28 outubro 2019

1Pe 3.19 ensina que Jesus pregou no inferno?

Por Guy Waters


Certa vez Pedro escreveu a respeito das cartas de Paulo: “como em todas as suas epístolas, entre as quais há pontos difíceis de entender [...]” (2Pe 3.16). Podemos dizer o mesmo das cartas de Pedro! Aqui há uma afirmação que há muito tempo deixa os leitores confusos.
Porque também Cristo padeceu uma vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para levar-nos a Deus; mortificado, na verdade, na carne, mas vivificado pelo Espírito; No qual também foi, e pregou aos espíritos em prisão;
Os quais noutro tempo foram rebeldes, quando a longanimidade de Deus esperava nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca; na qual poucas (isto é, oito) almas se salvaram pela água. (1Pe 3.18-20).

No verso 18, Pedro está falando da morte e ressurreição de Cristo. Jesus foi morto “na carne” – isto é, ele morreu como um ser humano. E ele foi ressuscitado, “vivificado pelo Espírito”. Mas o que é “Espírito” aqui? Alguns intérpretes entendem que isso significa a alma humana de Jesus. Outros dizem que é o local onde o Jesus ressurreto vive agora. Mas a relação entre a ressurreição de Jesus com o “Espírito” indica que Pedro está se referindo ao Espírito Santo (ver Rm 8.4-11). Jesus, diz Pedro, foi ressuscitado pelo poder do Espírito.

Pregando aos espíritos em prisão
Se, no verso 18, Pedro está dizendo que Jesus ressuscitou dentre os mortos pelo poder do Espírito Santo, então ele está dizendo no início do verso 19 que “no [Espírito], [Jesus] foi, e pregou aos espíritos em prisão”. Muitos intérpretes assumiram Pedro dizer que, entre a morte e a ressurreição de Jesus (ou depois dela), Jesus empreendeu uma campanha de pregação.

Quem se diz ser o objeto da pregação de Jesus? Os “espíritos em prisão” que “noutro tempo foram rebeldes”. Mas quem são esses “espíritos”? De acordo com alguns, são as almas dos crentes do Antigo Testamento, os quais Jesus libertou do cativeiro e trouxe com ele para o céu. A mensagem pregada por Jesus, sua morte e ressurreição, é, portanto, uma boa nova para eles.

Outros assumiram que esses “espíritos” são almas condenadas que rejeitaram a pregação de Noé milênios antes. Para esses, Jesus está confirmando a condenação pela proclamação de sua vitória sobre eles e sobre todos os seus inimigos em sua morte e ressurreição. (Alguns intérpretes ainda têm visto Jesus oferecendo uma oportunidade por fé e arrependimento após a morte a esses “espíritos em prisão”).

O que fez Jesus?
Essas interpretações têm pelo menos uma coisa em comum. Elas veem Jesus fazendo algo – localmente, se não físico – depois de sua morte e sepultamento, mas antes de sua ascensão e assento no céu. Um problema com essas interpretações, porém, é elas afirmarem uma ação de Jesus que não se encontra em nenhum outro lugar nas Escrituras. Devemos ser cautelosos em avançar com tal alegação sem um testemunho bíblico mais claro.

Outro problema com essas interpretações deriva da descrição de Pedro a respeito desses “espíritos”, como aqueles que “noutro tempo foram rebeldes”... “nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca” (verso 20). Por que Jesus libertaria apenas alguns santos do Antigo Testamento do cativeiro? (E por que Pedro descreveria os santos do Antigo Testamento dessa forma?) Ou, por que Jesus proclamaria condenação a somente uma única geração de almas no inferno, e não a outras? Cada uma dessas interpretações também traz suas próprias dificuldades. Não há um testemunho claro nas Escrituras de que os crentes do Antigo Testamento, quando morriam, ficavam confinados no limbus patrum (“o limbo dos pais”) até o momento em que Cristo os libertaria em sua ressurreição.

Os ensinamentos de Jesus na parábola do rico e Lázaro apontam para uma direção contrária. Quando morriam, as almas dos crentes do Antigo Testamento entravam diretamente na presença de Deus (Lucas 16.22). Não há nenhum motivo claro do porque Jesus passaria pelo inferno para proclamar sua vitória a qualquer alma humana condenada. E certamente não há mandado bíblico para uma oferta de salvação para aqueles que já morreram. O juízo final, afinal de contas, levará em conta apenas o que foi feito nesta vida, e não o que foi feito no além (1Pe 1.17; 2Co 5.10; Hb 9.27).

Outros ainda consideram esses “espíritos” como anjos maus, sobre os quais Cristo triunfou em sua ressurreição. Dizem que Jesus anuncia sua conquista da ressurreição sobre os poderes e autoridades espirituais, que estão presos em cativeiro infernal. Essa visão pode envolver uma proclamação de vitória no inferno, mas não necessariamente. Embora seja verdade que a ressurreição de Jesus declarou vitória sobre seus inimigos espirituais e demoníacos (verso 22), é discutível dizer que Pedro tinha essa vitória em mente no verso 19. Pedro parece entender os espíritos do verso 19 como seres humanos quando ele diz que foram rebeldes “nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca” (verso 20).

Melhor interpretação
Existe outra maneira de interpretar as palavras de Pedro, evitando essas dificuldades e considerando o contexto desses versos no argumento de Pedro. A pregação do verso 19 não é feita pelo Jesus ressurreto. É Jesus quem prega, claro, mas ele prega no Espírito Santo. O momento desta proclamação não é a janela entre a morte e a ascensão de Jesus. É durante a vida de Noé.

Então, o que Pedro está querendo dizer? Ele está dizendo que Noé, no andamento da construção da arca, prestou testemunho do julgamento vindouro de Deus. Ele era o “pregoeiro da justiça”, como o próprio Pedro diz em sua segunda carta (2Pe 2.5). Noé pregou no poder do Espírito Santo, o Espírito que Pedro chamou anteriormente de “o Espírito de Cristo” (1Pe 1.10). Mas os homens e mulheres da geração de Noé, não obstante a “longanimidade de Deus” em adiar o julgamento, desprezaram a proclamação. Por causa de sua rebeldia anterior, estão agora “em prisão”. Ou seja, suas almas, após a morte, foram justamente condenadas ao inferno para serem castigadas pelos seus pecados.

Esteja pronto para prestar contas
Essas palavras produziriam um tremendo encorajamento aos primeiros leitores de Pedro. Muitos deles eram gentios, que foram redimidos de uma vida indigna e perversa (1Pe 1.18; compare 4.3-4; cf. Ef 2.12). Esses crentes estavam sendo perseguidos por sua fé, uma realidade explicitamente abordada em 1Pe 3.8-17. Não obstante essa perseguição, eles sempre deveriam estar “sempre preparados para responder com mansidão e temor a qualquer que vos pedir a razão da esperança que há em vós” (1Pe 3.15-16).

Como os crentes podem fazer esse duro trabalho? Em 1Pe 3.18-20, Pedro novamente nos aponta a morte e a ressurreição de Cristo pelos pecadores. Os crentes de hoje, assim como Noé em seu tempo, são chamados a testemunhar a esperança do evangelho diante de um mundo que, na incredulidade, nos ridiculariza e nos despreza. Nós fazemos isso pelo poder do Espírito Santo – o Espírito de Cristo em ação no ministério de proclamação de Noé, e o Espírito pelo qual Cristo ressuscitou dentre os mortos. Nossa tarefa não é fácil. O Cristo ressurreto conquistou a vitória (1Pe 3.21-22). Não devemos temer nem desanimar (1Pe 3.14). Em vez disso, devemos “santificar ao Senhor Deus em nossos corações”, falando aos outros sobre ele (1Pe 3.15).

Como é bom saber que nosso Senhor conquistou a vitória! Que bom saber que nosso Salvador conquistou a vitória! Pedro nos lembra que não devemos viver tendo em vista o que nossos sentidos nos dizem, mas pelo que sabemos ser verdade pela fé. Jesus está no seu trono e age entre nós pelo seu Espírito. Sejamos fiéis e o sirvamos em nossa geração.

Tradução de Daniel Tanure
Revisado por Ewerton B. Tokashiki

Nenhum comentário: