolásticos romanos, os reformados assumiram que o conhecimento de Deus permaneceria limitado. Jacobus Altingius declara que os glorificados verão “a mais clara visão de Deus, que é a intuitiva percepção de Deus; e mental [visão] se a essência espiritual está na visão, e a ocular [visão] no Deus encarnado tal como os anjos têm.”[8] Embora haja desacordo entre os antigos reformados, luteranos e calvinistas, quanto ao modo que ocorrerá a visão beatífica, Antonius Walaeus afirma que “concordamos que a glória de Deus será mais plenamente vista na natureza humana de Cristo – todavia, admitimos que esta verdadeira visão, que é a suprema base da vida eterna, não será do que é corporal, mas com os olhos da alma”.[9] Por vezes, este conhecimento que será adquirido pelos glorificados é chamado de theologia beatorum. Richard A. Muller define a teologia beatífica, na perspectiva dos protestantes escolásticos, como sendo “a teologia que os benditos eleitos são capazes de conhecer no céu, em harmonia com o liber gloriae, o ‘o livro da glória’, e o lumen gloriae, a ‘luz da glória’.”[10] Este conhecimento não será uma visio Dei per essentiam, ou seja, de Deus em si, mas dado por ele através da criação redimida, do que será revelado em Cristo, e do que pode ser conhecido por intuição. O conhecimento dos glorificados será sempre uma theologia ectypa por ser finita e uma reflexão da divina theologia archetypa, que é o perfeito conhecimento de Deus de si mesmo.[11]

Klaas Schilder está correto em refutar a ideia de que poderemos ver a essência de Deus. Ele escreve que “estritamente falando não podemos conceber uma visio per essentiam de Deus. De fato, é uma tolice esperar que o homem possa um dia ver Deus em sua essência.”[12] Embora a revelação na nova terra seja àqueles que estarão num estado glorificado, ausentes de qualquer limitação imposta pelo pecado, ainda serão finitos, isto é, haverá uma incapacidade física, e Deus sempre será infinito. O corpo glorificado estará adaptado para receber o conhecimento que teremos de Deus, mas não será por meio de olhos físicos que veremos o Pai.

Como então conheceremos a Deus face a face, se não seremos capazes de ver a sua essência divina? Resumindo a perspectiva reformada, Herman Bavink declara que
quando olhamos o espelho da revelação de Deus, vemos apenas sua imagem, mas então o veremos face à face e conheceremos como também somos conhecidos. Contemplação (visio), compreensão (comprehensio) e o desfrutar de Deus (fruitio Dei) compõem a essência de nossa bem-aventurança futura. Os redimidos veem Deus – de fato – não com olhos físicos, mas de uma forma que sobrepuja toda a revelação nesta dispensação feita por meio da natureza ou da Escritura. Assim, todos o conhecerão, cada um na medida de sua capacidade mental, com um conhecimento que tem sua imagem e semelhança no conhecimento de Deus – de forma direta, imediata, pura e sem ambiguidade. Então, eles receberão e possuirão tudo o que aguardam aqui, em esperança. Assim, contemplando e possuindo Deus, eles desfrutam dele e são abençoados em sua comunhão: abençoados em corpo e alma, intelecto e vontade.[13]

Assim, embora teremos um conhecimento sobrenatural, e nunca antes experimentado, cremos que não veremos a Deus em essência com os nossos olhos físicos. Por isso, A.A. Hoekema afirma que “existência na nova terra será marcada por um perfeito conhecimento de Deus, perfeito gozo de Deus e perfeito serviço de Deus.”[14] E, teremos um conhecimento que será imediato, intuitivo, e uma percepção da luz da glória da sua presença.

Jesus Cristo continuará como mediador revelacional no futuro. Ele é Deus, e uma manifestação permanente de Deus ao seu povo. Durante a sua humilhação o nosso Redentor disse a Felipe que “há tanto tempo estou convosco, e não me tens conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai” (Jo 14:9). Nele sempre veremos o Pai. Recentemente, dentre os reformados, quem mais escreveu acerca deste assunto foi Jonathan Edwards. Ele declarou que a visio Dei não será alguma coisa vista com os olhos físico, mas, que será uma visão intelectual pela qual Deus será visto. Noutro lugar ele completa que
ver a Deus no corpo glorificado de Cristo é a maneira mais perfeita que existe de se ver a Deus com os olhos do corpo; porque se verá um corpo real, em que uma das pessoas da Trindade assumiu como seu corpo e nele habita para sempre como seu próprio corpo, no que a majestade divina e excelência aparecem tanto como é possível que se manifeste em forma visível ou figura.[16]

Como atualmente no céu esta revelação continua sendo pela sua mediação, do mesmo modo, na nova terra continuará sendo Cristo o revelador da Trindade. Prudentemente pode-se concordar com G.C. Berkouwer que “a visão de Deus não é algo que nos está explicado, mas algo que é-nos prometido neste tempo que vemos somente através de um espelho de enigmas (1 Co 13:12).”[17] Assim, podemos inferir, sem todavia, avançar muito além dos limites da Escritura.

NOTAS:
[1] R.J. Bauckman, “Visão de Deus” in: Sinclair B. Ferguson, D.F. Wright & J.I. Packer, org., Novo Dicionário de Teologia (São Paulo, Editora Hagnos, 2009), p. 1192.
[2] François Turretin, Compêndio de Teologia Apologética (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2011), vol. 4, p. 729.
[3] François Turretin, Compêndio de Teologia Apologética, vol. 4, p. 729.
[4] Alister McGrath, Teologia – os fundamentos (São Paulo, Edições Loyola, 2009), pp. 223-224.
[5] Santo Agostinho, A Cidade de Deus (Bragança Paulista, Editora Universitária São Francisco, 7ª.ed., 2006), pp. 584-585.
[6] Os luteranos entendem a visão beatífica de Deus como não sucedendo meramente por contemplação mental (visio corporalis), mas especialmente pelos olhos físicos glorificados. John Theodore Mueller, Dogmática Cristã (Porto Alegre, Concórdia Editora, 4ª ed. rev., 2004), p. 593.
[7] J. Van Engen, “Visão Beatífica” in: Walter A. Elwell, ed., Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã (São Paulo, Edições Vida Nova, reimpressão em 1 volume, 2009), p. 628.
[8] Jacobus Altingius, Methodus Theologiae Didactiae (Opera, Amsterdam, 1687) citado em Heinrich Heppe, Reformed Dogmatics (London, Wakeman Great Reprints, s./.), p. 707.
[9] Antonius Walaeus, Loci communes s. Theologiae (Leiden, 1640) citado em Heinrich Heppe, Reformed Dogmatics, p. 707.
[10] Richard A. Muller, Dictionary of Latin and Greek Theological Terms (Grand Rapids, Baker Academics, 2006), p. 300.
[11] Richard A. Muller, Dictionary of Latin and Greek Theological Terms, pp. 299-300.
[12] Klaas Schilder, Heaven, What Is It? (Grand Rapids, Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1950), p. 64.
[13] Herman Bavink, Dogmática Reformada (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2011), vol. 4, pp. 721-722.
[14] A.A. Hoekema, A Bíblia e o futuro (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2010), p. 382
[15] Jonahtan Edwards, The works of Jonathan Edwards (Edinburgh, The Banner of Truth, 1997), vol. 2, p. 905-907.
[16] Jonanthan Edwards, The Sermons of Jonathan Edwards: A Reader, ed., Wilson H. Kimmach, Kenneth P. Minkema e Douglas A. Sweeney (New Heaven, Yale University Press, 1999), pp. 74-75 citado por Randon , El Cielo(Tyndale House publishers, 2004), p. 125.
[17] G.C. Berkouwer, The Return of Christ – Studies in Dogmatics (Grand Rapids, Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1972), p. 382.