29 outubro 2024

Liberdade, Autonomia e a Confissão de Fé de Westminster

Esta pintura de John Rogers Herbert retrata um discurso particularmente controverso diante da Assembleia por Philip Nye contra o governo da igreja presbiteriana. Uma reunião da Assembleia de Westminster em 21 de fevereiro de 1644. Philip Nye, um membro do partido independente, argumenta que a forma de governo da igreja defendida pelos presbiterianos, sob a qual as congregações locais se submetem a assembleias superiores de presbíteros, era “três vezes perniciosa para os estados e reinos civis”. Ele foi imediatamente “desapropriado”, de acordo com Robert Baillie, que manteve um diário dos procedimentos. A pintura retrata muitos indivíduos que não eram membros da Assembleia, pois, quando questões de interesse particular eram debatidas, não-membros compareciam como espectadores. Josias Shute, no entanto, morreu antes da Assembleia se reunir.

Aqui, não pretendo tomar partido sobre qual visão de liberdade é preferível, o compatibilismo ou o libertarianismo, mas mostrar que, seja qual for a visão adotada, a Confissão é consistente nessa questão. Não há duas visões, mas uma.

Por Paul Helm [1]

Em seu livro Deviant Calvinism [O Calvinismo Deturpado] (Fortress Press, 2014), Oliver Crisp [2] considera a ideia de que existem duas teorias filosóficas de agência humana coexistindo lado a lado na Confissão de Westminster. Ele associa isso ao fato de que houve calvinistas que eram libertários, como John L. Girardeau [3], o teólogo presbiteriano do sul dos Estados Unidos. Se essa ideia é plausível, então sugere que, no auge do puritanismo, em meados do século XVII, havia duas visões concorrentes que eram toleradas dentro das fileiras do movimento: uma visão libertária e outra compatibilista. Assim, os subscritores da Confissão teriam a liberdade de adotar uma ou outra, alternando entre uma visão nas terças, quintas e sábados, e outra nos demais dias da semana. Contudo, não há duas visões no sentido de que algumas expressões são definitivamente e claramente libertárias, enquanto outras são compatibilistas.

Não duas visões, mas apenas uma.

Aqui, não pretendo tomar partido sobre qual visão de liberdade é preferível, o compatibilismo [4] ou o libertarianismo [5], mas mostrar que, seja qual for a visão adotada, a Confissão é consistente nessa questão. Não há duas visões, mas uma. William Cunningham [6] acreditava que os subscritores da Confissão poderiam entender suas declarações sobre a agência humana de uma maneira necessitarista ou não-necessitarista, com boa-fé. (Veja “O Calvinismo e a Doutrina da Necessidade Filosófica” em The Reformers and the Theology of the Reformation). Ele quis dizer, acredito, que as declarações da Confissão não eram explícitas sobre a questão e, ao tratar desse tema, eram ambíguas ou obfuscadas, podendo ser interpretadas de ambas as formas.

Mas isso é algo diferente de dizer que a Confissão ensina duas visões incompatíveis. (Devemos também lembrar que a Confissão não usa os termos “compatibilista”, “libertário” ou mesmo “necessitarista”. Embora faça referência ao que Deus “determina”, o faz com parcimônia, sem o mesmo entusiasmo daqueles que, atualmente, falam com desinibição do “determinismo teológico”. Por isso, é necessário cautela neste ponto). É verdade que a Confissão não desenvolve explicitamente uma ou outra visão. Crisp aponta esse fato.

Crisp cita algumas observações de Jerry Walls, que, por sua vez, parece entender que as declarações da Confissão em um ponto a comprometem com a ideia de que:

(1) Porque uma pessoa é determinada a realizar uma ação por Deus, que leva a pessoa a querer fazer a ação, essa pessoa [então] é capaz de realizar tal ação.

Isso é interpretado, imagino, por Jerry Walls (não li seu livro), como uma inferência ao libertarianismo, e não ao compatibilismo.

O capítulo sobre a Vocação Eficaz (Capítulo 10) é citado como evidência. Talvez estas palavras desse capítulo:

II. Esta vocação eficaz é só da livre e especial graça de Deus e não provem de qualquer coisa prevista no homem; na vocação o homem é inteiramente passivo, até que, vivificado e renovado pelo Espírito Santo, fica habilitado a corresponder a ela e a receber a graça nela oferecida e comunicada”.

E talvez por outras declarações encontradas na Confissão. Walls também afirma que a Confissão está comprometida com:

(2) Uma pessoa é capacitada a fazer uma determinada ação por Deus, mas cabe a ela decidir se realizará essa ação.

E isso é tomado por Walls como algo consistente com o libertarianismo. (Embora, em minha opinião, seja um pouco forçado dizer que essas palavras indicam claramente o libertarianismo).

Talvez se pense que essa passagem do Capítulo 10 comprometa a Confissão com (2):

“… renovando suas vontades e, por Seu poder onipotente, determinando-os ao que é bom, e atraindo-os eficazmente a Jesus Cristo, de modo que eles venham de forma totalmente livre, sendo tornados dispostos por Sua graça” (I).

Se for assim, os teólogos de Westminster seriam vistos como comprometendo-se na seção (I) do Capítulo 10, em poucas linhas, não apenas com duas teorias distintas de liberdade humana, mas também tanto com o agostinianismo quanto com o semi-pelagianismo. (Talvez eles não tenham percebido esse fato ou talvez tenha sido uma questão de política). Talvez. Mas você acha que isso é provável?

Além da falta de plausibilidade em uma das interpretações de parte do Capítulo 10, há outra razão pela qual isso tudo não é provável. Para entender isso, precisamos fazer uma indução mais completa da linguagem da Confissão. Descobrimos que a escolha das palavras para descrever a agência humana é bastante interessante. Aqui (creio) estão todas as referências relevantes:

A Confissão Sobre a Liberdade e o Livre-Arbítrio Humanos.

Tentarei mostrar que não existem duas visões metafísicas rivais da liberdade humana lado a lado na Confissão, mas que a linguagem sobre liberdade e livre-arbítrio está, de fato, cumprindo dois papéis distintos. Primeiro, vejamos “liberdade”, depois “livre-arbítrio”.

Liberdade:

a) Eternos Decretos, Cap. III.1: “nem é tirada a liberdade ou contingência das causas secundárias, antes estabelecidas”

b) Criação, Cap. IV.2: “sendo deixados à liberdade de sua própria vontade…”

c) Do Livre-Arbítrio, Cap. IX.1: “Deus dotou a vontade do homem com essa liberdade natural…”

Livre-Arbítrio:

a) Do Livre-Arbítrio, Cap. IX.2: “o homem, em seu estado de inocência, tinha liberdade e poder para querer e fazer o que é bom…”

b) Cap. IX.4: “…livra-o de sua servidão natural sob o pecado, pela graça, capacitando-o a querer e fazer livremente o que é espiritualmente bom…”

c) Cap. IX.5: “A vontade do homem é tornada perfeita e imutavelmente livre para fazer o bem somente no estado de glória…”

d) Chamado Eficaz, Cap. X.1: “… de modo que venham totalmente livres, sendo tornados dispostos por Sua graça”.

Este levantamento exclui as formulações no Capítulo 20, Da Liberdade Cristã e Liberdade de Consciência. Neste, o termo “liberdade” está sendo usado em um sentido político ou social, como em “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, e não é relevante para nossa discussão.

Comentários

Fora o Capítulo sobre Liberdade de Consciência, sugiro que, na Confissão, “livremente” tem invariavelmente a ver com habilidade espiritual, o desfrute dos efeitos da graça divina. Assim, no céu, os santos possuem perfeita e imutável liberdade para fazer o bem, e aqueles que são eficazmente chamados são levados a Cristo de forma totalmente livre, sendo dispostos por Sua graça; não dispostos metafisicamente em algum sentido, mas moralmente dispostos. E assim por diante. O oposto de tal liberdade não é um estado metafísico, pois na Confissão “liberdade” não denota uma visão metafísica, mas um estado moral e espiritual, frequentemente referido como liberdade (em algum grau) da “escravidão” da vontade.

Assim, embora à primeira vista possamos supor que “livremente” na expressão “de modo que venham totalmente livres, sendo tornados dispostos por Sua graça” refira-se ao livre-arbítrio compatibilista ou libertário, sugiro que o uso de “livre” e “livremente” neste contexto tem origem não em debates metafísicos sobre a vontade, mas nas operações da graça divina e no uso do Novo Testamento. Por exemplo: “Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” (João 8.36. Veja também o v. 21), e “onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade” (2Coríntios 3.17) e “a liberdade da glória dos filhos de Deus” (Romanos 8.21). A liberdade está ligada a certos estados graciosamente dados ao povo de Deus.

E quanto à “liberdade” na Confissão? Quando essa palavra é usada pelos teólogos de Westminster, seu uso é muito mais geral. O contexto de seu uso diz respeito às capacidades dos seres humanos em geral. “A liberdade das causas secundárias” refere-se a indivíduos dotados de inteligência e vontade, em comparação com o comportamento de animais, insetos e vegetação, outros tipos de causas secundárias. Essa é a liberdade com que Deus nos dotou, como homens e mulheres. Além disso, a Confissão afirma que, sem assistência divina para mantê-los no caminho reto, o casal no Jardim foi “deixado à liberdade de sua própria vontade”, seja qual for o caráter dessa vontade. Não é que o casal tivesse liberdade para escolher entre o bem e o mal, mas foram criados bons e, portanto, inclinados ao bem; porém, não de forma imutável, e sendo deixados à liberdade de suas próprias vontades, ou seja, sem o auxílio divino, eles caíram, sucumbindo à tentação demoníaca e “trouxeram a morte ao mundo e toda nossa desgraça”. Mas, na glória por vir, a Confissão afirma que “a vontade do homem é tornada perfeita e imutavelmente livre para fazer o bem somente no estado de glória”. Observe novamente a conexão entre liberdade e estado de graça.

Portanto…

A sugestão é que a escolha das palavras na Confissão segue uma política deliberada, consistente e inteligível. Se esta sugestão é plausível, não há necessidade de recorrer ao debate entre libertários e compatibilistas, por mais importante que seja, ou de se envolver no que Oliver Crisp chama de “um sutil truque” (80), para entender essa coerência.


Notas:

  1. Paul Helm, “Freedom, Liberty and the Westminster Confession”. Disponível em <https://paulhelmsdeep.blogspot.com/2014/10/freedom-liberty-and-westminster.html>. Tradução e edição: Rodrigo Gonçalez (rodgoncalez@gmail.com). Editora Credo Reformado. Paul Helm (n. 1940) é um filósofo e teólogo britânico conhecido por seu trabalho em filosofia da religião e teologia reformada. Especialista em temas como a natureza de Deus, a providência divina e a liberdade humana, Helm é amplamente reconhecido por suas contribuições ao estudo do calvinismo e da teologia de Jonathan Edwards. Suas obras têm explorado temas centrais do pensamento reformado e questões complexas sobre a relação entre liberdade e determinismo, bem como os desafios de interpretar doutrinas teológicas históricas no contexto contemporâneo. Ao longo de sua carreira, Helm lecionou em instituições como a Universidade de Londres e a Universidade de Oxford, onde ocupou a cadeira de Teologia Histórica e Filosófica. Entre suas principais obras estão The Providence of God e Eternal God: A Study of God without Time. [N.T.]
  2. Oliver Crisp (n. 1972) é um teólogo e filósofo britânico, conhecido por seu trabalho em Teologia Sistemática e Filosofia da Religião, com foco na Tradição Reformada e no pensamento calvinista. Ele leciona atualmente na Universidade de St. Andrews, na Escócia, onde é professor de Teologia Analítica. Crisp é conhecido por explorar temas complexos, como a doutrina da expiação, a encarnação, a trindade e a liberdade humana, sempre dentro de uma perspectiva reformada e com métodos da filosofia analítica. Ao longo de sua carreira, Crisp tem se dedicado a uma abordagem “renovada” do calvinismo, que visa tanto recuperar aspectos tradicionais quanto abrir o diálogo com questões teológicas contemporâneas. Em seu livro Deviant Calvinism, por exemplo, ele propõe novas perspectivas dentro do calvinismo que desafiariam as interpretações mais rígidas, explorando alternativas compatíveis com a Teologia Reformada, mas menos convencionais, como ideias sobre a liberdade humana e expiação universal. Suas obras, como Jonathan Edwards and the Metaphysics of Sin e The Word Enfleshed, são amplamente estudadas e respeitadas na teologia contemporânea, especialmente entre aqueles que buscam integrar a tradição cristã reformada com abordagens filosóficas modernas. [N.T.]
  3. John Lafayette Girardeau foi um teólogo, pastor e educador presbiteriano norte-americano, conhecido por seu trabalho como pastor e defensor da educação religiosa entre afro-americanos no sul dos Estados Unidos durante o século XIX. Ele nasceu em 14 de novembro de 1825 e faleceu em 23 de junho de 1898. Girardeau é lembrado principalmente por seu ministério em Charleston, Carolina do Sul, onde pastoreou uma igreja presbiteriana afro-americana antes da Guerra Civil. Mais tarde, tornou-se professor de Teologia Sistemática no Columbia Theological Seminary, na Carolina do Sul, onde ensinou temas como predestinação, expiação e soberania divina, com um forte enfoque na teologia calvinista ortodoxa. Ele escreveu várias obras teológicas, incluindo Calvinism and Evangelical Arminianism, na qual defende o calvinismo tradicional em oposição ao arminianismo, e The Will in Its Theological Relations, onde explora questões sobre a liberdade humana e a soberania divina, sendo uma figura de destaque na tradição reformada americana do século XIX. [N.T.]
  4. O debate entre compatibilismo e libertarianismo no contexto da Confissão de Fé de Westminster envolve interpretações divergentes sobre como a liberdade humana se relaciona com a soberania divina. A Confissão aborda o livre-arbítrio e a providência de Deus de forma a sustentar a responsabilidade moral humana, mas também a soberania absoluta de Deus sobre todas as coisas, incluindo as ações humanas. O compatibilismo é a visão de que a liberdade humana e a soberania divina são compatíveis, isto é, que Deus pode ordenar todas as coisas e, ao mesmo tempo, os seres humanos podem agir livremente de forma responsável. Essa perspectiva geralmente sustenta que o ser humano é livre para fazer o que deseja, embora seus desejos e decisões estejam sob a ordem soberana de Deus. Para o compatibilista, a liberdade não é a capacidade de agir de maneira totalmente independente, mas sim a capacidade de agir conforme os próprios desejos, que estão, por sua vez, debaixo da providência de Deus. Em outras palavras, a vontade humana opera de acordo com os decretos divinos sem que isso retire sua responsabilidade moral. Deus é apresentado como o soberano que “determina” todas as ações, mas, ao mesmo tempo, mantém a agência moral das criaturas humanas. Os principais defensores do compatibilismo foram Jonathan Edwards (1703–1758) e John Owen (1616–1683). Ambos acreditavam que o livre-arbítrio humano está alinhado com a vontade divina soberana, e que a liberdade humana está limitada pela providência de Deus.
  5. O libertarianismo argumenta que a liberdade humana envolve a capacidade de agir de maneira contrária à vontade ou ao controle direto de Deus. Libertários geralmente defendem que, para que as escolhas humanas sejam moralmente significativas, devem estar fora do alcance direto do decreto divino. Esta visão sustenta que Deus, em Sua soberania, permite que os seres humanos tomem decisões genuinamente livres, isto é, decisões que poderiam ser de outra forma, mesmo diante da providência ou dos decretos divinos. Embora a Confissão de Fé de Westminster não use explicitamente a terminologia “compatibilismo” ou “libertarianismo”, alguns teólogos argumentam que a Confissão oferece espaço para uma leitura libertária em passagens como Capítulo IX, Do Livre-Arbítrio, que menciona que o homem, no estado de inocência, possuía liberdade para escolher entre o bem e o mal. O argumento é que essa liberdade anterior à Queda poderia indicar um espaço para a possibilidade de decisões não determinadas, especialmente nas questões morais. Os principais defensores do libertarianismo foram, por exemplo, John Girardeau (1825–1898) e Richard Baxter (1615–1691). Um puritano que não era um estrito calvinista, Baxter defendia uma espécie de sinergismo que se aproxima do libertarianismo, acreditando que os seres humanos cooperam de forma significativa com a graça divina na salvação. [N.T.]
  6. William Cunningham (1805–1861) foi um influente teólogo e historiador escocês, amplamente conhecido por suas contribuições ao presbiterianismo e à Teologia Reformada e o presbiterianismo. Nascido em Broughton, Escócia, Cunningham se tornou uma figura proeminente na Igreja da Escócia e desempenhou um papel importante na história do movimento presbiteriano. Cunningham estudou no New College de Edimburgo, onde se formou em teologia. Em 1830, ele foi ordenado como ministro na Igreja Presbiteriana Livre da Escócia e, em 1843, se tornou um dos fundadores dessa denominação, após a Disrupção de 1843, que separou um grupo de ministros da Igreja da Escócia devido a disputas sobre a autonomia da igreja e a interferência do Estado nos assuntos eclesiásticos. Entre suas obras mais notáveis está The Reformers and the Theology of the Reformation, que examina o pensamento teológico dos reformadores do século XVI e suas implicações para a teologia contemporânea. Cunningham abordou temas como a soberania de Deus, a providência divina e a relação entre fé e razão. Ele também contribuiu para o debate sobre a relação entre a liberdade humana e a soberania divina, especialmente em relação à ideia de compatibilismo, que defende que a liberdade humana pode coexistir com a soberania de Deus. [N.T.]

 

22 outubro 2024

A Igreja primitiva guardava o sétimo dia da semana?

 por Ewerton B. Tokashiki

 

A igreja primitiva guardava o sétimo dia?

 Há abundantes provas de que a Igreja sempre guardou o primeiro dia da semana. No entanto, desde o movimento sabatista do sétimo dia, é proposta uma nova interpretação. Ellen G. White é conhecida como sendo uma das principais expoentes deste sabatismo moderno. Em seu mais lido livro O Grande Conflito afirma que

o imperador Constantino promulgou um decreto fazendo do domingo uma festividade pública em todo o Império Romano (ver Apêndice). O dia do sol era reverenciado por seus súditos pagãos e honrado pelos cristãos. Foi instado a fazer isto pelos bispos da igreja. Inspirados pela sede de poder, perceberam que, se o mesmo dia fosse observado tanto por cristãos quanto por pagãos, isto resultaria em maior poder e glória para a igreja. Mas, conquanto muitos cristãos tementes a Deus fossem, gradualmente, levados a considerar o domingo como possuindo certo grau de santidade, ainda mantinham o verdadeiro sábado e o observavam em obediência ao quarto mandamento.[1]

 Em conversa com sabatistas sempre ouvi que o imperador romano Constantino foi quem mudou a guarda do sétimo dia para o domingo, mas não sabia a fonte nem de onde procedia essa ideia, até que ganhei um exemplar de O Grande Conflito e pude lê-lo.

Ellen White simplesmente menciona um decreto promulgado por Constantino sem citar a fonte. Talvez, ela não soubesse que história se escreve com documentos. Entretanto, ela induz o leitor a crer que este texto foi responsável pela mudança da observância do descanso do sábado para o domingo. Conforme a sua interpretação histórica, a senhora White alega que interesses políticos e até evangelísticos fizeram com que os líderes cristãos contemporâneos do imperador romano, contribuíssem para a transição da guarda do sétimo para o primeiro dia da semana. Embora a autora não forneça nenhuma fonte da sua alegação, recentemente os editores do seu livro adicionaram o suposto documento. Contudo, a bibliografia que mencionada volta-se contra eles mesmos.[2] O historiador Albert H. Newman argumenta que a suposta conversão de Constantino [cerca de 310 d.C.] favorecia socialmente os cristãos no seu império. O Cristianismo não estava sofrendo mutações para adaptar-se aos romanos, mas o império pagão estava se moldando ao costumes cristãos.[3] Newman menciona uma série de favores que o imperador concedia aos cristãos, por exemplo, como os contidos no Edito de Milão (313 d.C.),[4] a isenção da liderança cristã do serviço militar e de impostos públicos (313 d.C.),[5] aboliu práticas e festividades pagãs que fossem públicas (315 d.C.), concedeu o direito privado às igrejas locais (321 d.C.) e tornou um dever civil o descanso no domingo, conforme era o costume cristão (321 d.C.).[6] Assim, o Dies Domini celebrado no primeiro dia da semana passou a ser descanso estatal.[7] O historiador Philip Schaff esclarece que Constantino

é o fundador, de no mínimo, da observância civil do Domingo, em que somente deste modo a sua observância religiosa na igreja poderia se tornar universal e propriamente assegurada. No ano de 321, ele editou uma lei proibindo o trabalho manual nas cidades e todas as transações judiciais, e posteriormente também o exercício militar no Domingo.[8]

 Em outras palavras, o domingo não se tornou obrigatoriamente um dia de descanso para os cristãos por causa da lei de Constantino. Mas, o decreto tornou um dever civil o que por séculos era o costume religioso dos cristãos.

Embora tenha origem metodista, Ellen G. White (1827-1915) recebeu influência do movimento milenarista e sabatista procedente de William Miller (1782-1849). Ele atraiu muitos seguidores ao profetizar a vinda de Cristo para o dia 22 de outubro de 1844, fato que nunca ocorreu. Após a família White ser excluída da Igreja Metodista, por divergência doutrinária, associaram-se ao grupo adventista, sendo que ela se tornou uma  das principais líderes e a profetiza do movimento.[9] Assim, durante um ministério de aproximadamente setenta anos, alegou ter recebido cerca de duas mil visões e sonhos proféticos.[10] Numa de suas profecias ela afirma que a guarda do domingo é a marca da besta.[11] Não perderei tempo analisando esse seu erro, visto que não há nada na Escritura Sagrada que autorize interpretar com este significado o texto de Ap 13, como o faz Ellen White e o movimento adventista.[12]

 

Evidências históricas anteriores à Constantino

É possível provar documentalmente que os cristãos guardaram o primeiro dia da semana desde os seus primórdios? Recordemos que o argumento de Ellen G. White é que o abandono do sétimo dia para a guarda do domingo somente ocorreu em 321 d.C. quando Constantino promulgou a “Lei Dominical”. Leiamos o que registraram os pais da Igreja, nos séculos que antecederam ao imperador romano, e a nossa conclusão poderá descansar sobre o firme alicerce da verdade.

 

Didaquê

O mais antigo manual de preparação de batismo e discipulado da Igreja Cristã (80-90 d.C.) conhecido por Didaquê instrui como deveria ser a vida comunitária. A orientação era de que “reúnam-se no dia do Senhor para partir o pão e agradecer, depois de ter confessado os pecados, para que o sacrifício de vocês seja puro.”[13] A expressão dia do Senhor, em grego kuriakê heméra e, em latim Dies Domini tornou-se o termo para indicar o primeiro dia da semana, a que chamamos de Domingo, o dia em que o Senhor ressuscitou!

 

Inácio de Antioquia

Inácio de Antioquia em sua Carta aos Magnésios (110 d.C.) declara que

aqueles que viviam na antiga ordem de coisas chegaram à nova esperança, e não observam mais o sábado, mas o dia do Senhor, em que a nossa vida se levantou por meio dele e da sua morte. Alguns negam isso, mas é por meio desse mistério que recebemos a fé e no qual perseveramos para ser discípulos de Jesus Cristo, nosso único Mestre.[14]

 A sistematização doutrinária exposta por Inácio aponta para a transição da antiga para a nova aliança. Esclarece que a ressurreição de Cristo é a causa da descontinuidade e acomodação para a nova ordem, e, isto inevitavelmente envolve a mudança do dia de descanso do sétimo para o primeiro dia da semana, inaugurando uma nova era.

 

A carta a Diogneto

O desconhecido escritor da Carta a Diogneto afirma que “não creio que tenhas necessidade de que eu te informe sobre o escrúpulo deles a respeito de certos alimentos, a sua superstição sobre os sábados...”.[15] Em 120 d.C., o contraste entre cristãos e judeus estava estabelecido, de modo que a guarda do sétimo dia era visto pelos cristãos como sendo uma superstição judaica e não como algo normativo para a Igreja.

 

A carta de Barnabé

Um importante documento histórico apresenta alguns traços do Cristianismo do século II. A “carta de Barnabé” não tem autoria certa, mas pelo seu conteúdo a crítica literária especializada em patrística é de consenso datá-la entre 134-135 d.C. O autor interpreta o significado do sábado. Ele declara que

vede como ele diz: não são os sábados atuais que me agradam, mas aquele que eu fiz e no qual, depois de ter levado todas as coisas ao repouso, farei o início do oitavo dia, isto é, o começo de outro mundo. Eis por que celebramos como festa alegre o oitavo dia, no qual Jesus ressuscitou dos mortos e, depois de se manifestar, subiu aos céus.[16]

 O seu conteúdo é abertamente contrário aos sistemas judaizantes. Nesta interpretação acerca do sábado, o autor contrasta entre o entendimento do Judaísmo e o Cristianismo.

 

Justino de Roma

O apologista cristão expressou que “no dia que se chama do sol, celebra-se uma reunião de todos os que moram nas cidades ou nos campos, e aí se leem, enquanto o tempo o permite, as memórias dos apóstolos ou os escritos dos profetas.” Em outro lugar ele continua

celebramos essa reunião geral no dia do sol, porque foi o primeiro dia em que Deus transformando as trevas e a matéria, fez o mundo e, também, o dia em que Jesus Cristo, nosso Salvador, ressuscitou dos mortos. Com efeito, sabe-se que o crucificaram um dia antes do dia de Saturno e no dia seguinte ao de Saturno, que é o dia do Sol, ele apareceu a seus apóstolos e discípulos, e nos ensinou essas mesmas doutrinas que estamos expondo para vosso exame.[17]

 A preocupação de Justino não era de firmar novas doutrinas, mas apenas de expor aos seus inquisitores o que era crença e prática tradicional dentro do Cristianismo. A sua I Apologia é datada em 155 d.C. apontando para a proximidade da era apostólica, um período de pureza na fé cristã.

 

Irineu de Lião

Enquanto Justino defendia os cristãos diante dos governadores pagãos, Irineu se dedicava a atacar as heresias que brotavam dentro do cristianismo. Irineu como apologista analisava os desvios doutrinários que haviam se infiltrado dentre os cristãos. Especificamente para o nosso propósito selecionamos os heréticos que se nomeavam ebionitas,[18] que segundo Irineu eles “praticam a circuncisão e continuam a observar a Lei e os costumes judaicos da vida e até adoram Jerusalém como se fosse a casa de Deus.”[19] Além de negar a salvação somente pela graça e a sua suficiência em Cristo, os ebionitas ensinavam uma redenção por meio da obediência da lei. Dentre os “costumes judaicos da vida” incluíam a prática de guardar o sétimo dia. Eles não entenderam a cessação dos aspectos civis da lei, nem o seu cumprimento cerimonial em Cristo, de modo que, persistiam em exigi-los como complemento da salvação, e nisto consistia a sua heresia. O livro Contra as Heresias é datado entre 180 à 190 d.C.

 

Tertuliano

No início do século III os cristãos demonstravam desprezo pelos costumes judaizantes. Em seu livro Da Idolatria, escrito entre os anos 200 e 210 d.C., Tertuliano declara que “não temos praticado os sabbath ou, outras festividades judaicas, do mesmo modo que evitamos as práticas pagãs.”[20] A sua afirmação esclarece que, tanto a idolatria quanto práticas judaicas, eram evitadas no mesmo pé de igualdade. Não há dúvidas de que o descanso cristão no fim do século III era marcadamente o domingo, da mesma forma que o exclusivismo cristão testemunhava contra pagãos e judeus!

 

As leis promulgadas por Constantino incentivavam os cidadãos a adotarem a religião cristã. O império romano estava se adaptando ao Cristianismo e não o contrário. Assim, o primeiro dia da semana tornou-se descanso civil, por ser tradicionalmente desde o primeiro século um dia reservado para o culto cristão. Evidências históricas apontam ações do imperador favoráveis ao Cristianismo. O testemunho da Igreja nos primeiros séculos não somente evitava a guarda do sétimo dia, mas desprezava-a como sendo superstição, idolatria e heresia judaizante! Não há no puro Cristianismo nenhum grupo, em nenhum lugar e período que celebrasse o sábado como o dia de descanso entre os cristãos.

  

NOTAS:

[1] Ellen G. White, O Grande Conflito (Tatuí, Casa Publicadora Brasileira, 7ª ed., 2004), p. 33.

[2] Os editores no indicado “Apêndice” mencionam a Lei Dominical de Constantino apontam para a obra do historiador reformado Philip Schaff, History of the Christian Church, vol. III, cap. 7. Todavia, na mesma seção [75], em seu primeiro parágrafo Schaff diz “a observância do domingo originou no tempo dos apóstolos, e as formas básicas da adoração pública, com o seu honrar, santificar e exultante influência em todas as terras cristãs”, p. 300. É estranho que a fonte que os editores citam para favorecer a tese de que a mudança era do período de Constantino (321 d.C.), inicie o texto com esta declaração!

[3] Outra obra citada no “Apêndice” como evidência a favor da tese da senhora White é o livro-texto do batista Albert H. Newman, A Manual of Church History. Mas, a discussão desenvolvida por Newman é contrária à tese sabatista!

[4] O édito encontra-se na sua íntegra transcrito na obra Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 2000), vol. 15, pp. 491-494.

[5] Veja esse outro edito em Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica, vol. 15, pp. 499-500.

[6] Kenneth S. Latourette, Historia del Cristianismo (El Paso, Casa Bautista Publicaciones, 1976), vol. 1, pp., 132-133.

[7] Albert H. Newman, A Manual of Church History (Philadelphia, The American Baptist Publication Society, 1953), vol. 1, pp. 306-307.

[8] Philip Schaff, History of the Christian Church (Albany, Ages Software, 1997), vol. 3, p. 301.

[9] No livro Crenças Fundamentais da Igreja Adventista do 7º Dia declara: “18. O Dom de Profecia - Um dos dons do Espírito Santo é a profecia. Este dom é uma característica da Igreja remanescente e foi manifestado no ministério de Ellen G. White. Como a mensageira do Senhor, seus escritos são uma contínua e autorizada fonte de verdade e proporcionam conforto, orientação, instrução e correção à Igreja. (Jl 2.28 e 29; At 2.14-21; Hb 1.1-3; Ap 12-17; 19.10)” extraído de http://www.adventistado7dia.org/iasd/crencas-fundamentais acessado em 7/10/2009.

[10] J.D. Douglas, White, Ellen Gould in: Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã (São Paulo, Edições Vida Nova, 1990), vol. 3, p. 646.

[11] J.K. Van Baalen, O Caos das Seitas (São Paulo, Imprensa Bíblica Regular, 1970), p. 155.

[12] Para maiores detalhes veja A.A. Hoekema, Adventismo del Septimo Dia (Kalamazoo, SLC, 1990).

[13] Didaquê in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 1995), vol. 1, p. 357.

[14] Inácio de Antioquia – Epístola aos Magnésios – Padres Apostólicos in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 1995), vol. 1, p. 94.

[15] Carta a Diogneto – Pais Apologistas in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 1995), vol. 2, p. 21.

[16] Carta de Barnabé – Pais Apologistas in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 1995), vol. 1, p. 311.

[17] Justino de Roma, I Apologia in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 2ª ed., 1995), vol. 3, pp. 83-84.

[18] Sabe-se que “eram judeus que aceitavam Jesus como o Messias ao mesmo tempo em que continuavam a afirmar que Paulo era um apóstata da lei, negavam o nascimento virginal, praticavam a circuncisão, observavam o Sábado, a Páscoa e outras festividades judaicas”. Robert G. Clouse, et. al., Dois reinos (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2003), p. 33.

[19] Irineu de Lião, Contra as Heresias in: Patrística (São Paulo, Editora Paulus, 2ª ed., 1995), vol. 4, p. 108.

[20] Tertulian, On Idolatry in: Ante-Nicene Fathers, vol. 3, p. 70 citado em G.H. Waterman, Sabbath in: The Zondervan Pictorial Encyclopedia of the Bible (Grand Rapids, Zondervan Publishing, 1977), vol. 5, p. 187. Este pai da Igreja é conhecido por causa da sua ortodoxia trinitária. O termo “Trindade” foi cunhado por ele, e Philip Schaff concede-lhe o título de fundador do Cristianismo Latino.

17 outubro 2024

Os 5 pilares da Reforma protestante

Quais são cinco pilares da Reforma?

As igrejas herdeiras da Reforma protestante do século XVI preservam a sua pureza conforme creem e praticam cinco princípios basilares da fé cristã. Os cinco pilares do nosso legado são:

Sola Scriptura: somente a Escritura Sagrada.

Sola gratia: somente a graça.

Solo Christo: somente em Cristo.

Sola fide: somente a fé.

Soli Deo gloria: somente a Deus seja a glória.

 

A sola Scriptura / somente a Escritura

Cremos que somente a Escritura Sagrada é a nossa única fonte e regra de fé e prática. Deus não usa outras modalidades revelacionais para falar conosco, somente a Escritura é a Palavra de Deus.

Negamos que a tradição, os decretos papais e decisões conciliares da Igreja Romana, bem como as experiências místicas, as antigas modalidades revelacionais [visões, sonhos, línguas e profecias] sejam verdadeiramente a revelada Palavra de Deus.

 

A sola gratia / somente pela graça

Cremos que somos salvos somente pela graça. Todo ser humano está morto em seus pecados e desobedece a lei de Deus, sendo merecedor de condenação eterna. O favor imerecido de Deus é a única causa do nosso perdão, reconciliação, adoção e aceitação diante dele. É Deus quem decreta, inicia, desenvolve e finaliza a graciosa salvação por causa dos méritos de Cristo.

Negamos que o ser humano seja capaz de fazer-se aceito diante de Deus, produzindo seus próprios méritos e satisfazendo a perfeita justiça divina.

 

O solo Christo / somente Cristo

Cremos que somente Jesus Cristo é o único mediador da nossa salvação. Cristo é o único Mediador entre Deus e o homem, o Profeta, Sacerdote e Rei, o Cabeça e Salvador de sua Igreja, o Herdeiro de todas as coisas e o Juiz do Mundo. Ele realizou uma obra salvadora que é perfeita, suficiente e completa a favor dos seus eleitos.

Negamos que haja outros mediadores ou que o ser humano tenha acesso a Deus Pai sem a pessoa e obra do Filho.

 

A sola fide / somente pela fé

Cremos que a fé é dom de Deus. O Espírito com a Palavra ilumina a mente produzindo um verdadeiro conhecimento do evangelho, uma firme confiança na obra de Cristo e um consentimento submisso às promessas de Deus. O pecador reconhece com arrependimento a sua reprovação e recebe a Cristo como seu Senhor. Assim, a justificação vem somente pela fé na obra de Cristo.

Negamos que a fé seja uma virtude humana, bem como não cremos que seja a causa da salvação, mas ela é o meio instrumental para recebermos o perdão e as demais bençãos de Deus. Apesar da salvação não ser por obras pessoais, a fé salvadora é operante e produz boas obras de santificação e obediência como evidência da salvação.

 

O soli Deo gloria / somente a Deus seja a glória

Cremos que o triuno Deus é o Senhor, Criador, Fonte de todo bem, Regente, Provedor e Consumador de tudo o que existe. Ele tem o absoluto controle sobre toda a criação e faz com que todas as coisas cooperem na realização da sua vontade. O soberano Deus não compartilha a sua glória com ninguém! Quanto mais estivermos satisfeitos nele, mais ele será glorificado, de modo que tudo o que somos, temos ou fazemos é um culto racional a ele. Assim, confessamos que “dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém”.

Negamos que Deus exista para satisfazer as necessidades do homem, ou que possa ter a sua vontade divina resistida, frustrada ou mudada pela vontade humana, por qualquer outra criatura ou evento na criação. Não aceitamos que o culto ao Senhor Deus seja moldado pelas predileções, culturas, tendências temporais ou qualquer critério sociológico, ideologias políticas ou superstições e imaginações humanas.

03 outubro 2024

As lágrimas de Cunhaú

 Hoje, 3 de outubro, temos um feriado em referência a beatificação de pessoas da religião romanistas, estas morreram num ataque indígena em  Cunhau e Uruaçu no século 17. Existem alguns grupos que, de má fé,  defendem a história de que um pastor reformado calvinista a mando do governo holandês, realizou esse ataque. Como reformados calvinistas no Rio Grande do Norte que somos, temos como responsabilidade manter a honra dos irmãos do passado. É nossa responsabilidade contar a história como de fato ocorreu, sem paixões ou preferências. 

O pesquisador e pastor Francisco Leonardo, especialista em história holandesa, teve acesso a textos originais e oficiais que se encontram nos registros históricos do Governo Holandês. Com base em registros históricos, ele levanta três pontos que afastam a teoria de que um pastor reformado foi algoz em Cunhau e Uruaçu. 

1. Em primeiro lugar, cumpre observar que não foi o governo holandês que ordenou a chacina. O que ocorreu foi uma vingança por parte dos indígenas em reação às notícias que corriam sobre as crueldades dos portugueses, ajudados por uma tribo selvagem da Bahia. Desde o início da revolta (13-06-1645), cada vez ficava mais claro que, onde quer que os portugueses restabeleciam seu poder, uma morte terrível esperava seus adversários, especialmente os índios.Conseqüentemente, os “brasilianos” (como eram chamados os índios tupis) refugiaram-se nas proximidades das fortificações holandesas, consideradas inexpugnáveis. Outros decidiram evitar o desastre aparentemente inevitável e pegaram em armas. Foi isto que aconteceu no Rio Grande do Norte, em Cunhaú. No Rio Grande, a população indígena consistia em grande parte de índios antropófagos (tapuias), sob a liderança do seu cacique Nhanduí. Para os holandeses, os tapuias significavam um bando de aliados um tanto inconstantes, pois eram um povo muito independente, que não aceitava ordens de ninguém, mas decidia por si o que era melhor para sua tribo. Um tal de Jacob Rabe, casado com uma índia e muito amigo da tribo, servia como ligação entre eles e o governo holandês.Entre os indígenas do extremo Nordeste em geral existia um grande ódio contra os portugueses, sem dúvida pela lembrança dos acontecimentos anteriores à chegada dos holandeses, que eram considerados como os libertadores da opressão lusa. E por várias vezes esses índios quiseram aproveitar-se da situação de derrota dos lusos, para vingar-se deles. Assim, em 1637, depois de Maurício de Nassau conquistar o Ceará, os índios procuraram matar todos os portugueses da região, que foram protegidos pelos holandeses por meio das armas. A mesma coisa aconteceu no Rio Grande do Norte, em 1645. Os tapuias sentiram que, com o início da revolta contra os holandeses, havia chegado a hora da verdade: eram eles ou os portugueses. No dia 15 de julho, começaram por Cunhaú, massacrando as pessoas que estavam na capela e posteriormente, numa luta armada, os restantes.

2. Em segundo lugar, de fato o nome de um pastor protestante está ligado a esse episódio. Porém, de modo exatamente contrário daquele que se supõe, porquanto não foi ele quem orientou a chacina, antes foi enviado pelo governo para refrear a selvageria dos silvícolas. Quando, no dia 25 de julho, o governo holandês no Recife soube dos terríveis acontecimentos do Rio Grande do Norte, despachou o Rev. Jodocus à Stetten, pastor da Igreja Cristã Reformada e capelão do exército, com o capitão Willem Lamberts e sua tropa armada “para refrear os tapuias e trazê-los para (o Recife), a fim de poupar o país e os moradores (portugueses)”. Os índios, porém, ficaram enfurecidos com os holandeses, não entendendo como estes podiam defender seus inimigos mortais, e até romperam a frágil aliança com os batavos. Antes de regressar para o sertão do Rio Grande, fizeram ainda outra incursão vingadora contra os portugueses, desta vez na Paraíba.

3. Em terceiro lugar, é importante lembrar o fim dos tapuias e de Jacob Rabe. Alguns meses depois do massacre, esse funcionário da Companhia das Índias Ocidentais, que havia recebido o mensageiro governamental, pastor Jodocus, de pistola em punho, foi morto por ordem do próprio governador da capitania do Rio Grande do Norte, Joris Garstman. O capitão Joris era casado com uma senhora portuguesa que havia perdido muitos parentes em Cunhaú. Quanto aos tapuias, após a expulsão dos holandeses e a restauração do domínio português, aqueles que não quiseram submeter-se à orientação político-religiosa de Lisboa foram massacrados, como diz o Dr. Tarcísio Medeiros, na “mais sangrenta guerra de extermínio que existiu neste Brasil”.

Conclusão

Esses três fatos complementares não diminuem em nada o sofrimento dessas vidas inocentes esmagadas pelos rolos compressores de uma luta armada. Porém, talvez possam eliminar em parte o veneno da história, por nos permitirem entender melhor o contexto daqueles dias cheios de angústia para ambos os lados. Escrever história objetivamente é muito difícil, mais ainda quando se trata de um caso controvertido como este, com muitos pormenores desconhecidos. Mas afirmar, como foi feito por certos porta-vozes, que as barbaridades de Cunhaú foram perpetradas a mando do próprio governo holandês, e ainda por cima orientadas por um pastor evangélico, simplesmente não corresponde à verdade. Convém distinguir os fatos e a interpretação dos fatos. O que não atenua, antes aumenta a nossa ansiosa expectativa do dia em que o Senhor enxugará todas as lágrimas, inclusive as de Cunhaú (Ap 7.17).


Rev. Francisco Leonardo Schalkwijk

(Adaptação Rev. Italo Reis)